Vestidos de azul e de bastão nas mãos, os milhares de polícias que rodeavam o edifício onde decorria a convenção do partido democrata estavam preparados para tudo. A habitual placa de identificação com o seu nome, habitualmente ao peito, tinha desaparecido. As regras tinham mudado.
A polícia não estava em inferioridade. Aos 10.500 agentes, juntaram-se mais de seis mil militares da Guarda Nacional e outros cinco mil das forças armadas. Do outro lado contavam-se cerca de 15 mil manifestantes — mas um deles mereceu uma atenção especial dos agentes.
“Assim que se aproximaram de mim, conseguia ouvi-los a gritarem ‘Matem o Davis’. Fui atingido na cabeça e atirado ao chão. Enquanto rastejava, continuava a levar bastonadas. Acho que o que me salvou nesse dia foi uma pequena cerca no parque, por onde consegui escapar e que me deu três segundos para fugir. Desmaiei durante alguns momentos”, confessa ao jornal britânico “The Guardian” Rennie Davis, um dos organizadores da manifestação de 1968 que ficou para a história.
Ferido na cabeça, Davis fugiu para um hospital onde teve que ser suturado com 13 pontos na cabeça. A perseguição continuou. A polícia invadiu o hospital e vasculhou, quarto a quarto, à sua procura.
“Apesar de ser um hospital público, onde todos eram empregados do condado, eles puseram me num carrinho e taparam me com lençóis. Deslocavam-me de quarto em quarto para evitar que a polícia me encontrasse. Fizeram-no até chegarem a uma saída, onde fugi. Ainda hoje penso: que demonstração de coragem. Foi uma das coisas mais incríveis que me fizeram perceber o impacto que tivemos na cidade. Estas enfermeiras arriscaram toda a sua carreira”, recorda.
Rennie Davis é um dos famosos sete de Chicago, os ativistas anti-guerra que se tornaram nos bodes expiatórios dos violentos motins que tiveram início a 28 de agosto de 1968 na cidade do estado de Illinois. O verão quente de 68 atingia nessa semana o seu pico — com consequências desastrosas.
Em plena guerra do Vietname, esse tinha sido o ano mais sangrento do conflito. Mais de mil militares americanos morriam todos os meses. A guerra não era o único rastilho. Muitos dos manifestantes eram também ativistas pelos direitos civis, um movimento que tinha sofrido um duro golpe com o assassinato de Martin Luther King, apenas quatro meses antes.
Com o partido democrata em cacos — o presidente Lyndon Johnson recusaram recandidatar-se a um segundo mandato —, a convenção foi o local ideal para mais um protesto. Mas este não seria apenas mais um entre os milhares que decorreram por todo o país nesse ano.
Apesar dos manifestantes terem feito de tudo para provocar a polícia, a resposta das autoridades foi completamente desproporcionada. Foi essa a conclusão do The Walker Report, o inquérito oficial aos motins que nas suas mais de 20 mil páginas, partindo de relatos testemunhais.
“Eles começaram a agarrar uma pessoa de cada vez, a atirar lhes gás pimenta para os olhos, a atingir-lhes as costelas e os rins com bastões e a atirá-las ao chão”, recorda Tom Hayden, outro dos líderes do protesto, num livro de memórias sobre os motins. “Tinham os olhos inchados de ódio e gritavam com um som que nunca tinha visto sair de um ser humano.”
Era uma batalha geracional. Os mais velhos a darem uma boa sova e uma lição à geração mais nova que ousava quebrar a ordem estabelecida. Foi esta a temática que, de tão atual, quase obrigou o argumentista e realizador Aaron Sorkin a decidir que 2020 seria o ano perfeito para concluir um projeto que guardava na estante há anos.
“O Julgamento dos 7”, que estreou na Netflix a 16 de outubro, é um retrato de um capítulo da história que se tende a repetir — e é mais atual do que nunca.
No papel dos sete, um elenco de luxo: Eddie Redmayne como Tom Hayden; Sacha Baron Cohen é Abbie Hoffman; Jeremy Strong surge no papel de Jerry Rubin; Alex Sharp é Rennie Davis; John Carrol Lynch como David Dellinger; Noah Robbins e Danny Flaherty como Lee Weiner e John Froines. Joseph Gordon-Levitt é Richard Schultz, assistente da equipa de acusação, e Mark Rylance é William Kunstler, advogado de defesa.
O julgamento é apenas metade da história que começou meses antes, num aparente protesto pacífico nas ruas de Chicago.
O motim
Rennie Davis era um dos fundadores da organização Estudantes por uma Sociedade Democrática. Rapidamente se tornou numa voz de comando dentro e fora da organização, a coordenar uma coligação de mais de 150 organizações anti-violência. A maioria delas viajou até Chicago nesse verão.
