Passaram 23 anos desde que Rui Pedro desapareceu de Lousada, a vila onde a família vivia. O caso, que teve alguns (mas poucos) desenvolvimentos ao longo dos anos, tornou-se imensamente mediático por todo o País. A 14 de outubro, estreou nos cinemas “Sombra”, um filme que se inspirou bastante nesta história real para contar uma narrativa que se aplica a tantas outras famílias — o foco está na dor de quem perde, na angústia de quem fica, e também na esperança que existe sempre de se poder reencontrar um filho desaparecido.
Realizado e escrito por Bruno Gascon — nesta que é a sua segunda longa-metragem —, o guião foi construído com base em conversas que o cineasta teve com famílias de crianças que desapareceram. Filomena Teixeira, a mãe de Rui Pedro, foi a influência maior, como Gascon assume numa entrevista à NiT.
O enredo passa-se ao longo de 15 anos e começa imediatamente com o momento do desaparecimento de Pedro. O rapaz de 11 anos que desaparece não é uma personagem — é uma figura ausente, que aparece somente nas fotos felizes de família e nos cartazes de “procura-se” que são entregues na rua e colados às paredes.
Trata-se de uma terra pequena e pacata, em que a maioria das pessoas se conhece, onde ninguém desconfiava que algo assim pudesse acontecer. De imediato há um suspeito, um rapaz mais velho com quem Pedro costumava conviver, mas o interrogatório da polícia local — que nunca teve de lidar com um caso destes — não resulta em praticamente nada.
Quando a Polícia Judiciária intervém, passados vários dias, não consegue ajudar na investigação, até porque descarta pistas por preconceito — como, por exemplo, quando uma prostituta explica que esteve com o rapaz desaparecido na tarde em que foi visto pela última vez, e o seu depoimento não é sequer considerado para o processo.
A família está desesperada e a tentar tudo por tudo — até ao momento em que só encontram becos sem saída. A grande figura do filme é a mãe Isabel, interpretada por Ana Moreira. É ela que acompanhamos ao longo de toda a narrativa, somos guiados pela sua personagem.
Ao longo dos anos, a família vai aceitando e aprendendo a lidar com o que aconteceu. O avô morre uns anos depois, o pai resigna-se a seguir em frente, a irmã mais nova tem a própria vida. Mas Isabel não consegue desistir. É ela que continua obcecada com o caso, que tenta que ele não caia em esquecimento, que está disposta a tudo — incluindo momentos muito dolorosos — para ter a hipótese de ver o filho uma última vez ou de saber o que realmente aconteceu. É ela que, contra tudo e contra todos, após ser chamada de maluca e de a tentarem enganar, acaba por empurrar o caso para a frente com os anos, o que coincide com uma nova investigação da PJ e nalguns desenvolvimentos que resultam num julgamento.
Não há muitos filmes como “Sombra” em Portugal. É um drama profundo de contornos noir, que nos envolve completamente na investigação do caso e na luta desta mãe, que é a essência da história. É difícil encontrar as palavras certas para descrever o trabalho de Ana Moreira neste filme. A atriz de 41 anos é brilhante como Isabel. Serão muito poucos os papéis deste nível feitos em Portugal nos últimos anos. Ana Moreira, que tem imenso tempo de ecrã, está completamente irrepreensível em todos os momentos. Além do desafio de interpretar emoções tão difíceis, com diferentes camadas, a personagem percorre vários anos e acaba por se apresentar de forma distinta ao longo dessa evolução natural. Ana Moreira é a alma de “Sombra” e é impossível imaginar este filme com outra atriz.
O restante elenco também cumpre muito bem o seu papel, com destaque para Vítor Norte como o avô de Pedro, Miguel Borges como o pai, e Tomás Alves como o inspetor da PJ que agarra o caso na segunda investigação. O filme culmina no tal julgamento, tenso e envolvente, em que Ana Bustorff brilha como procuradora.
Tal como Bruno Gascon pretendeu fazer desde o início, “Sombra” é um filme realista, sem sensacionalismo, pesado e muito triste — como não podia deixar de ser — mas com que as famílias reais que contribuíram para a construção do guião se podem certamente identificar. A direção de fotografia é exímia, “Sombra” tem uma estética noir rara em Portugal e a caracterização faz um trabalho muito relevante. Tudo isto são argumentos para que este filme seja visto nos cinemas. Porque merece — e muito.
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