É a série do momento. Não é só em Portugal que “Bridgerton” teima em não descolar do lugar de conteúdo mais visto na plataforma da Netflix. A empresa estima até que deverá ser vista por mais de 63 milhões de clientes antes do final do mês.
O efeito Shonda Rhimes — criadora de séries de sucesso como “Anatomia de Grey” ou “Scandal” que assinou um contrato de exclusividade com a Netflix no valor de 100 milhões de euros — já se faz sentir e colocou o mundo a comentar tudo o que está relacionado com a bizarra sociedade britânica imaginada na série.
Aquela que é já a quinta melhor estreia de conteúdos originais na plataforma leva-nos numa viagem até à sociedade britânica no início do séc. XIX, onde acompanha a vida de Daphne Bridgerton, a filha mais velha de uma família poderosa.
Inspirada nos romances da autora Julia Quinn e com narração de Julie Andrews, a história idealizada por Rhimes ganha novos contornos logo a começar no elenco, onde atores negros se apresentam como figuras de relevo na sociedade britânica. Mas até que ponto é historicamente correto o que nos mostram no ecrã?
“Olhem para a nossa rainha. Olhem para o nosso rei. Observem o seu casamento, tudo o que ele faz por nós, o que nos permite ser. Éramos duas sociedades divididas pela cor, até que um rei se apaixonou por uma de nós. O amor conquista tudo”, nota uma das personagens da série.
“Bridgerton” leva, de certa forma, ao limite uma realidade residual. De acordo com historiadores, existiam de facto alguns nobres negros, embora a sua aceitação não fosse, nem de perto, tão alargada como a que é exposta na série.
A exatidão histórica nunca foi o objetivo dos criadores de “Bridgerton”, que revelam a intenção de “criar um mundo que refletisse aquele em que hoje vivemos”. Entre o elenco, vemos nobres e duques negros, sem que nunca as personagens debatam a questão da cor — à exceção do comentário acima.
O exemplo paradigmático é o da Rainha Charlotte, interpretada por Golda Rosheuvel, uma mulher negra acaba por subir ao trono de Inglaterra. Apesar de ser uma visão moderna de uma produção de época, existe pelo menos uma suspeita de que, no caso da rainha, nem tudo seja uma total invenção.
A personagem inspira-se na figura real de Charlotte de Mecklenburg-Strelitz, que casou com George III para se tornar rainha de Inglaterra entre 1761 e 1818. A genética da aristocrata de ascendência gemânica e filha de um duque de uma pequena cidade do norte da Alemanha sempre levantou muitas dúvidas.
O mito existe e permanece entre as comunidades negras, que sempre olharam com desconfiança para os retratos de Charlotte, cujos traços faciais aparentavam alguma mistura de raças. “Apontavam-se os traços fisiológicos que tão obviamente identificam a etnicidade desta jovem”, afirma o “Frontline”, programa de investigação da norte-americana “PBS”.
Sem fotografias e apenas com base em retratos — cujos pintores tendiam a embelezar e a suavizar as feições tidas como menos atraentes dos sujeitos —, os traços negros são mais aparentes nas pinturas de Sir Allan Ramsay, um intelectual que publicamente se opunha à escravatura.
De acordo com o historiador Mario de Valdes y Cocom, é possível traçar a ascendência de Charlotte até Margarida de Castro e Sousa, pertencente “ao ramo mestiço da Casa Real Portuguesa”. “Podem ser traçadas seis linhas diferentes entre a Rainha Charlotte e Margarida de Castro e Sousa, num património genético que por causa da consanguinidade era já minúsculo — e que explica a inegável aparência africana da rainha”, explica.
A investigação publicada em 1990 estabeleceu portanto que “a rainha Charlotte é descendente direta de um filho ilegítimo de uma amante africana ligada à casa real portuguesa”.
Ao “Washington Post”, o historiador americano revelou que esse filho teria nascido da relação ilegítima de Afonso III com a amante “Ouruana”, também conhecida como “Mourana” ou “Madragana”, supostamente uma muçulmana negra — um dado que ainda hoje é alvo de discussão.
Valdes remete outras suspeitas da etnicidade de Charlotte para o relato de um médico real, o Barão Christian Friedrich Stockmar, que terá descrito a rainha como “pequena e sinuosa, com uma verdadeira cara de mulata”. Um dos ministros terá dito que teria “um nariz demasiado largo e lábios demasiado grossos”. Várias menções são feitas ao seu aspeto físico, das feições à tez de pele mais escura e ao cabelo encaracolado.
“Muitos historiadores acreditam que Charlotte foi a primeira rainha mestiça. Isso de certa forma influenciou-me”, explica Chris van Dusen, o showrunner de “Bridgerton”. “Comecei a pensar como é que seria se tal acontecesse. O que poderia ter feito essa rainha? Poderia ela usar os seus poderes para elevar outras pessoas de cor na sociedade? Dar-lhes títulos?”