Foi apresentado internacionalmente como um filme marcante — sendo a primeira história da Pixar, estúdio que pertence à Disney, com um protagonista negro. O feito de “Soul — Uma Aventura com Alma” foi aclamado nos EUA e noutros países ao longo dos últimos meses.
No Dia de Natal, 25 de dezembro, o filme estreou finalmente na plataforma de streaming Disney+ — era para ter estreado mais cedo mas foi adiado por causa da pandemia. Contudo, muitos fãs ficaram surpreendidos quando descobriram que a dobragem portuguesa da produção era feita quase exclusivamente por atores brancos.
Nas redes sociais, vários espectadores acusaram mesmo a Disney de racismo e de apropriação cultural, por o elenco quase não incluir atores negros a dar voz a estas personagens — ao contrário do que aconteceu nos EUA, no Brasil ou em França, entre outros territórios.
Esta é uma história sobre um professor de piano que tem finalmente uma grande oportunidade na vida: tocar numa banda de jazz. Só que o seu percurso é interrompido quando tudo começa a parecer promissor — e com a ajuda de uma pequena alma vai tentar regressar ao seu corpo.
O filme, que foi considerado pela NiT como um dos melhores do ano e que está a ser aclamado pela crítica e pelo público, parte da cultura afro-americana para contar uma história transversal sobre temas importantes como o próprio sentido da vida, as paixões ou ambições que temos. Foi realizado por Pete Docter e Kemp Powers e o elenco original inclui nomes como Jamie Foxx, Questlove, Angela Bassett, Daveed Diggs ou Phylicia Rashad, entre outros.
Em Portugal, o protagonista foi interpretado por Jorge Mourato. Outros atores que participaram na dobragem foram Pedro Pernas, Mónica Garcez ou José Nobre. E as críticas não tardaram em chegar depois de se perceber que quase não havia atores negros envolvidos.
“Comovido e surpreendido com o final do filme, que vi na versão original, em inglês, decidi pesquisar sobre o elenco de dobragem português. Aí já não houve surpresa. Todas as personagens do filme, incluindo as personagens negras, foram dobradas por atores e atrizes brancos e brancas. Bem sei que se trata de um filme de animação, e que as vozes nem sempre têm de corresponder às caras, mas fiquei a pensar: quando as personagens são brancas, também acontece serem atores e atrizes negras a dobrar? Não”, escreveu o ator Marco Mendonça na sua página no Facebook.
“A área das dobragens em Portugal é mais uma em que artistas negros e negras não se veem representados, mesmo em filmes onde a representatividade deve ser, logicamente, um critério na escolha do elenco. É certamente uma vitória termos acesso a um filme da Pixar protagonizado por personagens e vozes negras, mas porque não esforçarmo-nos para prolongar essa vitória? Porque não considerarmos artistas de pele negra para dar voz a personagens negras? A representatividade deve ser uma das principais ferramentas contra o racismo, mas o primeiro passo está em querer combatê-lo. E não é isso que demonstram as produtoras, os estúdios, os teatros, na sua esmagadora maioria. Nós, atores e atrizes, negros e negras, continuamos à espera”, acrescentou.
O ativista e dirigente da associação SOS Racismo, Mamadou Ba, associou nas redes sociais a escolha do elenco da versão portuguesa ao conceito racista de “black face” — quando, nos EUA, atores brancos interpretavam personagens negras ridicularizando-as, numa altura em que os afro-americanos nem sequer podiam entrar em teatros.
Outras figuras públicas portuguesas fizeram publicações no mesmo sentido. Foi o caso do músico Dino D’Santiago. “Lembro-me do momento em que vi o trailer, onde pela primeira vez, a história da cultura musical negra iria ser eternizada em animação. O entusiasmo ao imaginar quem seriam os atores que fariam a dobragem das personagens na versão americana e claro na versão portuguesa. Como sempre eu iria ver as duas versões para fazer a comparação e muitas vezes a versão brasileira também entrava na equação, simplesmente porque a música é o fator determinante para o sucesso ou insucesso da história que está a ser contada”, escreveu o músico no Instagram.
