Fernando Pessoa é, obviamente, um dos autores mais conceituados e conhecidos de sempre da língua portuguesa. Contudo, o artista que morreu em 1935 (apenas com 47 anos), tinha outros interesses relacionados com a escrita. Foi dramaturgo, ensaísta, crítico literário, comentador político, tradutor, publicitário. E ainda fez algumas experiências ligadas ao cinema.
Em 2011, foi publicado “Fernando Pessoa — Argumentos para Filmes”, uma coleção de ideias mais ou menos dispersas para criar histórias de filmes. Foi um trabalho de pesquisa de Patrício Ferrari e Cláudia J. Fischer, que mergulharam a fundo no espólio do escritor para fazerem esta compilação. Alguns dos textos já tinham sido divulgados em 2007, no livro “Courts-Métrages”, de Patrick Quillier.
Um desses esboços de argumento foi “Note for a Thriller, or Film”, que agora foi concretizado pelo realizador e guionista Pedro Varela (“Esperança”, “Os Filhos do Rock”), a partir de uma proposta da Agência Uzina para a Samsung — isto porque o filme foi todo gravado com o novo telemóvel Samsung Galaxy S21 Ultra 5G.
O resultado é “O Ídolo”, uma curta-metragem que tem entre 15 e 20 minutos que estreia na próxima quarta-feira, 12 de maio, no site da marca — embora Pedro Varela revele à NiT que talvez o filme esteja em exibição nalgumas salas de cinema, de forma gratuita, como incentivo para atrair novamente os espectadores ao grande ecrã. Além disso, o foco também é internacionalizar a curta — a estratégia é fazer uma “estreia mundial” online.
“O Pessoa deixou várias ideias para filmes, são ideias de uma página. É como aquele amigo que tu encontras e diz que tem uma ideia para um filme. E depois começa-te a contar. E depois tens que fazer tudo, porque ele só te está a dar a ideia”, explica à NiT Pedro Varela.
“E o Pessoa na altura já era muito influenciado pelo cinema do Hitchcock, que tinha estreado o primeiro filme em 1927. Ele tinha uma influência do cinema de grande escala. Apesar de ser a altura do expressionismo alemão e de já haver um certo cinema autoral, como o ‘Metropolis’, por exemplo, a atenção dele estava num cinema comercial muito chamativo. Ele começou logo a pensar na produção de filmes em série, ele já estava a imaginar uma indústria! Eles realmente estavam à frente, a ter uma visão e este filme que ele nos deixa vem com esta escala. Ele já nos estava a sugerir um género e tinha a ideia de abrir uma produtora em Lisboa”, acrescenta.
“Quando eu agarro nessa página e meia onde ele nos dá a ideia, o meu grande desafio e a minha sublime honra é eu poder dar continuidade a uma ideia do Pessoa. E isto para mim é uma oportunidade única. Daí foi criar as personagens. Obviamente, houve um grande trabalho não só de entrar no universo pessoano, e há aqui muitas homenagens, mas houve um trabalho de pesquisa, algumas questões biográficas, porque a história passa-se no final dos anos 20.”
A partir deste esboço escrito há quase 100 anos, várias personagens de diferentes origens recebem a difícil missão de transportar um artefacto de valor incalculável a bordo de um navio que faz a travessia transatlântica entre Nova Iorque, nos EUA, e Southampton, no Reino Unido. É o ponto de partida de uma aventura onde ninguém é quem aparenta ser.
“O Pessoa deixou várias ideias, todas ancoradas na mesma premissa: objetos valiosos, a questão de honra, e transatlânticos. Temos um filme sobre um homem, Augusto Souto, que aceita o desafio de um amigo milionário de trazer um objeto de grande valor nesta viagem onde toda a gente deseja e fará tudo para conseguir este objeto. E é uma história muito moderna, ele já se debruçava sobre as questões do ego de uma forma brutal. Nós vivemos num mundo onde o ego nos domina e nos controla e nos rodeia. E ele já falava sobre essa grande vaidade dos homens. É um filme sobre isso, sobre narcisismo, sobre querer poder, e a nossa sociedade vive sobre isso. Em vez de nos preocuparmos com que o valor possa ser oxigénio e a água limpa no mar, preocupamo-nos é que o nosso carro seja topo de gama, que o relógio… não todos, mas grande parte da sociedade. E ele já queria olhar muito sobre isso.”
