Cinema

O duplo português que perseguiu Keanu Reeves no novo “John Wick”

Francisco Martins tem 36 anos. É especialista em manobras perigosas e tem uma escola de condução de cinema na Azambuja.
Keanu Reeves foi perseguido por este duplo português.

França, setembro de 2020. No centro de Paris, junto do Arco do Triunfo, iniciou-se uma intensa perseguição de carros. Tudo estava planeado ao detalhe, já que se tratavam das gravações do quarto filme de “John Wick”, que chegou aos cinemas portugueses a 23 de março. O ator protagonista, o famoso Keanu Reeves, tinha de conduzir em marcha-atrás para que Wick conseguisse assassinar os seus inimigos e escapar vivo. 

“Ele tinha de fazer uma manobra que é um reverse 180 — ou seja, um pião para trás — e seguir um caminho pré-definido. Quando fez o pião percebi que ele não ia conseguir recuperar o carro. Então servi um bocadinho de escudo porque parei imediatamente e tinha mais carros a perseguirem-me. Levei dois toques por trás — foi uma coisa ligeira, para garantir a segurança dele”, explica à NiT Francisco Martins, stunt precision driver português, que é como quem diz um condutor de automóveis especializado na área do cinema. Faz parte da equipa de duplos de “John Wick”

“Na altura foi engraçado, porque me respondeu com os dois polegares para cima. Mais tarde, encontrámo-nos no décor e ele veio agradecer-me. Estas situações podem acontecer e por isso é que somos escolhidos para estarmos nalgumas posições cruciais para garantir a segurança. É preciso não só saber conduzir, mas entender o que pode ou não correr mal”, acrescenta o duplo de carros de 36 anos, que participa em várias cenas deste filme que tem estado a ser amplamente elogiado — e que alguns críticos até já consideraram o “melhor filme de ação” dos últimos anos em Hollywood.

Nessa perseguição em Paris, desempenhou múltiplos papéis. Conduziu um carro no trânsito da cidade, agindo como figurante especializado, mas também perseguiu diretamente o carro de Keanu Reeves. 

“Houve algumas cenas mais arriscadas. Felizmente fui escolhido para estar sempre em posições cruciais. Ou seja, quando o Keanu Reeves estava a guiar havia pessoas destacadas para estarem em posições mais críticas, porque havia muitos momentos em que ele ia contra o trânsito. Tinha de garantir que estava o mais próximo possível dele, mas sem contacto. Esse talvez tenha sido um dos maiores desafios. Muitas das situações extremamente arrojadas que vão ver no filme foram mesmo realizadas pelo ator — ele faz, de facto, manobras espetaculares. Quem conduzia os carros que estavam mais próximos dele, caso houvesse algum erro, tinham de reagir da forma mais correta em cada momento. Tive oportunidade de lidar com isso. Ou seja, persegui o Keanu Reeves. Ele a conduzir em marcha-atrás e eu colado à dianteira do carro dele.”

Embora seja uma estrela de Hollywood célebre por “Matrix” ou “Speed”, Keanu Reeves é conhecido por mostrar sempre uma postura bastante discreta, sem qualquer tipo de vedetismo. Foi exatamente isso que Francisco Martins encontrou quando trabalhou com ele.

“Ele é, sem dúvida, um exemplo a seguir para todas as pessoas deste meio. Nunca lidei com ninguém que fosse tão humilde e normal. Ele é tão natural… Nós estávamos a gravar nas ruas de Berlim e o trânsito estava cortado a viaturas, mas não ao público. O Keanu Reeves estava sentado no meio da rua, e as pessoas passavam por ele e não percebiam quem era, dada a sua naturalidade. Estavam focadas nos duplos dele, que estavam no meio das câmaras, e não perceberam que estavam ao lado dele. É este o nível de naturalidade dele. Quando dizem ‘ação’ ele é um monstro, mas assim que acaba é uma pessoa humilde e normal. Foi espetacular.”

Antes de ser contratado para participar no quarto capítulo de  “John Wick”, Francisco Martins já conhecia a história, até porque são filmes “feitos por duplos para duplos”. O realizador da saga, Chad Stahelski, era o antigo duplo de Keanu Reeves. Toda essa componente de sequências de ação complexas e coreografadas está muito presente em toda a produção. 

