Cinema

Embaixada dos Açores: “Um amigo americano achava que os Açores eram ilhas privadas”

Ana Lopes, que já participou em vários projetos internacionais, falou-nos sobre um episódio caricato que teve com um americano.
Tem mais de 100 títulos.

A página de IMDb da nossa protagonista de hoje tem bem mais do que 100 entradas, mas ela permanece um tesouro que o País só agora começa a descobrir. Nascida e criada em São Miguel, licenciada em Direito pela Clássica de Lisboa, Ana partiu para Los Angeles mal se apanhou com o canudo que prometera aos pais nas mãos.

Quase todos os seus créditos são, portanto, internacionais, numa série de aventuras norte-americanas e londrinas que — dada a sua jovialidade e aparente pacto com Satanás — custa a crer que já tenha vivido. Talvez o sonho, que alimenta com o mesmo entusiasmo da miúda que aterrou na capital aos 18 anos, seja o que a mantém eternamente jovem.

Podem vê-la na série de antologia “Sempre”, de Manuel Pureza, na Prime Video; em “A Lista”, na Opto; na estreia nacional de “Santanário”, curta de terror já premiada internacionalmente, que chega aos ecrãs nacionais em setembro; como protagonista da longa “Já Nada Sei”, em diversos videoclubes ou a bordo da TAP; na segunda temporada de “Rabo de Peixe” ou ainda em “First Date”, a minha estreia como realizador, que Ana Lopes protagoniza com Cristóvão Campos, a partir de Janeiro de 2025.

Já trabalhámos juntos em oito projetos e somos amigos (custa a crer) há qualquer coisa como 22 anos. Senhoras e senhores, eis a conversa com a magnífica Ana.

Um produtor de Hollywood está louco para fazer um filme sobre a tua vida mas falta convencer o estúdio, que só avança se for o Spielberg a realizar… ora sucede que dás por ti num elevador com o sôr Steven. Como venderias o teu peixe?
Cheguei a ensaiar uma possível conversa com ele quando estava em Hollywood em 2007, mas claro que hoje o discurso seria outro. Começaria por me apresentar, lembrar que nos cruzámos nos Óscares em 2023 e deixar claro o meu fascínio pela sua obra, que se foi intensificando desde a minha primeira experiência numa sala de cinema até ao último filme, The Fabelmans. Explicaria o quanto me identifiquei com o Sammy e a coincidência de ter em mãos um projeto para o qual ele seria o realizador ideal, precisamente por ser um paralelo dessa sua autobiografia ficcionada. Tal como o menino americano que aprendeu a ver a realidade com as subtilezas que só a lente da câmara capta, esta é a história de uma menina açoriana, que também teve uma máquina de filmar aos seis anos e logo percebeu que nada a fazia ficar mais radiante que habitar situações e viver emoções em frente à câmara. Também aqui sentimos a tensão familiar e a ambiguidade da ciência e da arte, da responsabilidade e da ambição. Também temos a mãe como musa (e como realizadora dos vídeos da infância e da juventude da Ana); a irmã e amigos como elenco adicional; e uma capacidade de liderança que se esfuma nas circunstâncias cada vez mais duras. A nossa protagonista também tem várias casas, em Portugal continental, na ilha, em Londres e em Los Angeles, pelo que exploramos as fricções culturais e as dificuldades de emigrar pelo sonho, deixando a família para trás. Colocamos ainda questões relativas à condição da mulher numa indústria sexista e às complexidades interiores de um percurso feito sem aliados. Enquanto lida com perdas pessoais, vemos como a personagem principal encontra forças para lutar por papéis interessantes, confrontar diariamente a rejeição, sustentar-se a trabalhar noutros ramos e gerar as suas próprias oportunidades como atriz. Sempre que possível, aproveitamos a sua falta de timing, sorte e orientação para acrescentar uns apontamentos cómicos. E, tal como The Fabelmans termina após a reunião com o John Ford, a história da Ana nesta obra acaba neste encontro com o Steven Spielberg no elevador, “a não ser que prefira que seja num almoço que podemos já deixar marcado, seria um final mais épico” – diria eu.

