Quando se soube que a presidente do Sindicato dos Atores dos Estados Unidos (SAG-AFTRA) tinha dado uma conferência de imprensa arrasadora a anunciar uma greve sem precedentes, poucos previam encontrar uma cara conhecida a discursar com aquela fúria.
Afinal de contas, a pessoa a culpar diretamente os estúdios e a Hollywood era Fran Drescher. A atriz norte-americana fez furor nos anos 90 em “The Nanny”, sitcom conhecida em Portugal como “Competente e Descarada”.
Drescher foi eleita para a presidência do maior sindicato de atores dos EUA em 2021, mas quem não acompanha a indústria por este prisma provavelmente não fazia ideia. A atriz que se apresentou na sede do SAG-AFTRA, porém, foi uma versão muito diferente daquela que o público vê a interpretar papéis mais ou menos cómicos na televisão.
“Nós é que somos as vítimas de uma entidade muito gananciosa. Estou chocada com a maneira como as pessoas com quem temos trabalhado nos estão a tratar”, afirmou. Falando numa “unidade sem precedentes”, Drescher defendeu que os atores não podem “continuar a ser esmifrados, marginalizados, desrespeitados e desonrados. Todo o modelo de negócio mudou com o streaming, o digital e a Inteligência Artificial.”
“Custa-me crer em quão afastados estamos de tantos temas relevantes. Como podem falar em pobreza e dizer que estão a perder dinheiro a torto e a direito quando dão centenas de milhões de dólares aos seus CEOs? É um nojo. Tenham vergonha. Vocês [os estúdios e as produtoras] estão do lado errado da história”, atirou, de dedo em riste.
“Somos força de trabalho, estamos de pé, exigimos respeito e reconhecimento pelas nossas contribuições. Partilhem a riqueza porque sem nós vocês não podem existir”, concluiu a sindicalista. O discurso inflamado, admitiria no dia seguinte, foi parcialmente improvisado e guiado pelas suas emoções.
De “Febre de Sábado à Noite” até ao anti-capitalismo
A tomada de posição surpreendente que Drescher tomou contrasta com uma carreira bem sucedida, mas relativamente banal. Nascida em 1957 no seio de uma família judaica do bairro de Queens, em Nova Iorque, o seu percurso no cinema levantou voo num pequeno papel no clássico “Febre de Sábado à Noite”, de 1977. A sua personagem fez uma pergunta a John Travolta que ficou para a história: “Serás tão bom na cama como és na pista de dança?”
Seguiram-se outras prestações que não fizeram dela uma estrela, mas cimentaram-na como uma atriz cómica confiável. O melhor exemplo é a sua interpretação da assessora Bobbi Flekman no documentário satírico “This Is Spinal Tap”, de 1984. Porém, só atingiria o estrelato nos anos 90, ao protagonizar “The Nanny”.
A sitcom, concebida por Drescher e pelo (na altura) marido Peter Marc Jacobson, foi emitida entre 1993 e 1999. A premissa girava à volta de uma fashionista judia chamada Fran Fine, ama dos miúdos de um viúvo britânico, produtor da Broadway. O desempenho da personagem valeu-lhe duas nomeações para os Emmys e outras duas para os Globos de Ouro.
Após o término da série — que se estendeu por seis temporadas, entre 1993 e 1996 —, Drescher nunca mais voltou a atingir o mesmo patamar de sucesso, o que também se deveu a várias contrariedades pessoais. Drescher e Jacobsen divorciaram-se e o ator admitiu publicamente a homossexualidade. Não obstante, continuaram amigos e criaram a série “Happily Divorced”, que foi beber à sua experiência de vida ao retratar uma atriz que descobre que o marido é gay.
O que fez Drescher realmente ficar menos ativa na indústria foi o calvário que atravessou devido a um cancro no colo do útero. A atriz passou dois anos a ser mal diagnosticada, precisando de recorrer a oito médicos diferentes, antes de iniciar o processo de recuperação. A experiência levou-a a escrever o livro “Cancer Schmancer” e a criar uma organização não-governamental com o mesmo nome para pressionar o governo dos EUA a melhorar a prestação dos cuidados de saúde a pacientes oncológicos. Conseguiu mesmo que fosse aprovada uma lei nesse domínio.
O percurso reivindicativo fez-se acompanhar de uma politização cada vez mais marcada, assumindo-se como democrata e criticando abertamente o sistema financeiro norte-americano. “Acabem com a ganância capitalista” e “o capitalismo é apenas outra palavra para a classe dominante” foram apenas duas das frases que escreveu para legendar fotografias suas nas redes sociais.
Numa entrevista à “Vulture” em 2017, Drescher afirmou que o seu processo de radicalização desencadeou-se durante a odisseia que viveu quando tentava encontrar tratamento para o cancro. “Mas antes disso já era muito opinativa e coerente relativamente à minha busca constante por equilíbrio e à tentativa de compreender como as coisas funcionam”. Na mesma conversa, a atriz afirmou expressamente ser “anti-capitalista”, frisando, porém, que não era “contra fazer dinheiro”. “Precisamos de um sistema híbrido. Não me interpretem mal, não penso que a vontade de ganhar dinheiro seja algo mau só por si. Mas esta ambição deve ser equilibrada no espectro daquilo que consideramos o valor real das coisas”, afirmou.
A vida sindicalista e a fotografia com Kim Kardashian
Fran Drescher manteve-se ocupada com alguns papéis menores em filmes e séries, até surgir a oportunidade de concorrer à presidência do SAG-AFTRA, em 2021. A eleição decorreu entre ela, representando a fação mais moderada, e o ator Matthew Modine, que encabeçava um grupo mais reivindicativo. Modine, recorde-se, é o doutor Martin Brenner de “Stranger Things”.
A disputa foi tensa ao ponto de Modine acusar Drescher de espalhar rumores sobre ele, tendo inclusive, ameaçado a atriz com um processo. “Tenho vergonha do que fez, fiquei desapontado. Será julgada pelas pessoas, ou por qualquer Deus em que acredite, quando partir”, afirmou.
A atriz venceu a eleição com a promessa de que ia acabar com as “divisões disfuncionais” que impediram o sindicato de tomar ações decisivas durante décadas. No entanto, nos últimos meses, a sua presidência não era considerada propriamente convincente ou enérgica. No final de junho, quando o acordo com os estúdios quanto às remunerações estava prestes a terminar, publicou um vídeo bem-humorado onde afirmava que as reuniões até àquele momento tinham sido “extremamente produtivas”.
Fran Drescher in italy last night with Kim k pic.twitter.com/VFPQKW3iRg
— Anousha (@anoushasakoui) July 10, 2023
O tom da mensagem alertou muitos membros do SAG-AFTRA, que temeram que ela fosse aceitar um acordo medíocre. Pior ainda ficaram há dias, quando em plena convulsão em Hollywood, foi fotografada ao lado de Kim Kardashian numa festa da Dolce & Gabbana em Itália. A resposta de Drescher não se fez tardar, defendendo que se tratava de um evento a que tivera de ir por obrigações contratuais e que continuava a trabalhar nas negociações. Os eventos da última semana vieram dar-lhe razão.
O que se segue?
O SAG-AFTRA não se ficou pelas palavras acirradas de Drescher. Os atores avançaram mesmo com uma paralisação total, a primeira desde 1960 (quando Ronald Reagan era o líder do sindicato), feita em simultâneo com os guionistas.
Os efeitos serão imediatos. A partir desta sexta-feira, 14 de julho, a produção de filmes e séries nos Estados Unidos — e aquela que, embora feita no estrangeiro, estiver sob a jurisdição das associações que convocaram a greve — parou. Resultado? A maioria das produções de cinema e de televisão dos Estados Unidos foi interrompida. Os atores tiveram de parar de trabalhar e prometeram organizar piquetes. Também não tencionam promover os filmes e as séries em que participam, ações a que estão vinculados ao abrigo dos contratos com os estúdios. Como resultado, o elenco de “Oppenheimer”, por exemplo, abandonou a passadeira vermelha em plena estreia do filme em Londres.
“O conselho nacional do SAG-AFTRA votou unanimemente por uma ordem de greve contra os estúdios e as emissoras”, anunciou Duncan Crabtree-Ireland, diretor-executivo nacional do sindicato. Esta quarta-feira, 12 de julho, já tinha sido avançado que as negociações entre o SAG-AFTRA e os principais estúdios de cinema e televisão — que estenderam por mais de quatro semanas — tinham terminado sem sucesso.
Duncan Crabtree-Ireland defendeu em conferência de imprensa que não lhes foi dada alternativa, uma vez que a greve “é um instrumento de último recurso”, e que “os atores merecem um contrato que reflita as mudanças no modelo de produção”.
Já o grupo que representa os estúdios admitiu que a greve não era o resultado esperado, “pois não podem operar sem os artistas que dão vida” aos programas e filmes. “Lamentavelmente, o sindicato escolheu um caminho que levará a dificuldades financeiras para incontáveis milhares de pessoas que dependem da indústria”, disse a Aliança de Produtores de Cinema e Televisão (AMPTP), em representação dos principais estúdios de produção, como Disney, Paramount, Warner, Sony, Netflix e Amazon.
O protesto dos atores junta-se ao dos argumentistas, que começou em maio. Desde então, as produções que se mantêm em filmagens estão a trabalhar com base em argumentos já concluídos na primavera, sem poderem modificá-los.