Um comité de mobilização nacional que pretendia pôr um fim à sangrenta guerra do Vietname fez planos para um protesto de vários dias. O autarca local, Richard Daley, recusou emitir qualquer licença para a marcha e colocou a polícia local em sentido. Ele que, meses antes, perante os protestos após a morte de Martin Luther King, revelou em público que deu ordem à polícia para “atirar a matar qualquer incendiário ou alguém com um cockail molotov na mão”.
Quatro meses depois, a polícia sabia que tinha autoridade e proteção para agir no limite ou para lá da lei. No dia dos protestos mais violentos, estima-se que haveria nas ruas mais de 20 mil homens, entre agentes e militares. Muito acima do número de manifestantes, que se calcula que seriam não mais de 15 mil.
“A Convenção Democrata está preste a começar dentro de um estado policial. Não há outra forma de o descrever”, revelou o famoso pivot Walter Cronkite, do interior do edifício protegido por arame farpado e uma muralha de homens armados.
“Digam-lhes que não se vão safar porque o mundo todo está a olha.” A frase de um dos organizadores transformou-se em lema e cântico oficial. Foi ao seu som que se deu o momento que acendeu definitivamente o rastilho da violência.
Quando um manifestante ousou hastear uma bandeira americana a meia-haste — relatos garantem que se tratou de um polícia à paisana, com o objetivo de provocar o confronto —, os agentes carregaram sobre a multidão.
O inquérito aos incidentes revelou mais tarde os tristes episódios que aconteceram nesse dia. De miúdos de 14 anos a serem violentamente espancados no chão, a mulheres que protestavam pacificamente serem arrastadas para o interior de carrinhas da polícia.
As forças da ordem não se sentiam protegidas apenas pelos autarcas locais. Apenas uma semana depois dos protestos, o candidato republicano à presidência, Richard Nixon, visitou Chicago. E passeou pelas ruas, em cima de um carro, enquanto fazia gestos de vitória para a multidão. Acabaria sentado na Sala Oval, eleito por aquilo a que chamou “uma maioria silenciosa”, dois meses depois.
Dos quatro dias de violência, resultaram 668 detenções. Mais de 600 manifestantes tiveram que receber cuidados médicos. Perto de 200 agentes ficaram feridos. De todos, sobressaíram sete homens, apontados pelas autoridades, pelo Estado e pela administração de Nixon como os culpados do caos que se abateu sobre a cidade.
David Dellinger, Tom Haydem, Rennie Davis, Abbie Hoffman, Jerry Rubin, John Froines, Lee Weiner e Bobby Seale foram detidos e acusados do crime de cruzarem as fronteiras estaduais com o intuito de provocar um motim.
O julgamento
Antes de serem sete, eles eram oito. Bobby Seale, co-fundador do grupo de ativismo político pelos direitos dos negros, foi protagonista de um caso insólito. Ele que deveria ser defendido por um dos advogados do grupo, acabou por perder o representante, que adoeceu. Perante a sua ausência, Seale queixou-se de uma tremenda injustiça, acusou o juiz Julius Hoffman de ser racista e exigiu um julgamento à parte
“A adminstração governamental racista, com as suas noções de política saída de um livro de banda-desenhada. Nós sabemos que o Super-Homem não salvou negros. Fizeram o que quiseram com esse bando de testemunhas mentirosas, apresentadas pelos porcos dos agentes do governo para virem apoiar esses fascistas putrefactos que agridem as pessoas nas cabeças. Exijo os meus direitos constitucionais”, chegou a dizer na sala de audiências.
Os protestos constantes levaram a uma decisão inédita do juiz, que ordenou que Seale assistisse sessões amordaçado e atado a uma cadeira. Uma perfeita loucura que durou vários dias.
Hoffman, conhecido por ter tolerância zero a qualquer desrespeito em tribunal — e na maioria das vezes por ter uma conceção muito diferente do que era, realmente, esse desrespeito. Seale acabou por apenas ser condenado por questões laterais: 16 acusações de desrespeito, cada uma delas correspondente a três meses de prisão.
Assim ficaram sete, protagonistas de um julgamento com cobertura mundial. “Este é o julgamento político mais importante da história americana”, escrevia na sua capa o “The New York Times”. Durante mais de quatro meses, aconteceu de tudo na sala de tribunal presidida por Hoffman.
Os arguidos, particularmente Abbie Hoffman, tiravam prazer em desafiar as regras instituídas, sobretudo o juiz conservador que se deixava irritar por qualquer pequeno detalhe. Chegaram mesmo a entrar na sala de audiências com túnicas negras iguais à do juiz, que atiraram ao chão e pisaram, antes de se sentarem.
Durante o juramento, Abbie Hoffman fez um pirete enquanto gritava em iídiche “És uma vergonha perante os gentios”, eles que eram ambos judeus. E concluiu: “terias servido melhor Hitler”.
As penas por desrespeito ao tribunal eram atiradas como rebuçados por Hoffman. Kunstler foi condenado a quatro anos de prisão por se referir ao juiz como Senhor Hoffman e não por Vossa Excelência. Abbie Hoffman recebeu uma pena de oito meses apenas por se rir durante a sessão.
Pelo banco de testemunhas passaram agentes, civis e famosos. Arlo Guthrie testemunhou, Judy Collins cantou uma canção de protesto das bancadas. Nem o banco dos jurados se livrou do tumulto.
Dois dos jurados terão mesmo recebido cartas ameaçadoras. “Estás a ser vigiado”, dizia uma delas. As suspeitas recaíram sobre os Black Panthers, embora muitos acreditem que se tenha tratado de uma falsificação. Uma forma de agentes do governo condicionarem jurados tidos como imparciais.
Os sete acabaram, sem surpresa, condenados por Hoffman, que quis fechar o caso com mais uma humilhação: exigiu que os condenados fossem obrigados a rapar os seus cabelos longos depois da sentença.
A decisão de Hoffman acabou por cair com estrondo no recurso. As penas de desrespeito foram todas elas revistas por um novo juiz e anuladas. Os cinco arguidos acusados de crime de incitamento também foram ilibados.
“O que quer que nos aconteça, por mais injusto que seja, não será nada comparado com o que aconteceu ao povo vietnamita, aos negros deste país, aos criminosos com quem passamos agora os nossos dias na prisão de Cook”, atirou Dellinger no final do julgamento.
“Estou feliz porque expusemos o que é realmente o sistema judicial, porque em milhares de tribunais por este país, negros estão a ser arrancados das ruas e atirados para as prisões sem que ninguém saiba. São homens esquecidos. Não têm uma multidão de jornalistas à sua espera, a observar. Ninguém quer saber deles. (…) Talvez agora o povo preste mais atenção”, concluiu Rubin.
Três anos depois, a decisão de recurso reverteu todas as condenações. Uma decisão que assentou na clara imparcialidade do juiz — mais concretamente nos bloqueios feitos à equipa de defesa, no momento de decidir quem faria parte do painel de jurados. E também de um pequeno pormenor que tantas vezes é esquecido: os agentes do FBI que, durante todo o julgamento, mantiveram uma vigilância ativa dos escritórios da equipa de defesa dos sete de Chicago.
O que é feito deles?
Abbie Hoffman manteve-se na vida de ativista. Chegou mesmo a invadir o palco de Woodstock no famoso verão de 69 e a interromper a atuação dos The Who. Tudo para protestar a detenção de um ativista. A invasão acabou com Pete Townshend a insultá-lo para fora do palco. “Sai do caralho do meu palco”, gritou. Foi até ao fim da sua vida um ícone do movimento anti-guerra. Suicidou-se em 1989.
Jerry Rubin virou-se para os negócios e tentou levar uma consciência social ao mercado capitalista. Tornou-se num corretor de Wall Street nos anos 80, onde afirmou que seria mais útil de fato e gravata do que “a dançar do outro lado das muralhas do poder”. Morreu atropelado em 1994 à saída de sua casa.
David Dellinger, formado nas prestigiadas universidades de Yale e Oxford, era o mais velho do grupo. Viajou pela Alemanha Nazi e chegou a conduzir uma ambulância durante a guerra civil espanhola. Objetor de consciência e declaradamente anti-guerra, tornou-se num dos símbolos dos motins de Chicago. E manteve o estatuto até à morte em 2004, já com 89 anos.
Tom Hayden dedicou-se à política, primeiro no congresso estadual da Califórnia, depois no senado estadual. Em 2016, concorreu para ser um dos representantes californianos no Comité Nacional do Partido Democrata. Foi casado durante 17 anos com a atriz e ativista Jane Fonda. Hayden morreu em 2016 aos 76 anos, vítima de um enfarte.
Rennie Davis optou por um caminho mais espiritual. Tornou-se seguidor de uma seita e fez carreira a dar conferências espirituais. Acabaria por fazer uma mudança radical e tornar-se num investidor em capitais de risco, sobretudo na área da tecnologia. Tem 79 anos.
O doutorado em química John Froines foi professor até 2011, ano em que se reformou. Tem hoje 81 anos. Já Lee Weiner, um dos menos conhecidos, foi apoiando várias causas ao longo dos anos. Publicou uma memória sobre os Chicago 7 em 2020. Tem 81 anos.