Somos três do lado de fora do aeroporto da Ilha Dragão, condignamente escolhidos pelo destino para representar três gerações. Um senhor de quase 70 anos, um rapaz de vintes, e no meio este vosso quarentão. Ambos de Flight Radar em punho, o escriba a virar o pescoço como se acompanhasse uma partida de ténis. O olhar transita da app — e voltinhas da esperada aeronave sobre Pico e São Jorge — para o canal de mar que separa estas duas ilhas, coberto de nevoeiro baixo e espesso.
No voo, atrasado primeiro uma hora, e à procura de um modo seguro de abordar a pista (onde devia ter aterrado há pelo menos 20 minutos), vem o meu melhor amigo. O resto da equipa está há dois dias no “dinossauro que dorme” (também lhe chamam assim) mas hoje é dia de chegar o coanfitrião da aventura mal-amanhada e as coisas estão a condizer com o título. Quando finalmente o avião surge do meio das nuvens em voo direto para a pista, respiro de alívio.
Dali a minutos, o Raminhos dir-me-á que nem se apercebeu das hesitações do aparelho ou sequer dos círculos efetuados sobre extremidades do Pico e São Jorge, enquanto este vosso confessa que já temia pela vida do amigo. Produzir, escrever e apresentar uma empreitada destas tem, é inevitável, momentos — diversos — de ansiedade e angústia. Mas esta, pá, tocou-me mais.
Claro que os pilotos da SATA são extraordinários e aqueles pequenos aviões a hélice estão mais do que habituados a levar porrada – mas um gajo não consegue deixar de perguntar: E se? Bem, o meu brother by another mother aterrou e show must go on. Aparentemente com um extra peso na bagagem: chamam-lhes por aqui os “Nevoeiros de São João” e parece que, logo este ano, chegaram um mês antes do habitual. Aquecimento global oblige.
É a estreia do Raminhos na ilha, cicatriz de terra no mar, bela e agreste, com 56 quilómetros de comprimento e uma largura média de apenas sete, e nas próximas 72 horas ele não verá mais do que uns metrinhos à frente do nariz. O nosso hotel tem como melhor qualidade posicionar-se mesmo diante, coisa de 16 quilómetros em linha reta, do majestoso Pico e dias houve que nem o mar junto a nós se avistava, quanto mais a segunda maior ilha do arquipélago.
Se não fosse o dia e meio extraordinário que apanhámos antes da sua chegada, e quase não teríamos o que mostrar da avassaladora beleza natural deste vértice daquilo a que os açorianos chamam “Triângulo”, a ilha célebre pelas suas 76 fajãs.
Não se sabe ao certo quando terá começado o povoamento de São Jorge, mas os flamengos foram essenciais. À época Portugal inteiro tinha apenas um milhão de habitantes, e o Infante Dom Henrique compreendeu que necessitava de um aliado, estabelecendo pacto com a então chamada Flandres. Há somente três vilas neste território atravessado por uma cordilheira montanhosa, feita de uma série linear de sucessivas erupções, que atinge a altura máxima de 1053 metros: Velas, Calheta e Vila do Topo.
A costa, sobretudo a Norte, é caracterizada por arribas altas e escarpadas, por vezes caindo a pique desde 700 metros até ao mar, formando as supracitadas fajãs, ex-libris do território — quase todas habitadas e muitas de acesso verdadeiramente difícil.
Esta é uma ilha que, convém que não caia no esquecimento, esteve sempre do lado certo da História, resistindo junto com a Terceira (e durante quase três anos) ao domínio filipino; e pelos liberais — contra os absolutistas — no século XIX. Regularmente atacada por piratas e corsários, chegou a ter cidadãos escravizados por estes invasores, e já aparecia — sem identificação — no Atlas Mideceu, de 1351, atualmente numa Biblioteca de Florença.
Por volta de 1460, na enseada das Velas, terão chegado os primeiros povoadores que pegaram de estaca. E logo na segunda metade do século XVI começa a produzir-se o tradicional — e absolutamente glorioso — Queijo de São Jorge. Aliás, o ícone açoriano Gaspar Frutuoso, registou assim — no seu “Saudades da Terra”:
“Há na ilha muito gado vacum, ovelhum e cabrum, do leite do qual se fazem muitos queijos em todo o ano — que dizem ser os melhores de todas as ilhas dos Açores, por causa dos pastos”. No século XVIII, a tragédia abate-se sobre os jorgenses. O terramoto de 1757 durou dois longuíssimos minutos, causou um milhar de mortos, e criou 18 ilhotas temporárias na costa norte — em resultado dos deslizamentos de terra. Passados dias, consta que ainda se ouviam os gritos de pessoas soterradas ou inacessíveis nas fajãs. Nunca houve registo de sismo maior em São Jorge, e o terramoto tornou-se conhecido como o “Mandado de Deus”.
Já em 1980, tinha este vosso narrador três anos, o grande sismo de 1 de janeiro não fulminou apenas Terceira e Graciosa, provocando 20 mortos e extensos danos materiais em São Jorge. Todavia, tais dramas, intempéries e flagelos, não abalaram o espírito jorgense onde — tal como em São Miguel — se realizam romarias, sempre ligadas à crença no apoio divino contra a força colossal de vulcões e terramotos. A fé num eterno recomeçar.
Inspirados por essa devoção, calcorreámos a ilha como pudemos e, após uma conversa com Anamar (a musa da Lx alternativa dos anos 80 e 90, hoje habitante da ilha), os astros como que se alinharam para uma despedida gloriosa, feita de sol, vistas e mergulhos. Ou, como disse um dos nossos protagonistas, o maravilhoso Sr. João Cabeceiras, “um açoriano adormece sempre na esperança da ressurreição”. E ela pode tardar, mas não falha.
PS: e com esta, querido leitor, cumpre-se um ano inteiro de Embaixada dos Açores. Obrigado por estar desse lado.