É um dos filmes do ano e chega finalmente às salas portuguesas na semana de rescaldo dos Óscares, de onde saiu com um troféu para o Melhor Argumento Original. É, também, o mais enigmático dos nomeados, sobretudo porque pôs o mundo a discutir que tipo de filme seria.
Será um revenge movie? Uma comédia negra? Um thriller? “Uma Miúda com Potencial” pode ser um pouco de cada, enquanto acompanhamos Cassie (Carey Mulligan) e vamos descobrindo que tipo de pessoa é, o que a motiva e, mais tarde, o que afinal pretende.
É um one woman show e seja qual for a barricada em que esteja, é certo que na cabeça de quem viu o filme ficará pelo menos uma cena que vai diretamente para o top das mais perturbadoras do ano. E inesperadas.
Atormentada pela violação da colega de faculdade de medicina, Nina, que viria mais tarde a morrer, Cassie parou no tempo. Deixou o curso, manteve-se em casa dos pais, não procurou relações amorosas e contentou-se com um emprego banal num café.
À noite, Cassie transforma-se numa predadora, à procura de retribuição como uma espécie de vingança contra todos os homens que violaram Nina — e que na sua opinião continuam a fazê-lo. Não são os violadores violentos que pretende atingir, mas os ditos bons rapazes que se aproveitam das vulnerabilidades para infringir as regras, sempre com uma desculpa plausível que os possa ajudar a safar-se. E normalmente safam-se.
É neste cenário de vingança que acompanhamos Cassie até à derradeira cena. Último aviso: se não viu o filme, pare imediatamente de ler.
Na oportunidade perfeita para se vingar do violador da amiga Nina, Cassie decide infiltrar-se na sua despedida de solteiro. Sozinha, mascarada de stripper e carregada de maquilhagem, irrompe de surpresa na festa com dezenas de homens descontrolados.
“Ela tinha que usar toda a armadura que fosse possível”, explica Mulligan sobre a escolha de indumentária da personagem. “As pessoas naquela casa nunca imaginariam ver Cassie assim, porque quando a conheceram na faculdade, ela não aparecia assim. Ela usa [a roupa e a maquilhagem] como arma para entrar na casa. É a única arma que tem.”
É aqui que Emerald Fennell — a realizadora que fez a sua estreia nesta posição, ela que até aqui trabalhou apenas como atriz — decide rasgar com as convenções dos revenge movies. Tudo isso através de uma cena desenhada para deixar os espectadores desconfortáveis.
O plano de Cassie seguia como planeado: homens drogados, apanhou-se a sós com o violador de Nina, agora algemado a uma cama. É nesse momento que desvenda a sua identidade e anuncia ao que vem: para cravar no peito, com um bisturi, o nome da amiga que morreu por sua culpa.
Al Monroe, o violador, consegue soltar-se e os dois lutam em cima da cama. Com uma almofada na mão, o homem, descontrolado, coloca-a na cara de Cassie. Durante longos segundos, em silêncio, assistimos ao penoso sufocar da heroína e personagem principal, até à sua morte.
A decisão mostrou-se polémica, apesar do plano de vingança ter seguido em frente e ter sido bem-sucedido, tudo graças ao planeamento genial de Cassie. “Claro que o final mais divertido seria com ela a afastar-se enquanto tudo ardia. Mas acho que não conheço nenhum mundo onde isso pudesse acontecer. O único mundo que conheço é aquele em que se tens uma mulher e um homem com uma arma, juntos num quarto, as probabilidades estarão todas contra ti”, revela Fennell.
“Sentimos que se o encontro entre estas duas personagens se tornasse físico, 9.9 vezes em cada 10, não lhe iria ser favorável. Precisávamos de contar a verdade”, confirma Mulligan.
Contrariamente aos outros momentos do filme, altamente estilizados, a cena da morte é crua, não recorre a artifícios. É um momento de desespero de duas personagens, uma que luta pela vida, e a outra que lentamente tenta usar uma almofada como arma.
“Para mim é importante que se a audiência espera ou quer violência, então isto é o que acontece quando as mulheres tentam ser violentas. É precisamente por isto que nunca optamos pela violência: porque corre mal”, esclarece Fennell. “Não importa quão esperta ela pode ser ou quão meticuloso era o plano. É muito difícil que uma mulher consiga lutar fisicamente com um homem.”
Apesar de Cassie ter entrado na casa com plena consciência de que a sua morte podia ser um dos desfechos — e planeou o que aconteceria se fosse esse o seu fim —, o desespero é palpável. “O que lhe acontece é horrível e a forma como ela luta pela vida prova que não era o desfecho que ela pretendia. Mas ela estava desesperada, ao ponto de fazer algo extremamente perigoso.”
Sobre o final, Fennell explica que mesmo que fosse bem-sucedida, ele nunca poderia ser feliz. “Mesmo que o conseguisse desfigurar, iria para a prisão. Qual seria o final feliz para ela num sítio desses? Nenhum.”
A carta enviada ao advogado que defendeu o violador de Nina colocou o seu plano de vingança em andamento, mesmo após a sua morte. Um desfecho agridoce do qual nem todos gostaram, mas que foi o único que estava em cima da mesa para a realizadora.
“Era o único final que poderia ser real. Creio que para mim e para todos os que participaram no filme, a razão pela qual adoraram o filme é que sentíamos que era verdadeiro, sentimo-lo como algo horrivelmente real. Isso não significa que não seja devastador e cruel de ver, mas não o conseguia imaginar de outra forma.”
Apesar de desejar que o pudesse ter feito de outra forma e que haveria uma remota hipótese de transformar tudo num final feliz. “Mas qual seria o objetivo? Seria fazer o tipo de filme que eu não queria mesmo fazer.”
Leia ainda a crítica da NiT a “Uma Miúda com Potencial” (que em inglês é “Promising Young Woman”).