Cinema

Miguel Gomes e o prémio em Cannes: “Foi um momento incrível”

“Grand Tour”, que lhe rendeu o troféu de Melhor Realização no festival, estreou esta quinta-feira, 19 de setembro, em Portugal.
Foi um feito para o cinema português.

Miguel Gomes fez história na 77.ª edição do Festival de Cannes. Aos 52 anos, tornou-se o primeiro cineasta português a conquistar o prémio de Melhor Realização com “Grand Tour”. O filme estreou nos cinemas portugueses esta quinta-feira, 19 de setembro.

Ambientado no início do século XX, o enredo centra-se na vida de Edward (Gonçalo Waddington), um funcionário do império britânico que, no dia do seu casamento, decide escapar da noiva, Molly (Crista Alfaiate). “Contemplando o vazio da sua existência, o covarde Edward questiona-se sobre o que poderá ter acontecido a Molly. Determinada a seguir o noivo que fugiu, e com o desejo de se casar, Molly inicia uma jornada em busca dele através deste ‘Grand Tour’ asiático”, lê-se na sinopse.

Para dar vida à sua narrativa, Miguel Gomes reuniu um extenso arquivo das viagens a países como Myanmar, Vietname, Tailândia e Japão, — captando as imagens e sons contemporâneos que compõem a atmosfera do filme, que decorre em 1918. As filmagens dos momentos em que os atores contracenam ocorreram em estúdios em Lisboa e Roma, enquanto os restantes cenários — como a selva da Tailândia e o quotidiano na China — foram gravados antes do início das gravações em set.

A produção de “Grand Tour” começou a ser desenvolvida em 2020 e levou cerca de quatro anos a ser finalizada. O processo não esteve isento de desafios, sendo que a pandemia foi o principal obstáculo. Inicialmente, o plano era filmar na China, porém, devido às restrições sanitárias, essa opção tornou-se inviável. Em vez disso, o realizador contratou uma equipa local que captou as imagens necessárias.

Em entrevista à NiT, o cineasta de 52 anos discutiu o processo criativo, as decisões artísticas e a sua recente vitória em Cannes, revelando também quem foi a primeira pessoa a saber da premiação. Leia agora a entrevista.

A história desenrola-se em vários lugares e épocas. Como decorreram as gravações?
Teve duas lógicas de rodagem bastante distintas. Primeiro, filmámos a realidade a partir de vários países na Ásia, para onde levámos uma equipa pequena para capturar paisagens locais. Depois, fizemos uma rodagem em estúdio onde recriámos uma Ásia completamente artificial, situada no ano de 1918.

As paisagens e lugares foram gravados nos outros países, mas as cenas com os atores foram em Lisboa e Roma, nos estúdios.
Certo. O filme desenrola-se num tempo único, em 1918, onde se conta a história de Edward e Molly, que são dois doidos, mas também inclui uma série de imagens mais recentes. Isso é algo que não é novo no cinema, o auxílio de imagens de arquivo e imagens reais dos sítios, sendo que o filme se desenrola em estúdio. É um mundo projetado. A narrativa desenrola-se no passado, mas as imagens são do presente.

No total, quanto demorou todo o processo?
Demorou cerca de quatro anos até estar concluído. Em 2020 fizemos a viagem pela Ásia, antes de escrevermos o argumento. Levámos também o diretor de fotografia e um diretor de som. O nosso objetivo era entrarmos na China, mas não pudemos devido à Covid-19. Esperámos dois anos para filmarmos lá, mas decidimos que iríamos gravar à distância. Contratámos uma equipa chinesa e estávamos sempre em contacto com eles. Em meados de fevereiro e março de 2023, preparámos tudo para começarmos a gravar e concluímos o processo de pós-produção em outubro de 2023.

Primeiro captaram as imagens e só depois escreveram o argumento com base no que filmaram.
Foi muito orgânico porque conseguimos imaginar um filme antes de chegarmos à escrita do argumento. Tivemos algumas vantagens em não estarmos fechados numa bolha no processo criativo porque a história não teve de partir a 100 por cento da nossa imaginação como argumentistas. Fomos obrigados a reagir às imagens que vimos e acho que isso foi mais produtivo.