“Nós devíamos ser todos os dias uns 60 duplos em décor.” Um número muito acima da média. “Desde as pessoas que lutavam àquelas que conduziam carros, às que conduziam motas, pessoas de etnias e nacionalidades diferentes para os ambientes distintos que eram criados no filme… Foi fantástico”, diz Francisco Martins, que considera mesmo ter sido um “privilégio” para os duplos.

“Para muita gente, e até para mim neste momento, pode ser o expoente máximo da carreira. Não foi onde fiz as manobras mais loucas, mas sem dúvida porque tinha oportuniade que trabalhar com uma equipa daquelas… Eu, que sigo pessoas que são stunt drivers, trabalhei com nomes que eram os meus ídolos de infância. Desde a pessoa que fez o primeiro looping da Hot Wheels com um carro, a pessoas com recordes fantásticos do Guinness… Estavam ali lado a lado comigo.”

Uma paixão que começou na infância

Francisco Martins é apaixonado por carros desde que se lembra. O pai era piloto de automóveis, mas, como é o mais novo de quatro irmãos, nunca o chegou a ver correr. “Nunca vi carros de corrida do meu pai nem nada disso. Mas, não sei porquê, desenvolvi este fascínio. Sou o único dos meus irmãos que tem esta paixão. O meu pai conversava imenso comigo e eu fazia imensas perguntas: como é que se faz isto com um carro, como é que se faz aquilo?”

Quando era miúdo, o pai levou-o a ver um circo de carros que estava de passagem por Portugal. “Saltavam com os carros em bolas de fogo, iam uns contra os outros. Lembro-me de ver os carros a andarem em duas rodas, fiquei completamente fascinado por aquilo. Tinha um fascínio por acidentes de automóvel, pelos carros batidos e pelos acidentes dos filmes. Mas crescemos a pensar que isso é só acontece em Hollywood, não cá. Sempre cresci com a ideia de que isto não era para mim, não era para nós, para este país.”

Sonhou em ser também piloto, embora depois tivesse seguido Engenharia Física e, mais tarde, fizesse também um curso em Gestão. Depois de tirar a carta, fez diversas formações de condução. “Sempre quis aprender, treinar e fazer mais. Fiz formações de condução defensiva, condução desportiva… Acho que passei por todas as que existiam em Portugal na altura.”

Em 2013, abriu uma oficina em Sacavém, a Wild Motors. Aproximou-se ainda mais dos carros e dois anos depois, determinado a especializar-se, viajou para os EUA para uma “formação intensiva” de condução para cinema, e stunt driving em particular. “Foi espetacular, uma experiência única. Também comecei a entender como funcionava o mercado e o meio.”

Conseguiu o seu primeiro trabalho em 2016, quando foi contratado para conduzir um carro num anúncio publicitário gravado em Portugal. Como também sempre teve uma “paixão por ensinar”, começou a trabalhar como instrutor e monitor em eventos de automóveis. Entretanto, ia treinando como podia, mas não era fácil. 

“Era um bocadinho underground, porque alguns carros, para executar algumas manobras que vemos no cinema, têm de estar alterados… Sendo assim, não estão propriamente legais para circularem na via pública. Então tinha que escolher um sítio, uma hora muito tardia, e procurava treinar sem chamar à atenção de ninguém… Ou então tinha que alugar um espaço, como parques de estacionamentos de empresas, que, às vezes, era um muito dispendioso”, explica.

Certa vez, precisou de ensaiar uma série de “capotamentos”, uma manobra “demasiado arrojada para ser feita ao alcance dos olhos do público”. Nesse caso usou um espaço chamado Drift Land, na Marinha Grande, “onde se fazem provas e treinos de drifts”.

Por volta de 2017 conheceu David Chan Cordeiro, o principal duplo de cinema em Portugal, cuja história a NiT já contou. Foi ele que desafiou Francisco Martins a fazer mais uma formação internacional, desta vez numa escola irlandesa. Francisco gostou tanto que acabou por voltar para fazer uma formação enquanto instrutor. E essa experiência também lhe abriu portas.

