Jaya. O nome já servia de pista para aquele que seria o seu destino: ser artista. A arte, em boa verdade, também lhe corria nas veias. Jaya Girão é filha de Fernando Girão, nome bem conhecido no meio na década de 70 em Portugal — mas que só conheceu já em adulta. A mãe também gostava de pintar. “Nasci para fazer isto. Eu não faço arte. Eu respiro arte”, conta à NiT a mulher de 46 anos que hoje é uma das caras do cabaret burlesco.
Os pseudónimos em palco são obrigatórios. O mais conhecido é Vanity Redfire. Foi ela que, em 2012, ajudou a reviver esta arte no nosso País graças ao coletivo Voix de Ville.
Tudo começou em Lisboa, onde nasceu e, aos seis anos, já se deixava fascinar com filmes como “Cabaret”, com Liza Minnelli, e “Anjo Azul”, com Marlene Dietrich. Sempre foi apaixonada pelas grandes divas de Hollywood. O glamour da época de ouro da indústria do entretenimento continua a refletir-se nos seus outfits dramáticos e cheios de cor.
“Quando estava na idade formativa fui posta em contacto com esta forma de arte e foi algo que sempre adorei. Mas a vida foi continuando”, comenta. Esta paixão intensificou-se entre 2000 e 2008, período em que viveu em Londres. Coincidiu com a altura em que o burlesco estava a renascer na capital da Inglaterra, graças a performers como Dita Von Teese. “Eu era frequentadora desses ambientes”, reforça a mulher de 46 anos. Em 2008, voltou para Lisboa.
Trabalhava como cabeleireira na capital e foi a profissão que a levou ao mundo das artes. Recorda-se de, em abril de 2011, estar a tratar do cabelo de Diamanda Galás, uma cantora norte-americana e pediram-lhe para cantar. “Tivemos uma grande conexão. Ela fez-me ver que estava a desperdiçar um dom com o qual tinha nascido.”
A sua carreira começaria oficialmente meses mais tarde. Em dezembro foi convidada para participar num espetáculo de cabaret com artistas internacionais que decorreu na Casa do Alentejo, em Lisboa. Incentivada pela conversa com Diamanda, decidiu aceitar. Na semana seguinte estrear-se-ia na recém-inaugurada Pensão Amor, casa que nasceu ao mesmo tempo que a sua carreira “Digo sempre que sim à vida.”
Subir ao palco não a deixava nervosa. Já tinha tido experiência no passado. Em 2003, atuou no Ronnie Scott’s Jazz Club, onde também já cantaram ícones como Ella Fitzgerald e Nina Simone. E não estava sozinha: ao seu lado tinha Fernando Girão, o pai que apenas conheceu naquele ano.
“Pensei toda a vida que ele não me queria conhecer. Em 2003 gravei a minha voz pela primeira vez no estúdio de um amigo, só por brincadeira. Percebemos que tinha um dom e que este tinha sido transmitido pelo meu pai”, recorda.
O encontro deu-se primeiro por email, quando enviou uma mensagem a apresentar-se. Ainda se lembra do que escreveu. “Nunca me conheceste, mas deste-me algo que me tem acompanhado a vida toda. Agradeço-te por isso”. Quando Fernando viu a mensagem, respondeu de imediato — e convidou-a para ir com ele ao Ronnie Scott’s, onde viria a atuar nessa semana, a convite dos artistas Flora Purim e Airto Moreira.
Vanity Redfire nasceu oficialmente em 2011, com nome desenrascado à última hora. Juntou a sua cidade favorita, Veneza, cuja forma arcaica de escrita significava vaidade, e um pouco da sua personalidade. “Sou leão com ascendente em leão e tenho temperamento de diva. Costumo dizer que a Vanity Redfire é a diva quase humilde”, brinca.
Após uma atuação a solo, percebeu que não era assim que se queria apresentar. “O que me interessava era o bem maior e poder organizar espetáculos. Queria materializar os shows que tinha na minha mente”, afirma a lisboeta. Foi recrutando outros talentos para o coletivo que estava a criar: o Voix de Ville. Tudo começou com Mónica Pedroto, também conhecida por Lily Blanche, e Manu de la Roche. Mais tarde vieram artistas como Veronique Divine, Lola Herself, Fraulein Margret, Francisco Sassetti ou Ritto Wanderlust.