Pedro Varela diz que o compromisso que fez consigo próprio foi o de fazer o filme tal como Pessoa tinha imaginado — dentro do possível, claro. “Ou seja, passa-se no final da década de 20 — podíamos ter adaptado a ideia para os dias de hoje, fazer uma viagem que fosse um sonho, mas não, é mesmo um filme que se passa naquela época e tem aqueles elementos. E isso está na roupa, no cenário, na banda sonora que é brilhante, do João Bruno Soeiro.”

O realizador explica que aquilo que lhe mais agrada no seu trabalho é o momento em que está à frente da folha vazia, do “vazio fértil”, como descreve. “Aqui tive uma ajuda brutal e pude partilhar uma sala vazia e um momento de silêncio com o Fernando Pessoa, e o que é que comecei a fazer? Reli, reli, reli as vezes suficientes e daí começam a surgir personagens e começo a perceber as decisões pragmáticas que posso tomar como realizador.” Pedro Varela quis equilibrar as ideias em inglês de Pessoa — porque o autor “só pensava no cinema em inglês, porque eram as suas referências” — com a língua portuguesa, de que foi um dos maiores embaixadores.
A questão de gravar um filme com um telemóvel foi encarada como um desafio entusiasmante. “Porque havia o desafio de poder trabalhar uma narrativa com um gadget tão pequeno como um telefone, e eu sou atento ao pessoal que vai filmando com novos equipamentos. Como, por exemplo, o Steven Soderbergh [‘High Flying Bird’]; como o ‘Tangerine’ [de Sean Baker], que esteve em Sundance; ou o Damien Chazelle [‘The Stunt Double’].”
“Foi gente de cinema a fazer cinema com um telefone. E foi engraçado ver uma equipa de 40 pessoas à volta de um telefone. Tínhamos camiões, geradores, projetores, make-up, trailers, e depois estávamos todos confinados a uma coisa que ia na mochila que tem o tamanho da palma da tua mão.” Apesar de não se poder comparar com as câmaras profissionais, Pedro Varela diz que se “comportou maravilhosamente”. “Quando se tem um telefone que cumpre tecnologicamente aquilo de que precisamos, só precisamos de pôr o talento à frente da lente. Fazer cinema requer equipas, direção de arte, argumento, guarda-roupa, tudo e mais alguma coisa. E é a velha história: não é por existirem câmaras assim que toda a gente vai fazer grandes filmes. Já existe papel e caneta há muitos anos e nem toda a gente escreve um grande livro.”
O elenco inclui nomes como Tiago Felizardo, Soraia Tavares, Ana Vilela da Costa e Paula Magalhães, entre outros. As gravações aconteceram durante seis dias entre Viana do Castelo, a Serra de Sintra e Lisboa, há cerca de um mês — o projeto foi apresentado a Pedro Varela (que trabalhou com a produtora Blanche Filmes) no final do ano passado.
O realizador descreve “O Ídolo” como “um quinto de uma grande produção” e, apesar de realçar que não está nada previsto, deixa a porta aberta para que o projeto tenha uma vida maior. “Eu sei que este é um projeto que pode viajar e crescer para algum lado. As pessoas acabaram de ver na antestreia e foi ‘porque é que isto não é uma série?’ Tem mais do que pernas para ser uma longa-metragem ou uma série, por exemplo. Quem nos dá esses empurrões é o público, e os produtores e a imprensa. Eu nunca tinha feito um trabalho de época tão acentuado, obviamente é um trabalho reforçado em muitas questões mas depois é um prazer muito indescritível veres as coisas ganharem vida e olhares para aquilo mesmo como um pedaço do passado. É muito giro.”