“O meu instrutor lá é que me convidou para fazer a ‘Rainha do Sul’, em Malta.” Foi o primeiro grande trabalho de Martins e, entretanto, começou a trabalhar regularmente em produções portuguesas. Participou em “Ouro Verde”, “A Herdeira”, “Onde Está Elisa?”, “Circo Paraíso”, “Valor da Vida”, “Conta-me Como Foi”, “Na Corda Bamba”, “Auga Seca”, “Glória” ou “Golpe de Sorte”. Trabalhou ainda no filme sueco “Ett Sista Race” e na série norte-americana “Lioness”, ainda por estrear. 

Mas foi o seu desempenho em “Os Anjos de Charlie”, o filme que fez regressar a saga em 2019, que lhe abriu as portas para o novo “John Wick”. “Foi um excelente trabalho, tive uma ótima performance e na altura tornei-me conhecido dos coordenadores locais de duplos, que me convidaram a enviar os meus vídeos de apresentação, para passar por um processo de seleção para o ‘John Wick’.” Acabou por ser selecionado.

Francisco Martins com David Chan Cordeiro.

Em “Os Anjos de Charlie”, fez uma manobra “arrojada” que se tornou quase um “cartão de visita” para o filme, um “reverse 360”. “Fui eu que a sugeri, dadas as características da cena e aquilo que eles precisavam de fazer. Já a tinha executado no passado, mas não é nada comum e acho que se tornou um bocadinho um cartão de visita.”

Em abril de 2022, abriu uma escola de condução de cinema, a Stunt Driving School, em Aveiras de Cima, no concelho da Azambuja. Francisco Martins supervisiona e dá vários cursos, que ultimamente têm sido esporádicos, porque tem passado bastante tempo a trabalhar fora do País. Ainda assim, conta que “tem corrido bem” até porque há “imensas pessoas interessadas”. “O meu objetivo com a escola foi criar um espaço para poder ensinar e formar pessoas nesta área; e ter um espaço para treinar. Em Portugal sentia muito essa necessidade.”

Como é um especialista da área, é o próprio Francisco Martins que altera os carros que conduz. Na sua escola tem veículos muito distintos. “Quanto mais carros diferentes conduzirmos — e tenho vários na escola, todos eles diferentes — desenvolvemos uma maior capacidade de adaptação a todas as situações. Porque nunca sabemos o que vamos encontrar num filme. Quando vou para uma produção, não sei à partida o que vou conduzir, nem em que condições vai estar o veículo. Muitas vezes, as coisas não são reveladas até que nós cheguemos por causa dos contratos de sigilo. Ou ainda não está decidido ou o carro ainda está a ser transformado. E eu tenho muitos carros — por pancada ou paixão — porque gosto de ter modelos de todos os tipos para os experimentar.”

Apesar de admitir que a globalização dos mercados de trabalho na indústria do cinema e da televisão seja positiva para os profissionais europeus — visto que há muitas produções norte-americanas a serem gravadas por cá, com o apoio de equipas locais — Francisco Martins sublinha que sofre de uma desvantagem.

“O mercado para mim está sempre mais fechado, porque cada vez mais os duplos fazem um pouco de tudo. Acabam por poupar dinheiro à produção. E eu só conduzo carros, não faço quedas, nem trabalho com armas. Se precisarem de um ator para sair do carro e lutar, já não sirvo. Para a minha posição teriam de contratar duas pessoas. E aí, provavelmente, sou posto de parte. Nesse sentido não é uma coisa boa. Para todos os que pensam iniciar-se nesta área, recomendo que tenham mais do que uma especialização. Para mim é mais difícil, porque também já comecei tarde. A vantagem que tenho é que, como só treino e faço isto, acabo por estar mais confortável atrás do volante do que uma pessoa que não tenha tanto tempo de treino. Acabo por viver no meio dos carros 365 dias por ano. É um exagero, mas o meu dia a dia é a mecânica automóvel — o que também pode ser uma boa skill, porque conseguimos comunicar e entender melhor o que podemos ou não fazer com o carro. Mas é possível vingar, há cada vez mais mercado, cada vez mais filmes americanos a serem filmados na Europa. As fronteiras estão abertas.”

Em relação ao trabalho que fez em “John Wick: Capítulo 4”, reconhece que a “expetativa é elevada”.  “As cenas em que estive envolvido tinham de facto uma dimensão brutal e estou super curioso para ver o resultado final.”

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