O dia profissionalmente mais feliz da tua vida foi quando e porquê?
Os dias em que filmo são os mais felizes, mas foram muitos, seria impossível escolher. Amei a antestreia da longa-metragem Uma Cidade Entre Nós, da Maria João Ferreira, em Lisboa. Na altura, eu morava em Londres e estava a organizar tudo para regressar a Los Angeles sete anos depois de me ter ido embora. Acho que essa noite foi mágica pela mistura da antecipação de algo por que ansiava muito, com a adrenalina da visita ao meu país para a exibição de um filme que protagonizava, mais o facto de o evento ter corrido maravilhosamente por terem ido imensas pessoas que me são tão queridas. Depois ainda houve uma antestreia em São Miguel e tiveram de fazer uma sessão extra porque o público não coube todo na sala de cinema! Lembro-me também de estar muito feliz a mostrar aos meus pais o hotel fabuloso onde ia ficar no Algarve, durante a rodagem de um filme com o Guy Pearce, e de receber a chamada de um realizador a convidar-me para fazer uma série, numa altura em que me preparava para protagonizar outra longa-metragem! O mais impressionante é que ia ser possível conciliar tudo. Foi uma boa fase.

O que é que Portugal Continental bem poderia aprender com os Açores?
A ter mais calma e paciência, principalmente no trânsito. Aqui as vaquinhas sempre nos ensinaram que podemos demorar muito a chegar a qualquer lado, sei que temos essa vantagem, mas não há necessidade de tanta hostilidade. Podiam também festejar os Dias dos Amigos, Amigas, Compadres e Comadres!
De resto, subscrevo todas as sugestões gastronómicas feitas nas entrevistas anteriores e espero que, além disso, aprendam os segredos da nossa bolacha Maria, biscoitos, bolo lêvedo, massa sovada, enchidos, lapas e chicharrinhos.

De que forma o carácter atlântico, a açorianidade, o ser-se ilhéu influencia o teu processo criativo?
Crescer nos Açores deu-me os alicerces de uma infância perfeita, com contacto diário com a natureza, liberdade total para brincar e imaginar, e convívio com gente genuína e peculiar. Logo em criança percebi qual era a minha vocação. Tento trazer sempre comigo a curiosidade constante e o deslumbramento dessa altura.
Mais tarde, herdei o Sonho Americano entranhado na nossa alma – e comecei a planear o meu futuro nos Estados Unidos. Pude desejar sem limites ou noção do que me esperava para além do horizonte – e recebi toda a minha bravura dessa ingenuidade.
Influenciou-me ainda cada oportunidade de vir a Casa sarar as feridas e regenerar, mas também cada abraço e soluçar das despedidas no aeroporto. Há uma sensação de privilégio quando se viveu num paraíso. E há inspiração em cada lenda, intriga, tradição e surpresa meteorológica. Sinto-me em sintonia com a ilha no borbulhar incansável da criatividade e no ritmo, ora ameno, ora explosivo.

O maior disparate que já ouviste sobre as ilhas é?
Nos Estados Unidos, lembro-me de um amigo assumir que os Açores eram ilhas privadas e que pertenciam à minha família por eu estar sempre a falar delas. No continente, houve quem me perguntasse se tínhamos eletricidade e, outra pessoa, se podia explorar as ilhas de comboio ou de metro. Mas acho que o que mais me arrelia são algumas reações ao sotaque micaelense – e aqui teria demasiados exemplos para dar.

Que crime cometerias se não houvesse castigo?
Não poucas vezes, quem denuncia um crime é que é castigado. E o que eu faria era precisamente isso: denunciar várias situações e fazer-me ouvir com mais frequência e assertividade, sem o medo de ser julgada e rotulada. Quem revela injustiças e exige ser tratado com dignidade facilmente é castigado verbal, moral e psicologicamente; vê oportunidades serem-lhe barradas, e é olhado como desequilibrado ou carente, ignorante ou oportunista, puta ou puritana, diva ou woke (no sentido pejorativo).
Saí quase sempre prejudicada das vezes em que optei pelo confronto, mas espero que a coragem de cometer esta rebeldia continue a crescer em mim, e que a sociedade páre de condenar quem tem valores e defende o progresso e direitos básicos.

