Num vestido espalhafatoso, digno de um espetáculo de réveillon, Ariana Grande sobe ao palco de uma gigantesca arena a abarrotar e entoa o hino “Just Look Up”. Smartphones no ar, selfies a rodos e uma multidão animada repete o refrão que anuncia o iminente fim do mundo. Se vamos todos morrer, por que raio está toda a gente a celebrar?
É na linha ténue que separa o surrealismo da realidade que vive o novo filme de Adam McKay, “Não Olhem Para Cima” — um cenário do apocalipse por baixo de uma camada de humor ocasionalmente pueril. É uma sátira pura e dura, armada com o talento de alguns dos melhores atores das suas gerações.
Aos comandos estão Leonardo DiCaprio, Meryl Streep e Jennifer Lawrence. Em pano de fundo, com menos tempo de ecrã mas não menos importantes, Mark Rylance, Thimothée Chalamet e Jonah Hill. O filme chegou aos cinemas a 9 de dezembro e na Netflix no dia 24 desse mês.
Kate Dibiasky (Lawrence) é uma jovem doutoranda que, noite dentro, esbarra numa descoberta histórica — um cometa de proporções gigantescas. O nervoso professor Randall Mindy (DiCaprio) é chamado para oficializar a descoberta e, pelo caminho, ajudar a calcular a órbita do enorme rochedo espacial. Subitamente, os dois cientistas chegam a uma conclusão: o cometa Dibiasky está em rota de colisão com o planeta Terra. “Chamam-lhes destruidores de planetas.”
Habituados à pacatez dos laboratórios, Mindy e Dibiasky partilham calmantes enquanto interiorizam a dura missão que têm pela frente: avisar o mundo que estão a seis meses da catástrofe total e da aniquilação da humanidade.
Entre vários telefonemas, o alerta para o fim do mundo esbarra numa chamada em espera para o Gabinete de Coordenação de Defesa Planetária, uma entidade real da NASA. Entre uma teia burocrática, interesses políticos, o calculismo dos media e as teorias da conspiração, o que seria uma criação kafkiana ganha contornos bem reais.
Qualquer semelhança com o drama vivido durante a pandemia — uma luta na lama entre políticos, cientistas, empresários milionários e negacionistas — é mera coincidência, apenas porque “Não Olhem Para Cima” foi escrito antes do eclodir da Covid-19. Contudo, a analogia é absolutamente descarada e McKay nunca foge dela. Pelo contrário: é esfregada na cara dos espectadores até ao limite do sufoco.
O cometa é a personificação de todas as alterações climáticas que ameaçam o planeta. Mindy e Dibiasky são os cientistas com a verdade na mão, duas vozes a pregar não no deserto, mas no meio de uma multidão distraída pelas separações mediáticas das celebridades, os novos smartphones que consomem a nossa vida e as controvérsias políticas da presidente Orlean (Streep).
O argumento que seria perfeitamente estapafúrdio há uma década é hoje assustadoramente real, embora esbatido pelo tom por vezes excessivamente moralista de McKay. Entre várias piadas geniais e outras menos conseguidas, é impossível negar a habilidade com que o elenco faz brilhar as personagens.
Mindy e Dibiasky navegam entre a euforia e a depressão, a raiva e a resignação. São cientistas que hiperventilam em direto na televisão, praguejam na Sala Oval e andam perdidos na rua a gritar aos negacionistas que “olhem para cima”.
McKay tenta encapsular o gigantesco parque de diversões em que se tornou a sociedade moderna, da presidente à imagem de Trump — que tem como assistente o filho que teima em debitar insinuações sexuais e incestuosas —, aos negacionistas que insistem em colocar em causa as descobertas científicas, até à própria comunicação social, mais preocupada em medir interações do que a servir a verdade.
DiCaprio volta a acertar em cheio na escolha e é dele a personagem com mais nuance, mais apelo, mais talento. Chalamet — quem mais? — é certeiro nas poucas cenas a que tem direito. Streep é Streep e Rylance é absolutamente fantástico no papel do calculista bilionário da tecnologia Peter Isherwell.
McKay trouxe de “Succession” — onde desempenha o papel de produtor-executivo — o seu outro grande trunfo para “Não Olhem Para Cima”, o compositor Nicholas Britell. A banda-sonora jazzificada é o complemento perfeito para uma sátira por vezes demasiado descarada, que funciona excessivamente ao descoberto e que também por isso perde alguma da mordacidade necessária ao sucesso da fórmula.
Para lá do humor caricaturesco está um grito de alerta que se revela mais honesto à medida que os espectadores vão esquecendo as gags mais inofensivas. Se o mundo não pára para olhar para cima quando confrontado com os factos, McKay espera que essa epifania chegue entre gargalhadas — pelo menos essas estão garantidas. Isso e o fim do mundo como o conhecemos.