“Não faria um filme com ele nem que fosse o último ator no planeta”, atirava um anónimo produtor de Hollywood em 2010. Algo impensável de se dizer de Mel Gibson, pelo menos cinco anos antes, quando ainda era um dos nomes da lista de elite do cinema norte-americano. Um incidente numa noite atribulada em 2006 expôs todas as manchas que a estrela ia conseguindo esconder.
De um dia para o outro, Gibson era sinónimo de alcoolismo e antissemitismo. O rol de críticas foi-se deteriorando ao longo dos anos: adúltero, homofóbico, fanático religioso, misógino, agressor de mulheres, racista, etc.. O percurso desastroso adivinhava, até na opinião dos fãs mais devotos, o fim de uma brilhante carreira. Os produtores, aparentemente, concordavam. Mas havia exceções.
O primeiro escândalo afastou Gibson da ribalta durante cerca de cinco anos e embora nunca mais tenha recuperado a aura de estrela e o ritmo de produções que demonstrava até então, os papéis foram lentamente chegando.
Entre 2010 e 2019 protagonizou cerca de 10 produções, muitas delas comédias, sem o brilho dos blockbusters de outros tempos. Porém, a porta manteve-se entreaberta e nunca se fechou completamente.
Eis que chega 2020 e o ator de 64 surge transfigurado e pronto para aumentar as rotações: esta quinta-feira, 19 de agosto, estreia o seu primeiro filme do ano, “Força da Natureza”. Para este ano estão ainda previstos mais três projetos: “Boss Level” e “Last Looks”, dois filmes de ação; e “Fatman”, uma comédia com Gibson no papel de um Pai Natal pouco convencional.
O crescimento de movimentos que procuram castigar figuras que até então se julgavam invulneráveis — com o #MeToo à cabeça — motivou a pergunta que todos parecem estar a colocar: se Weinstein caiu, se tantos outros caíram, porque é que Mel Gibson parece ser invulnerável à “cancel culture” que parece castigar impiedosamente todos os famosos que caem em desgraça? A resposta pode estar no outro currículo do ator, não o de filmes como “Braveheart” ou “Arma Mortífera”, mas o dos pecados fatais que acabaram por não o crucificar.
“Por acaso tenho ar de homossexual?”
Mel Gibson era um homem religioso, um assumido conservador. O seu biógrafo, James Oram, descreveu-o da seguinte forma: “É tão conservador que ao seu lado, Ronald Reagan parece um liberal”.
Em 1991, a fachada de bom rapaz começava a ruir. Numa entrevista ao diário espanhol “El País”, lançou-se num monólogo sobre o rótulo de homossexual frequentemente dado a alguns atores. A tirada acabou em desastre.
“”O que acontece é que como ator, às vezes colam-te esse rótulo. Eu tanto estou a jogar rugby como na semana seguinte estou a ter aulas de dança em calças de licra. Muitas das raparigas que conheci na escola garantiam que eu era gay”, explicou, antes de referir que eles “levam no cu” que serve, segundo o próprio, “apenas para cagar”. “Com este ar, quem é que vai achar que eu sou gay? Não me dou a esse tipo de confusões. Pareço-vos um homossexual? Acham que eu falo como eles? Que me mexo como eles se mexem?”, atirou.
As acusações de homofobia sempre o perseguiram, as organizações pelos direitos dos homossexuais manifestavam-se sempre que lhes era possível — fizeram-no em diversas salas de cinema por altura da estreia de “Braveheart” que o próprio interpretou e realizou —, mas Gibson recusou sempre retratar-se. “Peço desculpa quando o inferno congelar. Eles que se vão lixar”, revelou em 1995 numa entrevista à “Playboy”.
Anos mais tarde, viria tentar colocar-se no papel de vítima. “Foi um infeliz incidente. Estava bêbado, zangado e preso. Fui gravado ilegalmente por um agente sem escrúpulos que nunca foi condenado por esse crime. E quando ele tornou tudo público para ganhar dinheiro, com a ajuda de membros da, vamos chamar-lhe assim, imprensa — foi injusto. Por ser quem sou, parece que não estou autorizado a ter uma crise nervosa”, confessou em 2006 à “Variety”.
A explosão antissemita
No meio de um divórcio complicado, Mel Gibson encontrou-se entre a decepção de um casamento falhado e uma vida de alcoolismo. Numa noite de julho, em 2006, foi apanhado pela polícia a conduzir alcoolizado.
Uma detenção seria suficiente para dezenas de manchetes incriminatórias. O que aconteceu foi muito pior — e só se tornou público porque as tentativas da polícia de abafar o caso acabaram frustradas. A imprensa norte-americana teve acesso ao relatório e ao momento de loucura de Gibson.
“A minha vida está fodida”, terá dito entre asneiras, assim que foi mandado encostar. O ator recusou cumprir as ordens dos agentes e tentou fugir. Já algemado, virou-se para os polícias. “Seu filho da puta, vou acabar contigo”, atirou, antes de dizer que era “o dono de Malibu” e que iria gastar toda a sua fortuna para se vingar dos agentes.
Dos insultos à autoridade, virou-se para os judeus. “Cabrões dos judeus. A culpa de todas as guerras do mundo é deles. Tu és judeu?”, interrogou um dos homens que o algemavam.
O conteúdo das transcrições colocadas no relatório da polícia eram de tal forma graves que as altas patentes da esquadra se envolveram e tentaram esconder alguns detalhes. “Por uma multa por conduzir alcoolizado, será que vale realmente a pena tudo isto?”, terá dito um dos polícias.
Num comunicado público, Gibson pediu imediatamente desculpas pelo sucedido, embora nunca se tenha livrado do rótulo de antissemita — algo de que já tinha sido acusado quando lançou “A Paixão de Cristo”.
Apanhado sob escuta
O fim do casamento de quase 30 anos com Robyn Moore foi um espetáculo mediático. Antes mesmo do divórcio oficial, já após a separação, Gibson apareceu em público ao lado de Oksana Grigorieva. Um ano depois, a relação descambava num circo mediático absolutamente selvagem. A cantora russa que se converteu ao catolicismo por amor, pedia agora aos tribunais que impedissem Gibson de se aproximar de si e acusava-o de violência doméstica.
Grigorieva revelou que Gibson lhe deu vários socos na cara, que resultaram num dente partido e numa concussão. “Pensei que ele me ia matar”, confessou. O caso mudou-se das manchetes para os tribunais, sobretudo devido à disputa da custódia da filha do casal.
A corrente virou rapidamente a favor de Grigorieva quando, em julho desse ano, gravações de Mel Gibson foram reveladas pela imprensa. Nelas, o ator insultava repetidamente a namorada russa, com comentários sobre as suas “mamas falsas” e o seu “ar de prostituta de Las Vegas”.
“Sim, usas [roupas demasiado justas], sais à rua e és um embaraço para mim. Pareces uma cadela com o cio e se fores violada por um grupo de pretos, a culpa é tua”, podia ouvir-se. Soube-se mais tarde que o ator terá oferecido 15 milhões de euros para tentar impedir a publicação das gravações. Sem sucesso.
O ataque violento que Grigorieva descrevia acabou por ser confirmado em tribunal por Mel Gibson, embora de forma ligeiramente diferente. O ator confirmou que agrediu a russa, mas apenas com uma estalada. Segundo o próprio, estaria a tentar impedi-la de abanar a filha Lucia.
“Dei-lhe um estalo de mão aberta para a tentar trazer de volta à realidade”, revelou do comportamento da namorada, que descreveu como “histérico”. “Não foi um estalo forte, queria apenas agitá-la para que parasse de gritar e de abanar a Lucia.” Apesar da justificação, acabou por ser condenado a três anos de pena suspensa, isto depois de ter admitido o ato violento.
Um regresso ao passado
2020 promete ser o ano de reafirmação de Mel Gibson, a estrela de Hollywood que continua a ser invulnerável à onda de redenção e vingança que assola sobretudo os Estados Unidos. Mesmo com alguns fantasmas do passado a serem redescobertos.
Foi Winona Ryder quem recordou, em junho, uma história que havia revelado há 10 anos — e que envolve mais uma tirada antissemita de Gibson.
“Estávamos numa festa cheia de gente em casa de um bom amigo meu e o Mel Gibson estava a fumar um charuto. Estávamos todos a falar e ele vira-se para o meu amigo, que é gay: ‘Ah, espera, será que vou apanhar SIDA?’ E depois falava-se algo sobre judeus e ele dizia: ‘Olha lá, não és daqueles que fugiram aos fornos, pois não?’”. Mais tarde, o ator terá tentado desculpar-se a Winona.
Se em 2010, produtores sublinhavam que “ninguém [na indústria] ousaria tocar nele com uma vara de 10 metros”, o cenário parece ser radicalmente diferente uma década mais tarde. Durante anos, a tese de defesa de Gibson assentou no seu passado problemático e nos seus vícios.
O homem que havia nascido numa família de alcoólicos parecia estar condenado à maldição. Um dos seus porta-voz chegou a afiançar que era “um tipo saudável para um alcoólico que fuma há 40 anos”.
Uma década depois, garante ser um homem novo, livre de vícios e, aparentemente, redimido de todo e qualquer pecado. “Passaram dez anos. Sinto-me bem. Estou sóbrio e tudo o resto é uma coisa que mal se vê e que ficou no passado. Outros insistem em falar sobre isso, o que acho que é um bocado irritante, porque não percebo porque é que ao fim de uma década isso é um problema. Se eu fosse o que dizem que eu sou, uma espécie de tipo odioso, haveria provas disso mesmo por aí. Nunca houve”, revelou em 2016 à “Variety”.
“Nunca discriminei ninguém”, sublinhou, antes de atirar tudo para o passado: “Que um episódio no banco traseiro de um carro de polícia, sob o efeito de oito tequillas, manche o trabalho de uma vida, de crenças e de tudo o que tenho e mantive durante a vida, isso é realmente injusto”.