Como é que a tua família reage à tua profissão?
Conquistei a aceitação deles e continuo a investir na compreensão. Gostava de chegar ao entusiasmo. Como os meus pais achavam que os atores não conseguiam ter vidas estáveis, sempre senti que tinha de lhes mostrar que não era por falta de determinação ou capacidade que não escolhia outro caminho, mas porque era mesmo uma necessidade seguir Representação. Licenciei-me em Direito e tive dezenas de empregos ao longo dos anos, dando sempre prioridade ao trabalho de atriz, e acho que isso os foi tranquilizando. Hoje, sugerem cada vez menos que tire outros cursos ou que me candidate a empregos fixos, e, cada vez mais, ouço um elogio aqui e uma palavra de encorajamento acolá.
Creio que o que realmente sempre custou mais foi a distância nos períodos em que vivi nos Estados Unidos.

Aquele sonho por realizar é?
Tantos. A nível profissional, entre outros objetivos, quero muito fazer parte do elenco principal de uma longa-metragem ou série com grande alcance internacional, que fique para a História e se torne um clássico. A nível pessoal, gostava, por exemplo, de comprar casa em vários países.

Qual é o sentido da vida?
Se filosofarmos à séria, a resposta não vai agradar ninguém. Posso antes discorrer sobre o que acho que lhe vai dando sentido. Por exemplo, a ligação verdadeira e intensamente cúmplice que conseguimos ter com certas pessoas (independentemente do tipo de relação). Um propósito, que pode surgir por chamamento ou por busca pessoal, ser mais particular ou abrangente, de curto ou de longo prazo, intransigente ou moldável – o importante é que a sua materialização seja pautada por vontade, estímulos e fé. E também a contribuição para uma contínua evolução. Acima de tudo, devemos valorizar esta passagem por cá. Saber que vai haver sempre algo que nos arrancará mais um sorriso sincero. E tentar ser o que o provoca no outro.

Restaurante?
Para os amantes de carne, A Casa do Abel; para os que preferem peixe, o Bar da Caloura; e para os vegetarianos, o Rotas da Ilha Verde.

Vista?
Miradouro da Grota do Inferno nas Sete Cidades.

Banhos/zona balnear?
Poça da Dona Beija (sou friorenta).

Ritual/Tradição?
Cozinho das Furnas, seguido de um passeio no Parque Terra Nostra e banho na piscina termal. Ah, e subir o Pico de 20 em 20 anos!

Artista referência ou que admires (nas ilhas, vivo ou morto)?
O Antero e a Natália serão sempre heróis e referências. Na minha área, destaco a estrela do momento: Augusto Fraga, que está a abrir tantas portas para o Audiovisual na Região; o grande Zeca Medeiros, com quem amava vir a trabalhar; e a Lúcia Moniz, que admiro não só pelo talento gigante, mas também pelo percurso incrível a nível nacional e internacional. Nas artes plásticas, a minha artista preferida é a Susana Aleixo Lopes.

Obrigatório de visitar (museu, associação, teatro, bar, whatever)?
O Ilhéu de Vila Franca, o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas e o Peter Café Sport.

Fale comigo

Tem dicas sobre spots açorianos que merecem atenção? Vistas deslumbrantes e menos conhecidas? Pessoas que vale a pena conhecer? Gostava de sugerir uma história à Embaixada dos Açores ou contar um episódio hilariante sobre malta de fora que tentou apanhar o metro, achou que tinha de nadar até à próxima caixa multibanco ou estava convencida de existir um rio em São Miguel? Envia um email para embaixadadosacores@nullnit.pt

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT