Danificada pelo tempo, a pequena pintura de Cristo passou de mão em mão e acabou por ser vendida num leilão em 1958 por pouco mais de 100€. As constantes limpezas e repinturas distorceram as feições do sujeito, descrito então como “um hippy sob o efeito de drogas”.
Cinquenta anos depois, Alexander Parish cruzou-se com ela numa venda de uma herança. Parish é um sleeper hunter, um caçador de obras adormecidas, pinturas com autorias mal atribuídas que valem muito mais do que se pensa.
Fascinado por alguns dos detalhes do quadro, comprou-o por pouco mais de mil euros em 2005, numa parceria com Robert Simon, especialista nos velhos mestres clássicos. Estavam convencidos de que poderia ser uma obra valiosa.
“Parecia danificada mas ainda assim uma boa obra renascentista. Achei que era belíssima mas tinha sofrido demasiadas repinturas. Nunca nos meus sonhos mais loucos imaginei que pudesse ser um da Vinci. Quando muito, se tivessemos mesmo muita, muita sorte, poderia ser atribuído a um dos seus colegas”, explicou Simon à “CNBC”. Encontrar um Da Vinci é uma raridade já que o génio italiano deixou menos de 20 pinturas assinadas.
Para perceber se Salvator Mundi se tratava ou não de um original, era necessário um duro trabalho de restauro, remover as camadas repintadas e ir à origem dos traços. O trabalho foi entregue a Dianne Modestini, uma das principais testemunhas do novo documentário que tenta desvendar o mistério da pintura a que muitos chamam “a Mona Lisa masculina”.
“The Lost Leonardo”, que estreou a 13 de agosto nos Estados Unidos, encapsula a improvável história da maior descoberta artística do século. Ou será que é? O restauro foi o ponto de partida de uma viagem louca que envolve muitos milhões, muitas dúvidas e questões geopolíticas.
Mas antes de Salvator Mundi captar as atenções do mundo da arte, Modestini teve muito trabalho pela frente. Entre remoção de antigas camadas e de novas pinturas, reparou em pequenos pormenores que, explica, só poderiam ser obra do grande génio Leonardo da Vinci — sobretudo as parecenças com a sua obra mais conhecida, Mona Lisa.
Apesar das críticas ao restauro de Modestini, a National Gallery em Londres decidiu exibir a pintura em 2011, sob o título de “um novo Da Vinci”. Apesar das reticências de muitos especialistas, a decisão ajudou a cimentar a autoria da obra.
Dois anos mais tarde, começava o carrossel dos milhões. O negociante de arte suíço Yves Bouvier comprou, em 2013, Salvator Mundi por 64 milhões de euros, em nome do russo Dmitry Rybolovlev. Mas iria vendê-la por mais de 100 — uma valorização muito acima dos dois por cento que deveriam caber a Bouvier.
Em 2017, Salvator Mundi voltava ao palco dos leilões. Só que ninguém esperava o drama que decorreu na sala onde, em 19 minutos, o valor disparou para os 385 milhões de euros, um recorde absoluto alguma vez pago por uma pintura.
A licitação teria sido feita pelo príncipe saudita Badr bin Abdullah, mas haveria de ser revelado mais tarde que agiu em representação do Departamento de Cultura de Abu Dhabi. O objetivo passava por torná-lo na nova estrela do Louvre da capital saudita. Por detrás do biombo estava, claro, o príncipe da coroa, Mohammed bin Salman.
A ambição de tornar Salvator Mundi na nova estrela do Louvre de Abu Dhabi nunca aconteceu. Houve até uma data fechada para a apresentação oficial, que acabou por ser adiada.
O quadro, contudo, deveria fazer uma aparição no Louvre parisiense, durante a exposição de comemoração do 500.º aniversário de Da Vinci, em 2019. Foi reservado até o espaço para o quadro, mas ele nunca chegou a Paris. A explicação está recheada de incertezas.
Há quem fale numa recusa do museu colocar Salvator Mundi na mesma sala de Mona Lisa, de forma a não lhe dar o mesmo destaque. Outro documentário, “Saviour for Sale”, revela mesmo que, segundo algumas fontes anónimas ligadas ao governo francês, o Louvre, após análise da pintura, ficou com dúvidas sobre a autenticidade.
Que Salvator Mundi, sim, teria tido uma contribuição de Da Vinci, mas apenas e só isso. O Louvre terá dito ao governo que “exibir a pintura sob os termos dados pelos sauditas seria como fazer a lavagem de uma peça que custou mais de 300 milhões de euros.”
De lá para cá, nunca mais ninguém viu Salvator Mundi. O quadro não chegou a ser exibido em nenhum dos Louvre. A especulação adensa: uns garantem que está guardado num paraíso fiscal em Genebra; outros que está no iate milionário de bin Salman. E enquanto se especula sobre o paradeiro, os especialistas continuam a colocar em causa a autenticidade da obra.
Muitos deles não negam que Salvator Mundi possa ter, de facto, um ou outro detalhe genial do artista italiano, mas que se terão tratado apenas de ajudas pontuais numa obra feita por um dos seus assistentes. Algo que, dizem, era prática comum.
“Nem sequer é uma boa pintura”, atira o crítico de arte Jerry Saltz. Mas por cada especialista em negação, há outro que garante que só poderia ser uma obra feita por Da Vinci. No documentário, vai-se mais longe e discute-se quais os interesses por detrás da autenticação apressada: todos teriam algo a ganhar com o surgimento da “Mona Lisa masculina”, neste caso, muitos milhões de euros entre museus, negociantes e potenciais compradores.