Cinema

“On Falling”: o filme sobre uma emigrante portuguesa está a conquistar o cinema europeu

A longa-metragem valeu vários prémios à realizadora Laura Carreira e a Joana Santos, a protagonista. A NiT esteve à conversa com a atriz.
Estreia esta quinta-feira.

Joana Santos esteve quase para não ir ao último casting de “On Falling”, o filme da cineasta portuguesa Laura Carreira, que chega aos cinemas portugueses esta quinta-feira, 27 de março. A atriz de 39 anos tinha acabado de perder a avó e tudo o que queria era fazer companhia à mãe.

Ainda assim, arriscou. Chegou ao casting “completamente vazia e sem grandes expectativas”, mas acabou mesmo por ser escolhida para interpretar Aurora, a personagem principal de “On Falling”. O filme narra a história de uma jovem portuguesa emigrada que trabalha como picker (responsável por preparar os pedidos, reunindo os diferentes artigos) num armazém na Escócia. 

Presa entre os limites do local de trabalho e a solidão do apartamento partilhado, a jovem começa a perder o seu sentido de identidade. A partir das dificuldades económicas e profissionais da protagonista, são abordados temas como a precariedade e a luta pela sobrevivência.

A interpretação de Joana Santos levou-a aos prémios na 65.ª edição do Festival Internacional de Cinema de Salónica, na Grécia, onde recebeu o galardão para Melhor Atriz — e esta não foi a única distinção do filme. A primeira longa-metragem de ficção da realizadora portuguesa Laura Carreira recebeu o prémio de Melhor Realização do Festival de San Sebastián, o maior da Península Ibérica, e venceu a competição de longas-metragens no Festival de Cinema de Londres.

A obra, “poderosa, hipnotizante e ousada”, é, segundo o júri desta última competição, um “retrato rico em camadas de um mundo governado pela motivação do lucro empresarial”. A NiT esteve à conversa com a atriz que interpretou Aurora para perceber quais os maiores desafios de protagonizar uma jovem que “se sente sozinha e está a lutar contra a solidão”.

Como surgiu a oportunidade de interpretar Aurora?
Primeiro foi através de self-tape, em abril de 2023. Na altura estava com um bocado de receio porque achava que o meu inglês não iria ser suficiente e tinha noção que era um filme completamente falado nesta língua. Mas resolvi arriscar e passei à última fase. Foi um dia estranho para mim porque a minha avó tinha morrido nessa semana, estive para não ir ao casting porque achei que não fazia sentido, que o melhor era ficar com a minha mãe.

O que a incentivou a ir?
Foi a minha mãe que me disse para ir, que a minha avó ia ficar muito orgulhosa de mim. E fui, completamente vazia e sem grandes expectativas, mas acabei por ser escolhida. 

Interpretou Aurora.

Como foi a sensação de ter sido escolhida?
Só quando me deram a notícia, em agosto, é que ganhei mesmo consciência de que tinha sido escolhida para fazer este papel e que ia mudar-me para a Escócia durante dois meses. Assim que terminei de ler o guião, virei-me para o meu marido, assustada, porque estava presente desde a primeira até à última cena. Percebi que o filme era completamente focado na minha personagem, algo que acarreta uma responsabilidade enorme, mas que, ao mesmo tempo, me deixou feliz. Foi uma mistura de emoções.

Qual foi a primeira impressão da história quando leu o guião?
Lembro-me que achei que era uma história muito bonita, muito bonita, que ainda bem que a Laura [Carreira] estava a contá-la. Não tinha noção do quanto este trabalho exige de uma pessoa.

Apesar de não ter essa noção, identificou-se de alguma forma com a personagem?
Sim, identifiquei-me. Apesar de ser uma privilegiada ao fazer aquilo que gosto, sei o que é às vezes sentir um vazio, a solidão. Esta personagem está carregada desses sentimentos. Como costumo dizer, emprestei as minhas emoções à Aurora.

Como é que descreveria a Aurora?
É uma menina que se sente muito sozinha devido ao trabalho que tem, que ainda não percebeu bem o sítio onde está e que tenta lutar contra a solidão. A história passa-se entre a fábrica e a casa onde vive com outros emigrantes, mas com quem é difícil criar ligações porque passaram 10 horas a trabalhar, sozinhos. Acho que acaba por perder um pouco a identidade dela.

E a personagem apercebe-se disso?
Há um momento crucial no filme em que ela se debate com isso, quando vai a uma entrevista para um novo trabalho e perguntam-lhe o que é que ela gota de fazer depois do trabalho. Ela não sabe responder. Para mim é dos momentos mais tristes, a constatação de que não há nada além do trabalho, que por si só já é bastante duro e solitário, e que lhe tira toda essa felicidade.

Numa altura em que há cada vez mais portugueses a emigrar, acha que vão conseguir identificar-se com a situação?
Tenho recebido várias mensagens de pessoas que viram o filme e que se identificaram com a personagem. Independentemente de trabalharem ou não neste tipo de fábricas, hoje em dia a maioria dos trabalhos consome-nos muito. Andamos numa espécie de sobrevivência, não conseguimos construir família, ter um carro, fazer férias, nem mesmo arrendar uma casa.

Já alguma vez se sentiu sobrecarregada dessa forma?
Apesar de ser privilegiada e trabalhar naquilo que gosto, claro que já me senti sobrecarregada. Sou mãe de duas crianças e às vezes é difícil conciliar tudo, mas tenho uma boa rede de apoio. Caso contrário nunca teria conseguido fazer o filme, que me levou a mudar de país durante dois meses. Morri de saudades da minha família.

Qual foi o maior desafio de interpretar Aurora?
Foram as cenas de picking na fábrica. Fiz isso durante horas, com uma equipa por trás que me trazia café ou chá quente, por isso não consigo imaginar como é fazê-lo todos os dias. É um trabalho muito duro, além de ter passado muito frio. Ao mesmo tempo, tinha que fazer uma espécie de coreografia para a câmara para o público perceber realmente como era o trabalho.

Durante as gravações teve oportunidade de conviver com pessoas que trabalham em fábricas semelhantes?
Nesta em específico não, mas fui com a Laura, duas semanas antes, a uma fábrica de peças de carros, tentar perceber com alguns trabalhadores como era a rotina e como era o trabalho. O que fiz muito foi ver vídeos de pickers para me preparar.

Qual foi o melhor momento nos bastidores?
Houve muitos momentos engraçados. Apesar de ter sido duro interpretar a personagem, a equipa era incrível. A Laura tinha um sentido de humor fantástico e estávamos sempre a rir. Lembro-me também de quando fomos visitar a tal fábrica e de não perceber nada do tempo todo que lá estive, porque na Escócia têm um sotaque super carregado. Não percebi nada, nenhuma palavra.

Teve a oportunidade de explorar o país?
Nas pausas aproveitava para decorar o texto e descansar, até porque o tempo também não estava lá grande coisa. É a Escócia. Mas fazia mais vida de bairro, encontrava-me com o pessoal ao final do dia para ir beber um copo na zona de Glasgow, que era onde estávamos hospedados.

O filme já recebeu várias distinções. Estava à espera deste reconhecimento?
Confesso que não estava à espera que fizesse tanto burburinho. Da primeira vez que o vi passei o tempo todo a analisar-se, a ver o que poderia ter feito melhor. Da segunda vez, já o vi com outros olhos e percebi realmente que é um filme muito bonito, muito humano e muito necessário nos dias de hoje.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT