No verão de 1995, estreou nos cinemas um filme independente que se viria a tornar uma produção de culto. “Kids”, realizado por Larry Clark, acompanhava um grupo de adolescentes marginais em Nova Iorque, e o seu dia a dia profundamente marcado por sexo, drogas e skate. Muitos espectadores acreditaram mesmo que o filme era um documentário — e não estavam assim tão longe da verdade como se podia pensar.
Mais de 25 anos depois, estreou em junho, no Tribeca Film Festival, o documentário “The Kids”, que reflete sobre o legado problemático do filme e as condições em que foi feito. Foi realizado pelo cineasta Eddie Martin, mas foi uma ideia original (e já antiga) de Hamilton Harris, um dos vários atores não profissionais que protagonizaram o filme e que têm ressentimentos com tudo aquilo que se passou.
Nos cinemas, para o público, foi um filme em grande parte chocante — pelo retrato que faz do uso de drogas e da sexualidade quase obsessiva na adolescência. Foi alvo de muitas críticas por isso, mas também foram elementos que o tornaram num enorme sucesso de bilheteira. Na altura arrecadou mais de 20 milhões de dólares — hoje corresponderia a cerca de 36 milhões (o equivalente a 30 milhões de euros).
Um dos grandes problemas apontados ao filme produzido pelos irmãos Weinstein é que os atores não profissionais e desconhecidos, que compuseram a grande maioria do elenco e eram a própria fonte de inspiração para o projeto, não receberam quase nada deste valor. Ao longo dos anos ficaram cada vez mais frustrados com a situação e muitos nunca conseguiram ter uma carreira. Este é um dos tópicos abordados no documentário que ainda não se sabe se terá distribuição comercial.
Como é que “Kids” começou a ser feito?
Há uma base muito verídica para a história de “Kids”, daí que o filme tenha um registo bastante documental. Havia realmente uma comunidade de jovens adolescentes marginais e pobres em Nova Iorque, que andavam de skate, bebiam, usavam drogas e exploravam a sua sexualidade.
O realizador Larry Clark, que já estava na casa dos 50 anos na altura, tinha publicado um livro de fotografia sobre sexualidade na adolescência, “Teenage Lust”. Segundo o novo documentário, o cineasta tirava fotos aos skaters em troca de erva. E este era apenas um dos seus vários comportamentos inapropriados.
Foi assim que muitos dos miúdos terão sido recrutados para fazer parte do elenco de “Kids” — embora também tenha havido outsiders vindos de outros locais e contextos. Jon Abrahams, um destes atores que não fazia parte do grupo original, lembra-se de, no documentário, ser pressionado pelo realizador durante uma cena romântica com uma atriz. Clark ter-lhe-á dito de forma insistente para “roçar realmente na virilha” dela.
“Acho que quando és um miúdo de certa idade, é nisso que pensas. Pensas em sexo a toda a hora”, disse o realizador Larry Clark numa conferência de imprensa na época no festival de Cannes, com uma postura evasiva, recusando-se a revelar a idade de todos os atores envolvidos. “Eles tinham a idade certa para o filme — não sei o que queres dizer com isso”, respondeu a um repórter.
Uma das entrevistadas no documentário é uma rapariga que fazia parte do grupo original de skaters e que ia participar no filme, até achar que não fazia sentido. “Da perspetiva das raparigas, o nosso papel passou completamente ao lado”, alega Highlyann Krasnow. “Eram pessoas que considerávamos a nossa família. O Justin [Pierce] era meu irmão. Para mim isso é uma história muito mais poderosa do que violação e misoginia. Optámos por não [participar] porque não havia nada com o qual estivéssemos confortáveis e depois todas estas outras pessoas começaram a chegar de fora.”
Ou seja, havia a sensação latente de que se tinha ignorado as partes positivas destas amizades fortes que existiam entre aqueles miúdos — que se tinha optado por os representar de uma forma totalmente sem valores morais e empatia.
Clark e a argumentista Harmony Korine, que escreveu a história com base em experiências reais daqueles miúdos de Nova Iorque, sempre alegaram que não tinham sido usadas quaisquer drogas durante as gravações, mas vários depoimentos no novo documentário contradizem esta informação, dizendo que era habitual fumar-se erva no set. Larry Clark é descrito por vários atores de “Kids” como sendo um sujeito bastante mais velho, chegando mesmo a ser bizarro e arrepiante, que os explorou e alcançou dinheiro e fama à sua custa.
Uma das principais razões pela qual “Kids” parece tão chocante é porque, na verdade, assim o era, defende o documentário. Nem Clark nem Korine aceitaram fazer parte da produção documental. As duas atrizes cujas carreiras de sucesso foram lançadas a partir de “Kids”, Rosario Dawson e Chloë Sevigny, também não participam.
As duas mortes chocantes
O documentário sugere que duas das principais estrelas de “Kids”, Justin Pierce e Harold Hunter, não teriam morrido tão precocemente se não tivessem participado no filme. Pierce, que antes morava na rua, até teve alguns papéis como ator após o sucesso de “Kids”, mas acabou por se suicidar em 2000 em Las Vegas — sendo que o aborto da sua mulher também poderá ter sido um fator decisivo para tomar a decisão de tirar a própria vida. Enforcou-se num quarto de hotel quando tinha apenas 25 anos.
Harold Hunter, cujos pais tinham morrido de problemas com drogas, nunca terá conseguido alcançar uma vida estável. O ator, que alegou só ter recebido mil dólares pela sua participação no projeto, acabou por voltar ao bairro social onde cresceu. Morreu de overdose de cocaína em 2006, no seu apartamento. Tinha 31 anos.
“Só estávamos preocupados com as coisas básicas para sobreviver: de onde é que vem a próxima refeição? Qual é o teto por cima da minha cabeça? O que vem a seguir? Fomos deixados onde começámos”, diz Hamilton Harris, hoje nos seus 40 anos, alegando viver ainda de certa forma traumatizado pela experiência, e por outros problemas do passado.
Harris diz à revista “Variety” que foi algo “claramente calculado por alguém com experiência para manipular para nos revelarmos tanto, sobre de onde vínhamos e o que tínhamos experienciado”. “Isso sentiu-se. Foi aí que o ressentimento começou a construir-se. Estávamos no sítio certo à hora certa e tornámo-nos parte deste filme clássico de culto e tivemos que lidar com tudo o que veio daí. Podes tirar uma pessoa do gueto, mas não podes tirar o gueto de uma pessoa, e para mim refiro-me ao gueto como o trauma emocional e mental por que passámos.”
E acrescenta à “Deadline”: “O trauma foi o catalisador para mim. Foi depois de o Harold Hunter ter morrido que tive uma espécie de wake-up call para lidar com os meus próprios traumas, e precisava de lidar com eles. E algo me estava a dirigir para contar esta história e usar este meio como uma plataforma para sarar”.
“Há 25 anos, senti-me explorado. Pensava que ia ser mais do que aquilo. Mas hoje, no final dos meus 40 anos, também vejo as coisas de forma diferente. De um ponto de vista ético, sim, eu não faria aquilo daquela maneira. Faria de forma diferente. Mas não sou eu que tenho que dizer se o Larry estava errado ou não. Acho que cada um de nós pode decidir isso para si mesmo”, disse ainda.
Por sua vez, também à “Variety”, o realizador do documentário disse: “É complexo, sobretudo quando estás a abordar adolescentes que não tinham muitas oportunidades à sua volta”, disse Eddie Martin. “Muitos deles tinham fugido de casa ou tinham passados traumáticos de casas problemáticas. Eles confiaram muito nos cineastas e deram-lhes muito. E depois não tiveram ninguém para os ajudar ou para os orientar quando se abriu uma pequena janela de oportunidade.”
O realizador revelou ainda à “Variety” que há pessoas a tentar bloquear o novo documentário de forma legal, que existe algum tipo de processo a decorrer pelo facto de o filme usar imagens originais de “Kids”. “Eles não podem parar estas pessoas de contarem o seu lado da história, então estão a tentar fazer isso ao bloquear o uso de imagens.”