Os realizadores portugueses mencionam sempre as dificuldades do processo de criação de um filme, especialmente com os orçamentos. Também sentiu esta dificuldade com o “Grand Tour”?
Em Portugal há poucas oportunidades para fazermos filmes com os apoios públicos e, muitas vezes, trabalhamos com orçamentos menores do que aquilo que é aconselhável. No meu caso, recebo o mesmo valor que os outros todos, mas tenho, neste momento, a oportunidade e a sorte de poder contar com muito dinheiro de fora. No “Grand Tour” havia também investimento francês, italiano, alemão, chinês e japonês. A parte portuguesa diria que era um quarto ou menos de um quarto do custo total do filme, que foi cerca de quatro milhões.

Como surgiu esta oportunidade de trabalhar com os outros países?
Todo o sistema da indústria europeia existe sustentado numa rede de institutos que apoiam o ramo do cinema. Depois há também algum dinheiro privado que entra nestas contas, ao qual eu tive acesso. Trabalhei com dinheiro público e privado. Esta é a minha sexta longa-metragem e acho que desde a segunda que tenho de contar com dinheiro de outros países fora de Portugal.

O filme é maioritariamente a preto e branco, mas há algumas cenas a cores. Como decidiu o que seria a cor e o que seria a preto e branco?
Não existia critério para aparecer cor a não ser o meu prazer de ver, de repente, num filme 95 por cento do tempo a preto e branco, um pouco de cor, porque ela também é bonita. Inicialmente tínhamos pensado em fazer o filme totalmente a preto e branco. O que aconteceu é que, como trabalhámos em película, que tem várias sensibilidades à luz, havia dificuldade em locais mais escuros. Era difícil filmar à noite porque ficava com demasiado grão e, então, decidimos filmar essas sequências a cor. 

Esperava receber o prémio de Melhor Realizador em Cannes?
Houve um momento determinante que foi quando soubemos que estávamos selecionados para a competição. Há quase duas décadas que um filme português não estava na seleção principal de um festival em Cannes. Após sermos selecionados, tudo era possível, mas achámos que seria difícil e, portanto, não contávamos com isso. Acho mais normal não ter esperanças do que ter, porque é o que acontece mais vezes. Foi um momento incrível. Normalmente, as pessoas são informadas na manhã da cerimónia de que foram selecionadas e que têm de ir ao evento. Nós achámos que isso não iria ocorrer e decidimos apanhar um barco e ir a uma ilha a alguns quilómetros no Mediterrâneo. Estava lá com os meus filhos, com os atores, produtores, enfim. De repente, o telefone tocou e percebemos que tínhamos de regressar.

A quem ligou, imediatamente após ter recebido o prémio?
Acho que foi à minha mulher, mas não me lembro se liguei ou se mandei uma mensagem. Pouco tempo depois entreguei o telemóvel a alguém do nosso staff para não ter de lidar com a onda de mensagens e telefonemas que sabia que iria receber e para manter a minha sanidade.

Já está a trabalhar no seu próximo filme?
Na verdade, já estava a trabalhar nele antes de ter iniciado os quatro anos que levei a terminar o “Grand Tour”. É um projeto baseado num importante livro brasileiro, chamado “Sertões” e escrito por Euclides da Cunha no início do século XX. Relata uma guerra que ocorreu no interior do estado da Bahia, naquelas zonas mais áridas. É um filme de guerra onde uma comunidade se criou em redor de um profeta que os incentivou à desobediência das leis da república brasileira que tinha acabado de se constituir. Depois, envolveu-se o exército na luta para tentar dissolver a comunidade e capturar o profeta. É um projeto difícil e caro, mas acho que o prémio em Cannes nos pode ajudar. As rodagens ainda não começaram.

Carregue na galeria e conheça algumas das séries e temporadas que estreiam em setembro nas plataformas de streaming e canais de televisão.

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