“Falar da história da Disney e dos seus clássicos é saber que o princípio base está na moral que aquela história quer passar. Soul é um filme que começou a ser desenhado em 2016 e que levou a Pixar num processo muito rigoroso na escolha dos argumentistas, realizadores, equipa técnica e por fim os actores que dariam vida a este que seria um puro manifesto na luta contra a iniquidade existente na indústria do entretenimento! Entre as pessoas negras que aprovaram o filme antes do lançamento, estão a professora, antropóloga e doutora Johnnetta Cole, o cineasta Bradford Young, e os músicos Questlove, Daveed Diggs e Jon Batiste — um grupo com diferentes áreas de especialidade, mas com perspetivas da comunidade negra. A Pixar formou um grupo para reunir vários afro-americanos em debates sobre Joe. A ideia era garantir que todos estivessem confortáveis com a representatividade do filme”, acrescenta, antes de concluir a ideia.
“‘Soul’ estreia a nível mundial neste ano de 2020, que representou um dos anos mais importantes na história da Humanidade na luta contra o racismo e NÃO EXISTE REPRESENTATIVIDADE DA CULTURA AFRO-PORTUGUESA num elenco que conta com mais de 20 personagens. Façamos de conta que a Pixar decide fazer um filme sobre a história do fado e todos os atores que farão as dobragens e cantarão aquele que é o Património Imaterial da Humanidade pela Unesco são NEGROS! Qual seria a manifestação? Portugal violou por completo o princípio que deu vida a este que para NÓS seria mais do que um filme de animação”, escreveu Dino D’Santiago.
Nuno Markl foi outra das figuras públicas que defenderam que o filme deveria ter mais representatividade de atores negros na dobragem. “O debate sobre a dobragem portuguesa de Soul é muito válido, faz todo o sentido acontecer. Não é um excesso do politicamente correto (e vós sabeis o quanto eu às vezes me agasto com alguns desses excessos). O filme é uma obra-prima e a dobragem portuguesa é ótima, bem dirigida e interpretada — esse mérito não está em causa. Mas é claro que Portugal deveria ter prolongado o momento histórico celebrado internacionalmente pelas próprias Disney e Pixar: ‘Soul’ é o primeiro filme da Pixar com um protagonista negro, contando o elenco original com as vozes de Jamie Foxx, Angela Bassett e Questlove. Temos excelentes atores negros capazes de vestir a pele destas personagens e a desculpa ‘não temos cá ninguém’ é falsa; este tipo de incidente só ajuda a que continue sem haver ‘ninguém’”, escreveu no Instagram.
“Sempre que acontece uma coisa destas, prossegue-se o escavar do fosso que afasta esses atores das oportunidades que merecem. Quando se fala de racismo sistémico, fala-se de percalços destes: não terá havido más intenções, mas o simbolismo de ‘Soul’, apesar de contar uma história universal sobre emoções que atravessam pessoas de todas as cores e culturas, é particularmente especial e devia ser celebrado cá como aconteceu nas versões dobradas de ‘Soul’ noutros países. Pode ser que trazendo este tema a debate, as coisas mudem. Que se tome isto como construtivo, porque é esse o espírito”, acrescentou Nuno Markl.
A reação do outro lado
À revista “Sábado”, a Disney disse o seguinte sobre o assunto: “Esforçamo-nos por ser inclusivos nos nossos castings, contudo reconhecemos que há trabalho a fazer e estamos comprometidos em diversificar os talentos nas nossas dobragens, independentemente da geografia onde atuamos.”
O ator Jorge Mourato, português selecionado para interpretar o protagonista do filme, reagiu inicialmente às críticas ao dizer que não era racista por ter aceitado o papel. Mais tarde, corrigiu-se e expôs melhor a sua posição numa conversa com Rui Unas no programa online “Na Casa do Unas”, que foi transmitido esta terça-feira, 29 de dezembro.
“Sim, errei na resposta que dei e na forma como abordei a coisa”, assumiu Jorge Mourato em conversa com Rui Unas, acrescentando ainda que, se pudesse voltar atrás, não aceitaria o papel.
“Depois do que sei hoje, provavelmente daria oportunidade a outras pessoas, neste caso a colegas meus negros que o fizessem também.” Jorge Mourato diz que só ficaria com o papel depois de ser feito um casting e caso não houvesse nenhum ator negro ideal para interpretar o protagonista. O ator português disse também que, quando aceitou fazer a dobragem, não conhecia a história do filme nem o simbolismo histórico que tinha.
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