Livros

Helena Magalhães: “Portugal é um país com uma cultura machista muito marcada”

Além de escritora, é uma das mais influentes ativistas literárias do país. "A Devastação" é o seu segundo romance.

Sempre viveu acompanhada de livros, mas ser escritora não fazia parte dos planos de Helena Magalhães. Formada em políticas sociais, quis investigar desigualdades de género e violência doméstica. Escrever era apenas um passatempo, mas quando foi trabalhar para uma revista passou a lidar com palavras a tempo inteiro. Agora é uma autora publicada e um dos rostos mais conhecidos entre as chamadas influencers literárias.

Com perto de 35 mil seguidores no Instagram, Helena Magalhães dita tendências de leitura em Portugal. E fá-lo de duas formas. Fundou o Book Gang, um dos clubes de leitura com maior adesão em Portugal, tendo sido um dos primeiros a funcionar por subscrição por cá. Todos os meses, os seus membros podem encomendar livros a partir do site, avulso ou numa caixa com várias obras, para depois lerem em conjunto. O sucesso da iniciativa levou-a a entrar no mercado editorial. Em 2022, o grupo Infinito Particular convidou-a a formar a Aurora, uma chancela dedicada em exclusivo a literatura no feminino e que trouxe vários títulos inovadores para o nosso país.

Profundamente embrenhada em tudo o que envolve o livro e a literatura, a lisboeta lançou-se na escrita. Depois de “Diz-lhe que Não”, conjunto de reflexões satíricas sobre as dinâmicas entre homens e mulheres, “Raparigas como Nós” foi o seu primeiro romance e tomou o País de assalto. Originalmente editado em 2019, encontrou uma nova casa no grupo Penguin Random House Portugal, onde já vai na terceira edição. A obra de teor autobiográfico, acompanha a história de Isabel e os seus desafios de jovem adulta.

Com “A Devastação”, regresssa ao mesmo grupo de amigas, mas foca-se em Marisa, ou Mar. Antagonista no primeiro livro, aqui descobrimos os motivos por trás da sua personalidade complicada. O título foca a infância traumatizada da protagonista, que foi forçada a ir viver para o Romeirão, um internato católico no Alentejo, com apenas seis anos.

Internacionalmente, há uma vaga de fundo que tem dado mais destaque não só a escritoras como também a autores de diversas minorias sociais e étnicas. Sente que essa onda já chegou a Portugal?
Sim, claramente, se bem que há dois anos diria que não. Para já, em primeiro lugar, estou a ver editoras portuguesas, que até então eram muito tradicionais e muito medrosas naquilo que publicavam, a ter uma postura muito mais aberta. O mercado até há uns três anos estava ainda muito estagnado em Portugal e eu percebo isso. Temos de ter consciência que há muitos livros que funcionam nos Estados Unidos e não aqui, não é a nossa realidade. Para as editoras até há muito pouco tempo era arriscado estar a publicar literatura de nicho e de minorias num mercado como o nosso, onde se vende muito pouco.

Muito homogéneo, também.
Sim, lemos sempre a mesma coisa, compramos os mesmos livros. Somos um país que consome principalmente literatura europeia: os franceses, os italianos, os ingleses e, pronto, os americanos também. Sinto que o mercado está a mudar, muito graças às redes sociais e ao impacto que vieram a ter na literatura e na cultura. Hoje temos acesso a muito mais informação. Quando eu tinha 20 anos, o que é que liamos em Portugal? O que as editoras nos davam, não tínhamos acesso a mais nada. Portanto, a nossa leitura era também muito condicionada pelo poder que tinham nesse sentido. Isso acabou, porque o leitor agora escolhe, temos acesso à informação em tempo real e sabemos o que está a ser publicado lá fora.

A chegada do ebook mudou tudo?
Acredito que foi o que abriu finalmente as portas aos autores portugueses. Não se queria publicar escritores nacionais porque é muito difícil vendê-los. Somos um povo que lê pouco e, quando o faz, não quer literatura portuguesa. Ou porque pensamos que é de qualidade inferior, ou porque achamos que é muito chato, que já tivemos de ler na escola e não queremos mais. Passámos por um período em Portugal em que foi muito difícil publicar novos nomes. Este fenómeno incrível da internet, do TikTok, das redes sociais, o que seja, veio mudar o paradigma literário em todo o mundo e por cá também. Por cá, abriu mais oportunidades para os autores nacionais. Quando dizem que se publica muita coisa internacional e devia-se era editar mais portugueses, eu concordo, claro. Mas o facto de no nosso país se estar a consumir cada vez mais literatura popular, significa a trazer mais gente, principalmente jovens, para a leitura. Se não estou em erro, tínhamos um pico de leitores ali a rondar os 50 anos, e o mercado trabalhava principalmente para essa geração. Não se pensava abaixo dessa faixa etária porque representava uma percentagem tão pequenina de compradores que não compensava.

Agora, pelo contrário, temos cada vez mais livros Young Adult. Que impacto é que isso tem?
Vai criar novos leitores, e estes têm uma mentalidade completamente diferente. Querem ler autores portugueses e querem ler outros temas. Quando eu brinco no meu livro ao pôr a  Isabel a dizer que em Portugal só lemos sobre a Guerra Colonial e o 25 de Abril, é porque é mesmo verdade. Era o que a maioria dos leitores com 50 anos lia e uma boa parte dos escritores escrevia. E está tudo certo com isso, é preciso continuar a escrever e a falar sobre o tema. Mas a verdade é que tanto a minha geração e como os mais novos não se identificam minimamente com isso, já não faz parte da nossa realidade.

Ou melhor, fazendo um contraponto, identificam-se com os temas mas não com a forma como são abordados. Porque falar sobre o 25 de Abril como uma data que mudou as vidas de quem o viveu não lhes faz sentido, porque já nasceram depois.
Temos o exemplo da Susana Amaro Velho, que tem um livro incrível, o “Bairro das Cruzes” que é sobre esse tema mas de uma perspectiva incrível. Não tem nada a ver com o que estamos habituados a ler em livros sobre a Revolução. É a história de duas primas de uma família e da forma como o 25 de Abril condicionou a vida de todas as pessoas daquele bairro. Ou seja, temos um livro sobre o tema, escrito por uma autora contemporânea, nascida após a data, e que nos traz uma visão super refrescante. São importantes estas visões porque as novas gerações já não entendem o que é que foi o 25 de Abril. Eu não entendo! Só por aquilo que eu leio ou pelo que a minha mãe conta. Se podemos ler um livro que tem uma perspetiva nova e que nos fala por outro prisma, aprendemos sobre isso, não é? Temos de continuar a trazer a nossa história, para mim é algo muito especial. Não acho muita piada, enquanto leitora, a livros de autores portugueses que se passam noutros países, focados noutras coisas.

Porquê?
Porque consumimos tanta literatura internacional e aprendemos imenso sobre o mundo através desses livros. Precisamos do mesmo cá, que os novos autores portugueses escrevam sobre Portugal, a nossa história e a nossa sociedade. Esta geração é mais aberta e muito mais informada, estamos a sair dessa homogeneidade que havia por cá, em que só líamos homens brancos.

A Helena também criou uma editora, a Aurora, dedicada exclusivamente a literatura no feminino. Com ela trouxe livros para Portugal que tinham sido um sucesso comercial e crítico lá fora mas que podiam ter passado despercebidos por cá e acabou a ajudar a desempoeirar o mercado. Isso foi um objetivo ou uma consequência?
As duas coisas. Agora em julho, vamos publicar o “Destransição, Baby“, da Torrey Peters, a primeira mulher trans a ser nomeada para o Women’s Prize for Fiction. É um livro que faz um diálogo super inteligente sobre o tema, ela tem um sentido de humor muito engraçado e faz uma desconstrução da questão da maternidade nas mulheres trans. É algo que que considero muito importante para quebrar barreiras em Portugal. Queria e quero, tanto no Book Gang como na Aurora, promover a mudança. Sempre tive a vontade de mexer com a literatura em Portugal, que foi sempre tão masculina. E permitir também abrir portas a novas autoras, contar histórias de e sobre mulheres. Podemos não ter essa consciência, mas a nossa bagagem histórica e cultural é contada pela voz de homens. Temos sobretudo mulheres escritas por homens e lemos muita literatura masculina, mas as mulheres escritas por mulheres não têm nada a ver com as que os homens escrevem. Claro que é interessante ler dos dois lados, também leio muitos livros de homens com quem aprendo imenso. No entanto, continuo a achar que é muito importante promover esta mudança porque Portugal é um país com uma cultura machista muito marcada. Vemos os números da violência doméstica, das mortes de mulheres. São assustadores num país tão pequeno como o nosso, mas não surpreendem se pensarmos na nossa cultura. Por outro lado, não gosto de abusar da palavra “machista”.

Como assim?
Não tornei os homens nos vilões neste livro. Acho que são também resultado da sua educação e das suas circunstâncias, de certa forma. Foram condicionados pela cultura patriarcal que sempre reinou em Portugal. O 25 de Abril foi há quase há 50 anos, é um legado ainda muito curtinho, e a geração que nasceu antes da Revolução ainda está viva e carrega essa marca. Eu vejo-o, por exemplo, em comentários que o meu pai faz. Não são maldosos nem eu o considero um homem machista, mas são observações que acredito serem o resultado da sua educação.

O livro saiu pela Suma de Letras.

“A Devastação” passa-se no mesmo universo narrativo que o seu primeiro livro, “Raparigas Como Nós”. Teve, desde o início, a vontade de explorar essas mesmas personagens?
Não, de todo. Na verdade, este livro já tinha uma parte escrita e era centrado numa criança que tinha crescido num orfanato. Era muito inspirado na história da minha própria mãe. Quando saiu a primeira versão do “Raparigas” em 2019, ainda por outra editora, havia esta personagem da Mar e por acaso era abordada a questão de ter tido uma infância de um grande abandono. Entretanto começámos a receber muito feedback de leitores sobre o apego que tinham por essa personagem, muito secundária e pouco explorada, porque o leitor no final do livro entendia o porquê dos comportamentos da Mar em relação à protagonista. Eu já estava a trabalhar n'”A Devastação” em 2019 e começou-se a pensar que se calhar fazia sentido ter um livro paralelo. Que esta história que estava a explorar podia ser centrada em Mar. Quando saiu a nova versão do livro, agora pela Penguin, em 2021, este livro já estava mais composto e também fez sentido para eles que fosse um livro paralelo. A início não queria fazer nada mais relacionado com o outro livro, porque queria explorar outras coisas e não pretendia ficar muito agarrada ao “Raparigas” e àquele registo, mas pensei em arriscar e ver o que é que saía.

Mar era a antagonista em “Raparigas Como Nós” e esta história representa-a de outra forma. Dá a entender que o próprio rótulo que colocamos às pessoas como vilãs é perigoso, não é? Porque não sabemos o que está por trás.
Gosto acreditar na ideia do ciclo do bullying, de que alguém que faz bullying é porque também sofreu do mesmo em alguma esfera da sua vida. Eu queria explorar muito isso, a questão de que grande parte das nossas dores são transformadas em sentimentos negativos para com a vida e para com as pessoas à nossa volta. A forma que usamos para lidar com as coisas que nos magoam não é a melhor na maioria das vezes. Vem daí o bullying e tantas outras situações que tornam uma pessoa uma vilã na sua vida. Achei que fazia sentido mostrar isso. Não queria casar-me ao “Raparigas”, queria seguir outro universo, mas depois dei por mim a pensar que as leitoras — eu sei que são maioritariamente mulheres — que leram esse livro também evoluíram como eu.

Em que sentido?
O meu medo era que quem leu o “Raparigas” podia não gostar de “A Devastação”, porque não tem nada a ver. É um livro mais maduro, e temi que não se identificassem com este por ser uma narrativa completamente diferente. No entanto, comecei a refletir que se calhar as minhas leitoras já evoluíram, tal como eu. E se calhar iam entender agora e identificar-se com a Mar e com esta história, iam compreender os problemas dela. Acima de tudo, eu queria criar uma história de como o nosso passado nunca deve condicionar o nosso futuro. Que podemos fazer o que quisermos com a nossa vida. Que podemos mudar-lhe o rumo independentemente do que nos aconteceu e das nossas devastações pessoais. E quis também mostrar como uma pessoa que é considerada vilã numa narrativa, noutra não o é. O leitor consegue entender os comportamentos dela e de como o facto de “ser a vilã” era a única forma que tinha de lidar com as suas emoções.

No livro toca em temas como o síndrome de abandono ou a forma como Mar tem raiva da felicidade alheia. Abordar a forma como o trauma norteia as nossas ações era um dos objetivos?
Sim, mas não é que ela não quisesse ver as outras pessoas felizes. É a injustiça que sente nisso, todos nós já o experienciámos. Muitas vezes vemos pessoas a ter aquilo que queremos e achamos que não o merecem. Isso não reflete nada da vida da outra pessoa, é apenas um espelho da forma como projetamos as nossas dores nos outros e fazemos deles os vilões. É-nos algo muito intrínseco. Se formos bem a ver, todos somos ou fomos vilões na vida de alguém. Já fizemos alguma coisa que magoou alguém ou tivemos algo que outra pessoa quis ter. Não acho que sejamos unidimensionais, todos temos um bocadinho vilão e um bocadinho bom. Quis em particular olhar para a questão do abandono, a raiva que Mar tem dentro de si e não sabe lidar com isso porque nunca foi ensinada tal coisa. Essa raiva manifesta-se em tudo à volta dela. Tive uma leitora a mandar-me uma mensagem muito engraçada porque é imigrante em França. Ela disse-me “Helena, não deves gostar nada dos franceses”, porque a personagem da Mar faz muitos comentários jocosos. Mas eu expliquei que tem nada a ver com isso. A raiva que tem em si é tão grande que sempre que pensa na mãe e no pai, imaginando o que estejam a fazer, direciona-a para isso. Se acha que os pais estão em Macau, faz piadas com a cultura chinesa, Se pensa que os pais estão em França, tem aversão aos franceses e a tudo o que envolve esse país.

No preâmbulo de “Raparigas Como Nós”, assumia que esse era um livro autobiográfico. Há também parte de si em “A Devastação”?
Tem muitas partes de mim. Outras amigas e escritoras que já leram e que me conhecem muito bem acabaram por ver ali pequenas coisas minhas. Como por exemplo, a personagem da Isabel, que era a principal do outro livro e aqui dei-lhe um papel muito secundário, só para dar suporte ao crescimento da Mar. Quis brincar com a questão da sua frustração. No “Raparigas” ela quer escrever, quer estar muito ligada a esse mundo, e quis torná la aqui numa escritora falhada que não consegue lidar com isso. Achei piada quando me diziam “a Isabel continua a ser a Helena”, porque coloquei-a a falar sobre a literatura no feminino, de essa ser a sua luta. Muitas das coisas que damos às personagens são também nossas. Não que isso reflita muito a minha pessoa, mas penso que a maioria dos escritores faz isso, nem consigo imaginar ser de outra forma. A Isabel tem muito mais de mim que a Mar.

Quanto a essa questão da literatura no feminino, nos materiais de promoção de “A Devastação” é afirmado que o romance pretende ser uma crítica ao sistema patriarcal que dominou e ainda domina Portugal. Alguns autores têm pudor em assumir que os seus livros têm um objetivo didático ou ideológico. No seu caso, são um veículo para as ideias que quer expôr?
Não direi “jamais” porque estamos sempre a mudar de ideias, mas não quero de todo assumir uma posição. Aquilo que eu gosto, como leitora, é quando estou a ler livros — mesmo de ficção, romance, o que seja — e estes levantam questões que me fazem pensar, ver as coisas com outros olhos. Também gosto de fazer isso, tanto que crio uma dualidade nesse tema dos autores. Tudo o que a Isabel diz, a outra personagem do Afonso contrapõe e dá outra visão. Ou seja, não há aqui ideologia contra o patriarcado, eu quero é que as pessoas reflitam. O que a Isabel faz é questionar porque é que ele [Afonso] só lê homens, porque esse é ainda muito o panorama em Portugal. E também coloquei a personagem dele a desconstruir as opiniões dela com muito sentido de humor. Porque não considero que aquilo que penso seja “o correto”. É um conjunto das minhas emoções e ideias, da minha bagagem e da minha vivência. Odeio ideologias porque acho que isso é muito perigoso. Não quero nunca seguir por esse caminho, o meu objetivo com este livro é apenas fazer refletir.

Quanto ao quê?
Não quero explicitar porque isso estragava a surpresa a quem ainda não leu, mas quero que se reflita a questão do abuso sexual que continua a acontecer em Portugal e no mundo inteiro. Queria muito que se refletisse a questão do trauma e de como se estragam as vidas de crianças a longo prazo. Quero que a grande reflexão do livro seja quanto ao facto que muita coisa é perdoada porque vivemos numa sociedade patriarcal e não refletimos quanto a isso. Outra ideia que quero destacar é como se relativizam os abusos sexuais na Igreja porque esta tem uma missão “maior”. Agora, eu e as pessoas da editora achámos desde o início que nunca poderíamos ir por aí, porque senão iríamos estragar a experiência de leitura ao dizermos que era isso que o livro abordava. Concluímos então que o livro visa o patriarcado de vários ângulos porque todas as personagens lidam com isso de alguma forma.

Portanto, a ideia do patriarcado não é o foco em si, mas é algo que exerce a sua influência na história?
Sim, a questão é que todas as personagens foram condicionadas pelo patriarcado de uma forma ou outra. Temos a personagem da Brigitte num casamento altamente falhado do qual não sai porque acha que não pode. Ou a personagem da Leonor, cuja família enviou para ser freira por não achar que estava apta a ser uma mulher de bem. Não sei se a ideia passou bem, o livro é muito recente, mas na verdade “A Devastação” não diz respeito apenas à Mar e à Anitta. É algo que afeta todas aquelas personagens, mulheres que em todas as suas esferas vivem a sua devastação e lidam com isso o melhor que conseguem. Ao mesmo tempo, não queria vitimizá-las, odeio pensar na mulher enquanto vítima. “Ai, coitadinha.” Não, eu queria mostrar que todas elas viveram a sua devastação e se reinventaram ou tiraram o melhor partido disso.

Estávamos há pouco a falar da promoção de mudança que veio com o BookTok e com o Bookstagram. Há também uma ideia a surgir de que as redes sociais começaram a tornar a literatura algo “cool and trendy”, o que levou a acusações de que é mais um movimento de “lifestyle” do que propriamente uma porta de entrada à leitura. Como é que se posiciona perante essa visão?
Não vou dizer o que realmente queria… Acho essa visão tão redutora, tão negativa e tão característica de Portugal… Eu fui leitora desde muito jovem. E o que é que lia quando tinha 14 ou 15 anos? As coisas populares da altura. Saía uma biografia da Britney Spears ou os livros dos “Arrepios”, eu ia ler.

Apanhou o fenómeno Dan Brown e tudo o que lhe sucedeu.
Li todos os fenómenos que apareceram. Dan Brown, Nicholas Sparks, Sveva Casati Modignani, a italiana. É muito engraçado que ela tinha mais sucesso em Portugal do que na Itália. Nós comprávamos aquilo que era uma loucura. Não tínhamos Netflix nem nada disso, papávamos tudo o que saía. Até o livro da mulher do Pinto da Costa eu li. Mas a ideia que queria partilhar é que um leitor constrói-se. Não me imagino a ler novamente o que lia com 20 anos, mas foi isso o que me tornou leitora. Esta geração que tem 20 anos e que começa a ler os romances populares que estão aí a surgir graças às redes sociais.

Como por exemplo?
A Colleen Hoover, Emily Henry, Taylor Jenkins Reid… estes fenómenos populares são o que cria leitores. Um dos livros que ficou super popular no TikTok foi o “Quando Éramos Mentirosos“, da E. Lockhart. O livro já era antigo e de repente a autora vê que voltou a entrar nas tabelas do “The New York Times”. Era uma situação que ninguém sabia explicar, até ela ter descoberto que estava viral no TikTok. Isto tem acontecido com muitos livros antigos que ressurgem de repente. É incrível porque temos um mercado super acelerado, publica-se muita coisa todos os meses. De repente, surgem estes fenómenos pontuais que trazem livros antigos para serem redescobertos, acho que é mais do que positivo. Além disso, eu fui comprar esse livro para ler também e não gostei nada (risos). Achei muito engraçado, porque me fez pensar que este é um livro que, se eu tivesse lido mais nova, teria gostado muito.

Que implicações é que isso tem para a indústria?
O que está a acontecer a muitos escritores é que de repente um livro cai nas graças [das redes sociais] e tem um “passa a palavra” inexplicável. Ninguém pode ficar indiferente ao fenómeno Colleen Hoover enquanto caso de estudo: uma autora com uns 20 livros publicados sem grande sucesso e subitamente bate todos os recordes de ter não sei quantos livros ao mesmo tempo no topo do “The New York Times”. Uma carreira para um escritor é construída a longo prazo, porque raros são os casos em que alguém lança uma coisa e aquilo estoura de repente. Toda a gente sonha ser a nova Elena Ferrante, mas isso é muito raro.

Esse tipo de fenómeno já chegou a Portugal?
Pelo contrário, estamos ainda muito agarrados a esta mentalidade de “literatura é a de Saramago, de Eça de Queiroz…” Ainda há pouco tempo estava a ler uma entrevista de uma editora que dizia “já não há gerações de escritores como foi a grande geração de Antero de Quental”. Estamos a falar do século XIX. Eu li aquilo e pensei “isto é um reflexo da nossa mentalidade, de que já não há uma geração tão boa como a dos escritores de 1890”. Foi há mais de 100 anos, por amor de Deus. E esta democratização da literatura que está a ser feita lá fora e que também está a chegar a Portugal vai ter impacto enorme. Nós que somos um dos países da Europa que menos … Isto é vergonhoso. Mas também devia ser motivador. Em Portugal, somos muito negativos, temos toda esta geração de editores com uma visão de que “ah, estes nunca se vão tornar leitores”. Claro que vão, mas a geração deles é diferente da minha.

Com a criação do Book Gang, sente-se responsável por essa mudança?
Já cria alguma pressão, sim. Não quero que o Book Gang seja moralista, mas às vezes há livros que sugiro e que sei que são difíceis de penetrar em Portugal. Mesmo assim, trago porque sinto que tenho de equilibrar entre o que sei que as pessoas querem ler e aquilo que gostava de lhes recomendar. Ou seja, entre coisas muito populares com outras que considero mais de nicho, mas que é literatura que me ensina, que me faz pensar, que me desafia. Este mês, por exemplo, eu trouxe Tessa Bailey, uma autora super popular do TikTok, que eu sei que é um livro cativante para criar leitoras. Mas também escolhi Brit Bennett, que adoro.

Em termos literários, tem mais alguma coisa na calha?
Tenho aqui outro livro meio-trabalhado e uma outra ideia que não sei se vou terminar antes desse projeto. O que me dá gozo são as infinitas possibilidades. Quero continuar a evoluir. Se por um lado tenho medo que se fizer sempre coisas muito diferentes vou perder os leitores, por outro quero estar sempre a desafiar-me.

Ou seja, é a encruzilhada entre manter uma certa identidade e continuar a explorar novos caminhos. Sente-se nesse ponto?
Sim, se compararmos os mercados, nos Estados Unidos um autor, quando uma coisa funciona, continua a explorá-la enquanto der, é algo muito típico dos americanos. O que acontece é que temos estes autores com 5, 6, 7 livros que são sempre variações do primeiro que teve muito sucesso. Isso é ok, porque o mercado americano é de vendas e faz sentido, mas é algo que a título pessoal irrita-me muito. Prefiro as autoras que me desafiam, em que cada livro é uma viagem completamente diferente. Como, por exemplo, Liane Moriarty, Elisabeth Strout ou Meg Wolitzer, cada livro é um desafio diferente para elas e nos dão qualquer coisa nova. É o que eu quero para mim. Se há cinco anos tinha capacidade de escrever “A Devastação”? Não, claro que não. É um percurso de evolução pessoal, enquanto leitora, enquanto escritora, enquanto ser humano.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT