Em setembro de 2020, estreou na RTP1 “Depois do Crime”, uma série documental da autoria da jornalista Rita Marrafa de Carvalho. Três crimes que chocaram o País estiveram em destaque na primeira temporada — todos tiveram uma enorme cobertura mediática e longos processos judiciais.
A 6 de outubro deste ano chegou às livrarias uma continuação desse trabalho. “Depois do Crime”, o livro, centra-se em oito crimes e aprofunda os casos que já tinham sido abordados na produção televisiva. A edição da Casa das Letras tem 208 páginas e está disponível por 16,90€.
“Foi um convite da LeYa depois do programa mas que vinha muito ao encontro de uma insatisfação que eu sentia”, explica Rita Marrafa de Carvalho à NiT. “Porque a série documental é muito centrada — e bem, porque é assim que deve ser — nas personagens e não no jornalista, mas havia todo um processo que me tinha levado à execução que ficava de fora. Inclusivamente alguns detalhes de conversas, pormenores dos processos, algumas referências que não acrescentavam mas enriqueciam narrativamente. E quando tens 50 minutos de episódio, não cabe tudo. E acima de tudo não cabe a perspetiva de quem o faz nem a análise externa de quem o executa. E eu tinha essa insatisfação, porque é muito ingrato quando tens muito material. Por isso casou bem e assim nasceu.”
No livro, a jornalista explica aos leitores, por exemplo, como conseguiu chegar às pessoas, revela a primeira reação de cada uma delas, descreve a sensação que teve quando viu as fotografias das autópsias das vítimas, o que sentiu quando ouviu as escutas telefónicas ou quando entrou na casa dos entrevistados.
“Essa interpretação mais privada, que não tem espaço numa série documental, mas que teria espaço num livro mais centrado na minha perceção dos casos. Todos nós gostamos de ver os bloopers ou as behind the scenes, não é? Acho que surpreendem bastante as pessoas que não têm noção como é que se faz uma coisa daquelas. E também não têm conhecimento de como é que as pessoas são quando a câmara está desligada — porque o constrangimento audiovisual pressupõe que tenhas sempre um discurso mais controlado, mais rígido, e quando a câmara desliga quase que voltas a ser um bocadinho mais tu mesmo.”
Alguns dos outros crimes que estão no livro vão fazer parte da segunda temporada de “Depois do Crime”, que vai estrear para o ano. A série tem entrevistas intimistas com os protagonistas das histórias reais e recorre apenas aos seus depoimentos para relatar os casos — não há, como é habitual em reportagens ou outros formatos de investigação jornalística, a voz de um repórter a contar o que aconteceu. Trata-se de uma linguagem diferente.
A ideia é olhar para estes casos com o distanciamento temporal e afetivo suficiente para que o público possa ter novas perspetivas sobre eles, colocando questões que sempre foram pertinentes mas que agora têm mais espaço para existirem. Permite ainda refletir sobre a forma como a justiça portuguesa funcionava há 20 ou 30 anos e de como a opinião pública, ou os preconceitos da altura, podiam influenciar os casos.
A ideia foi sempre haver um foco nos “crimes de sangue”. “Que nós consideramos ser o limite da humanidade, não é? A partir dali passamos a ser desumanos. Porque quem mata, e como se mata, e daí esta paixão que grande parte das pessoas tem pelo true crime, é o improvável, é o: como é que conseguiu?”. Estes são os oito assassinos que são aprofundados no livro.
O Monstro de Fortaleza
Luís Militão ficou conhecido como o “monstro de Fortaleza”. Aconteceu em 2001, quando este português emigrado no Brasil assassinou seis empresários portugueses por motivos financeiros. Foi condenado a 150 anos de prisão no Brasil e este caso demonstra também as disparidades entre a justiça brasileira e a portuguesa.
O Crime do Padre Frederico
O primeiro que foi abordado na televisão foi o do Padre Frederico, que aconteceu em 1992. O padre brasileiro, residente na ilha da Madeira, foi acusado da morte e abuso sexual de um jovem de 15 anos. Luís Correia foi encontrado no fundo de uma ravina sem camisa, descalço e com sinais de uma forte agressão na cabeça.
O padre e o alegado amante, de 19 anos, foram condenados. Frederico Cunha foi sentenciado a 13 anos de prisão. Depois de cumprir seis, teve direito a uma saída precária. Só que aproveitou para fugir para o Brasil. A culpa do padre no homicídio foi sempre uma dúvida que permaneceu. E Rita Marrafa de Carvalho relata, no livro, uma chamada que teve com o Padre Frederico que poderá ser esclarecedora.
Maria das Dores
Descrita como socialite, Maria das Dores é uma mulher que encomendou o homicídio do marido, Paulo Pereira da Cruz, e foi condenada a uma pena de 23 anos. Os maus-tratos verbais, os ciúmes e um ambiente cada vez mais tenso na relação terão sido os motivos que a levaram a tomar a decisão que resultou na morte do marido.
Rita Marrafa de Carvalho conta à NiT que este era um dos casos que queria contar na versão televisiva de “Depois do Crime”, mas não havia material suficiente para um episódio de quase uma hora. “Houve aqui duas grandes impossibilidades — e eu inclusive cheguei a entrevistar duas pessoas para esse episódio. Um foi a Maria das Dores ter dado uma entrevista longa pouco antes de eu lhe propor uma entrevista — essa entrevista acabou por levar a uma medida do estabelecimento prisional que é não haver mais precárias nos próximos tempos, e como tal ela não voltaria a sair da prisão tão cedo nem voltaria a dar entrevistas porque seria de alguma forma punida por isso. E depois a dificuldade que encontrei de que muitas pessoas falassem. E algumas demonstraram mesmo muita resistência na prática. Disponibilidade na conversa, depois íamos marcar um dia e uma hora e retraíram-se.”
O Mata-Sete
“Depois do Crime” também conta a história do Mata-Sete, ocorrida em 1987. O bancário Vítor Jorge, da Marinha Grande, ficou assim conhecido depois de ter assassinado sete pessoas (cinco raparigas jovens e a própria mulher e filha) na Praia do Osso da Baleia, no concelho de Pombal.
Cabo Costa
Antigo membro da GNR, António Luís Costa foi um serial killer que foi condenado em 2007 pelo assassinato de três raparigas jovens em Santa Comba Dão. Foi cabo militar durante 25 anos até se reformar em 2004. No ano seguinte, os crimes começaram. Os corpos das suas vítimas foram deixados em barragens e no mar. Segundo a acusação, o cabo Costa foi movido por impulso sexual e tentou declarar-se insano para não enfrentar as consequências — e inclusive acusou o tio de uma das vítimas de ser o verdadeiro culpado. Recebeu a pena máxima de 25 anos de prisão.
O Monstro de Beja
Foi assim que ficou conhecido Francisco Esperança, bancário reformado de 59 anos, que em 2012 foi detido pela polícia, embriagado e em cuecas, quando lhe bateram à porta de casa. Francisco Esperança tinha assassinado a mulher, a filha, a neta de quatro anos e os animais de estimação com uma catana.
Os corpos permaneceram na sua casa e conviveu com eles durante uma semana, prosseguindo a sua vida como se nada tivesse acontecido. O homem terá dito que queria poupar a família aos problemas de dívidas — e havia dúvidas sobre relações incestuosas na família. Francisco Esperança acabou por se suicidar na prisão.
Tó Jó
António Jorge Santos, que era chamado de Tó Jó, ficou conhecido como o metaleiro que matou os pais, em 1999. O crime aconteceu em Ílhavo e o pai, Jorge Machado, era um médico conceituado. Tanto ele como a mulher foram brutalmente assassinados com vários golpes de faca. Na altura surgiram especulações de que os homicídios poderiam estar ligados a rituais satânicos — o que fez aumentar o interesse mediático pelo sinistro caso.
Manuel Palito
Manuel Palito é o mais recente dos oito homicidas. Foi em 2014 que matou com uma arma de fogo a sogra e uma tia da ex-mulher — e depois esteve 34 dias fugido à polícia. A ex-mulher e a filha também estavam no local, mas conseguiram sobreviver. O criminoso, que faleceu este ano com leucemia, já tinha sido condenado anteriormente por violência doméstica.
Rita Marrafa de Carvalho revela que há outros dois casos que gostaria de abordar. “Um é o que nunca foi resolvido, o do estripador de Lisboa. E o outro, que não é um crime de sangue, mas a minha curiosidade jornalística está muito associada à curiosidade que sempre tive no que diz respeito à saúde mental, que ficou designado como o violador de Telheiras. Este é um caso de alguém absolutamente funcional, com uma vida estruturada, com trabalho, com namorada com quem vivia, e há uma compulsão sexual para fazer um determinado tipo de ato. E para mim era interessante perceber qual é o trigger, quando é que se dá o twist na vida desta pessoa? Eu sei que é difícil porque provavelmente o resguardar faz parte do processo de tratamento, digamos, mas acho que é uma história que, também uma vez mais por razões de reserva das famílias e das vítimas — porque muitas delas eram menores — é um caso difícil.”