Tem hoje um elenco com 20 artistas e a ambição passa por alargar o leque de performers. Está consciente, porém, de que Portugal “é uma força muito pequena no mundo do cabaret”.
Nem tudo são problemas: “Os artistas são muito diferentes uns dos outros e têm uma identidade muito distinta.” Como esta é uma indústria cara — um figurino custa, geralmente, mais de 1.000€ — só investe nesta arte quem realmente é apaixonado por ela.
O Voix de Ville também tem um aspeto que o distingue de outros coletivos do meio. “O cabaret burlesco é muito associado ao entretenimento. Nós diferenciamo-nos pela mensagem de inclusão e a sua celebração”. Quando assistimos a um espetáculo do grupo, podemos encontrar “pessoas como nós e de todos os caminhos da vida”.
A visão que tem para a arte está intrinsecamente ligada à infância e à memória da avó, a “presença mais importante” da sua vida, que descreve como “uma mulher muito corajosa e que desafiava a norma”. Sem a presença do pai em miúda, foi o melhor amigo da avó que preencheu esse vazio, que era homossexual. É também o fundador da associação Opus Diversidades.
“Fui criada numa altura em que não podíamos ser gays e tínhamos de levar uma vida dupla. Via as dificuldades que ele tinha. Agora, uso a arte como instrumento de inclusão, porque é bom para a sociedade quando as pessoas são incluídas. Toda a gente tem o direito a ser feliz”, reforça.
Além de contribuir para a criação de espaços seguros para pessoas que não se enquadram na norma da sociedade, contribuiu para o renascimento do cabaret burlesco em Portugal. Mas não foi a única. “A Sara Vargas e o Carlos do Cais Sodré Cabaret também merecem receber um destaque, porque foram pessoas que começaram a fazer isto outra vez em Portugal. Antes de ser artista, cheguei a ver um espetáculo deles e do Manel João Vieira no antigo Maxime em 2009”.
Como o destino funciona de uma forma por vezes engraçada, hoje é diretora artística dos espetáculos de cabaret da icónica sala de Lisboa, uma função que surgiu graças a um convite de Roger Mor em 2018. Vanity, porém, atua em muitos outros lugares, como a Pensão Amor e o Cine Incrível, em Almada.
Lamenta, contudo, a desvalorização desta arte em Portugal, embora o cenário “seja hoje melhor”. “Cabe-nos a nós trabalhar para que este meio artístico possa ser valorizado.” O Voix de Ville é o único projeto de cabaret burlesco a ter no seu currículo apoios que vão da Fundação Callouste Gulbenkian ao Fundo de Fomento Cultural e DGArtes.
É uma grande parte da sua vida, mas esta mulher não é apenas a Vanity Redfire. Enquanto Jaya está a preparar o seu primeiro álbum, “Maiden, Mother, Crone”, e faz teatro de rua a nível nacional e internacional. Também participa nos concertos à luz das velas do Candlelight e já cantou em hotéis de norte a sul de Portugal.
Tudo isto foi alcançado após uma mudança repentina na sua vida e, no início, eram poucos aqueles que a ajudaram. “A parte artística nunca foi muito incentivada. Tirei uma licenciatura em Publicidade e Marketing e tive um emprego normal. Foi muito mais tarde que percebi que só iria ser feliz se fosse artista”, conta-nos. No seu fundo sempre soube que era cantora. A voz era, desde miúda, a sua grande companhia. “Se perguntares se sempre fui artista, a resposta é sim. Se sempre fui artista profissional? Não.”
Agora, os seus planos passam por credibilizar ainda mais a arte do cabaret burlesco. “Às vezes estou a distribuir cartazes e fazem piadas. Acredito que o meu propósito é mostrar a diversidade de pessoas que há no mundo e elevar esta forma de arte”. Ao mesmo tempo, quer mostrar que também as “plus size” como ela podem ser livres e arrojadas. “Quando subo ao palco, ainda há pessoas ofendidas porque me apresento como uma mulher sexy e bonita A liberação do corpo feminino continua a afetar muita gente. Quando o teu corpo é maior, é uma ousadia seres sensual.”