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Os gémeos palestinianos que se tornaram símbolo da resistência a fazer filmes sobre Gaza

Arab e Tarzan Nasser venceram o prémio de Melhor Realização em Cannes.

Em maio, os irmãos gémeos Arab e Tarzan Nasser conquistaram o prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes com o filme “Once Upon a Time in Gaza”, filme que é um dos destaques das estreias do cinema. Chega às salas nacionais a 16 de outubro.

A distinção foi mais do que uma vitória pessoal. Representou o concretizar de um desejo antigo: verem a sua terra natal apresentada nas salas de cinema, da forma como sempre a conheceram, para lá das constantes imagens de guerra.

A verdade é que os gémeos nasceram em 1988, em plena violenta primeira intifada, precisamente no mesmo ano em que as últimas salas de cinema em Gaza encerraram devido à invasão israelita. Cresceram sem cinemas, mas rodeados de papel, paredes e qualquer superfície onde pudessem desenhar, pintar e criar histórias. Recordam ainda hoje, em entrevista ao francês “Le Monde”, as muitas horas passadas a copiar cartazes de filmes.

O interesse pelas artes levou-os à Faculdade de Belas-Artes da Universidade Al-Aqsa, onde se formaram em Arte e Design. A instituição, uma referência da resistência cultural na Faixa de Gaza, viria mais tarde a ser destruída por bombardeamentos.

Antes de se lançarem no cinema, ficaram conhecidos por um projeto de posters precisamente chamado Gazawood, criado em 2010. Nesse mesmo ano, a iniciativa ajudou- os a vencer o prémio de Melhores Jovens Artistas da A.M. Qattan Foundation, associação que promove a cultura no território. O projeto consistia em criar cartazes fictícios de filmes — sempre pintados à mão — que misturavam o imaginário de Gaza com o cinema americano, numa linguagem visual que pretendia afirmar que os palestinianos “também têm cultura, imaginação, humor”, explicaram os irmãos de 37 anos à “GQ Middle East” em outubro.

As exposições internacionais do projeto abriram caminho para os primeiros trabalhos no cinema. Estrearam-se em 2013 com a curta “Condom Lead”, selecionada para a competição oficial de Cannes. Um feito inédito para realizadores da Faixa de Gaza.

O filme, produzido com “um orçamento bastante modesto”, acompanha um casal que tenta manter a intimidade enquanto bombas explodem à sua volta. “Queríamos criar uma história sobre amor e sobrevivência, mas também sobre a absurda normalidade da guerra”, explicaram.

Dois anos depois, lançaram a longa “Dégradé”, que se desenrola quase inteiramente num salão de beleza em Gaza, onde um grupo de mulheres enfrenta o caos exterior. A obra passou pelos festivais de Cannes, Veneza e Toronto e consolidou o tom satírico e político que distingue o seu trabalho. “O nosso prazer enquanto cineastas é reconstruir Gaza fora de Gaza”, afirmou Arab Nasser ao “Le Monde”. “O nosso cinema é feito à mão. Construímos cada cenário, cada cor, cada detalhe. Não é só estética, é sobrevivência”, acrescentou Tarzan.

Esta abordagem evoluiu até culminar em “Once Upon a Time in Gaza”, um projeto desenvolvido ao longo de dez anos. A obra, descrita como um western palestiniano, recorre a found footage com mais de duas décadas e retrata, com uma mistura de realismo, tragédia e humor, o início do bloqueio à Faixa de Gaza em 2007. Entre as personagens está Osama, interpretado por Majd Eid, cuja construção reflete traços pessoais dos próprios irmãos. “Há detalhes de nós mesmos que quisemos incluir no Majd, desde a nossa personalidade a aspetos físicos”, revelaram em Cannes.

 

A atenção nas redes sociais surgiu logo após o prémio, não apenas por causa do filme, mas por uma frase dita ao “The New Arab” que se tornou viral. “As armas são uma forma de resistência. Mas, no fim de contas, toda a Faixa de Gaza, todos os palestinianos que lá vivem, resistem. E nunca desistem, nunca se rendem. Continuam sempre e continuarão até recuperarem os seus direitos.” Arab dedicou ainda o prémio ao seu povo: “Para todos os palestinianos: a vossa vida e voz importam. A Palestina vai ser livre”.

Este discurso direto tornou-se uma das suas imagens de marca. Descrevem a infância em Gaza como um tempo de constante risco, mas onde ainda assim encontravam espaço para a felicidade. Viam filmes em cassetes contrabandeadas e desenhavam para abafar os sons das explosões. O episódio mais marcante da infância terá sido a destruição da escola primária. “Voltámos dias depois e vimos os nossos desenhos espalhados no chão, cobertos de pó e vidro. Foi nesse momento que percebemos que queríamos guardar memórias, imagens e vidas”, contaram à “GQ”.

Apesar do reconhecimento internacional e de há muitos anos viverem na Jordânia, os irmãos mantêm uma ligação profunda às raízes e a Gaza, que visitam regularmente. Arab revelou que a primeira chamada após o prémio em Cannes foi para a mãe. “Ela estava preocupada a ver as notícias sobre o massacre e eu estava num hotel em França. Foi um contraste absurdo, mas é assim que vivemos. Fazer filmes, para nós, não é só um ato político, mas também íntimo. Não queremos mostrar só sofrimentos. Também queremos mostrar vida.”

A crítica tem destacado a sua forma de cruzar política com humor, ferramenta que consideram essencial. “É o humor que nos salva. Em Gaza, se não sabes rir, não sobrevives”, disse ao “The New Arab”. “Mas um dia isto vai acabar.”

Atualmente, dividem o tempo entre a Palestina, França e Egito. Estão a trabalhar no próximo projeto, um filme sobre três mulheres que vivem em Gaza e enfrentam, cada uma à sua maneira, a realidade do bloqueio. Continuam a trabalhar com equipas pequenas e orçamentos reduzidos.

Leia o artigo da NiT para conhecer alguns dos filmes que vai poder ver no DocLisboa (muitos também se debruçam sobre o conflito em Gaza).

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