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Embaixada dos Açores: o desafio de gravar um filme nos Açores

Luís Filipe Borges esteve em São Jorge para as filmagens da sua nova produção.

Somos três do lado de fora do aeroporto da Ilha Dragão, condignamente escolhidos pelo destino para representar três gerações. Um senhor de quase 70 anos, um rapaz de vintes, e no meio este vosso quarentão. Ambos de Flight Radar em punho, o escriba a virar o pescoço como se acompanhasse uma partida de ténis. O olhar transita da app — e voltinhas da esperada aeronave sobre Pico e São Jorge — para o canal de mar que separa estas duas ilhas, coberto de nevoeiro baixo e espesso.

No voo, atrasado primeiro uma hora, e à procura de um modo seguro de abordar a pista (onde devia ter aterrado há pelo menos 20 minutos), vem o meu melhor amigo. O resto da equipa está há dois dias no “dinossauro que dorme” (também lhe chamam assim) mas hoje é dia de chegar o coanfitrião da aventura mal-amanhada e as coisas estão a condizer com o título. Quando finalmente o avião surge do meio das nuvens em voo direto para a pista, respiro de alívio.

Dali a minutos, o Raminhos dir-me-á que nem se apercebeu das hesitações do aparelho ou sequer dos círculos efetuados sobre extremidades do Pico e São Jorge, enquanto este vosso confessa que já temia pela vida do amigo. Produzir, escrever e apresentar uma empreitada destas tem, é inevitável, momentos — diversos —  de ansiedade e angústia. Mas esta, pá, tocou-me mais.

Claro que os pilotos da SATA são extraordinários e aqueles pequenos aviões a hélice estão mais do que habituados a levar porrada – mas um gajo não consegue deixar de perguntar: E se? Bem, o meu brother by another mother aterrou e show must go on. Aparentemente com um extra peso na bagagem: chamam-lhes por aqui os “Nevoeiros de São João” e parece que, logo este ano, chegaram um mês antes do habitual. Aquecimento global oblige.

É a estreia do Raminhos na ilha, cicatriz de terra no mar, bela e agreste, com 56 quilómetros de comprimento e uma largura média de apenas sete, e nas próximas 72 horas ele não verá mais do que uns metrinhos à frente do nariz. O nosso hotel tem como melhor qualidade posicionar-se mesmo diante, coisa de 16 quilómetros em linha reta, do majestoso Pico e dias houve que nem o mar junto a nós se avistava, quanto mais a segunda maior ilha do arquipélago.

Se não fosse o dia e meio extraordinário que apanhámos antes da sua chegada, e quase não teríamos o que mostrar da avassaladora beleza natural deste vértice daquilo a que os açorianos chamam “Triângulo”, a ilha célebre pelas suas 76 fajãs.

Não se sabe ao certo quando terá começado o povoamento de São Jorge, mas os flamengos foram essenciais. À época Portugal inteiro tinha apenas um milhão de habitantes, e o Infante Dom Henrique compreendeu que necessitava de um aliado, estabelecendo pacto com a então chamada Flandres. Há somente três vilas neste território atravessado por uma cordilheira montanhosa, feita de uma série linear de sucessivas erupções, que atinge a altura máxima de 1053 metros: Velas, Calheta e Vila do Topo.

A costa, sobretudo a Norte, é caracterizada por arribas altas e escarpadas, por vezes caindo a pique desde 700 metros até ao mar, formando as supracitadas fajãs, ex-libris do território — quase todas habitadas e muitas de acesso verdadeiramente difícil.

Esta é uma ilha que, convém que não caia no esquecimento, esteve sempre do lado certo da História, resistindo junto com a Terceira (e durante quase três anos) ao domínio filipino; e pelos liberais — contra os absolutistas — no século XIX. Regularmente atacada por piratas e corsários, chegou a ter cidadãos escravizados por estes invasores, e já aparecia — sem identificação —  no Atlas Mideceu, de 1351, atualmente numa Biblioteca de Florença.

Por volta de 1460, na enseada das Velas, terão chegado os primeiros povoadores que pegaram de estaca. E logo na segunda metade do século XVI começa a produzir-se o tradicional — e absolutamente glorioso — Queijo de São Jorge. Aliás, o ícone açoriano Gaspar Frutuoso, registou assim — no seu “Saudades da Terra”:

“Há na ilha muito gado vacum, ovelhum e cabrum, do leite do qual se fazem muitos queijos em todo o ano — que dizem ser os melhores de todas as ilhas dos Açores, por causa dos pastos”. No século XVIII, a tragédia abate-se sobre os jorgenses. O terramoto de 1757 durou dois longuíssimos minutos, causou um milhar de mortos, e criou 18 ilhotas temporárias na costa norte — em resultado dos deslizamentos de terra. Passados dias, consta que ainda se ouviam os gritos de pessoas soterradas ou inacessíveis nas fajãs. Nunca houve registo de sismo maior em São Jorge, e o terramoto tornou-se conhecido como o “Mandado de Deus”.

Já em 1980, tinha este vosso narrador três anos, o grande sismo de 1 de janeiro não fulminou apenas Terceira e Graciosa, provocando 20 mortos e extensos danos materiais em São Jorge. Todavia, tais dramas, intempéries e flagelos, não abalaram o espírito jorgense onde — tal como em São Miguel — se realizam romarias, sempre ligadas à crença no apoio divino contra a força colossal de vulcões e terramotos. A fé num eterno recomeçar.

Inspirados por essa devoção, calcorreámos a ilha como pudemos e, após uma conversa com Anamar (a musa da Lx alternativa dos anos 80 e 90, hoje habitante da ilha), os astros como que se alinharam para uma despedida gloriosa, feita de sol, vistas e mergulhos. Ou, como disse um dos nossos protagonistas, o maravilhoso Sr. João Cabeceiras, “um açoriano adormece sempre na esperança da ressurreição”. E ela pode tardar, mas não falha.

PS: e com esta, querido leitor, cumpre-se um ano inteiro de Embaixada dos Açores. Obrigado por estar desse lado.

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