O adeus de Daniel Craig ao papel de James Bond fez reanimar os motores da especulação e as vozes que pediam uma mudança. Um novo Bond mais inclusivo e representativo. Poderia ser um homem negro com Idris Elba na pole position? Poderia abrir-se caminho a um Bond feminino? A todas estas especulações, os responsáveis pela saga têm respondido não. Contudo, no universo dos livros inspirados na obra de Ian Fleming, o cenário parece começar a mudar.
Embora Bond se mantenha intacto — e curiosamente ausente da nova trilogia —, o elenco de agentes com licença para matar é cada vez mais diverso. Há uma mulher, um negro homossexual com surdez e outro com raízes sudanesas e paquistanesas.
São estes agentes as estrelas de “Double or Nothing”, o primeiro capítulo da nova trilogia, que foi lançado em setembro, e que vem assinado por Kim Sherwood, a primeira mulher a colocar-se no papel de autora de um livro oficial da saga Bond. Antes de si, Bond foi estrela de perto de 40 livros, todos lançados na era pós-Ian Fleming.
Mas é a obra de Sherwood que traz uma mudança definitiva, sobretudo pela ausência de James Bond — que, contrariamente aos filmes, nos livros nunca chegou a morrer. “Penso sempre em Bond como a estrela deste mundo e certamente que tem um certo peso [no livro]. Mas se ele estiver no ecrã ou nas páginas, será sempre ele o centro das atenções. Isso não permite dar espaço a novas personagens. Por isso decidi que ele estará ausente desde o início, como forma de o retirar do centro da história, para que outros possam assumir o seu lugar”, revela a escritora ao “El País”.
Neste novo capítulo, o palco é deixado livre para as novas personagens. Moneypenny regressa e é agora quem lidera este grupo de agentes secretos implacáveis. Q é agora um supercomputador de inteligência artificial.
E os papéis principais ficam a cargo de Joanna Harwood, a agente francesa de raízes argelinas que se envolveu romanticamente com Bond, nome de código 003. Depois há 004, Joseph Dryden, homem negro assumidamente homossexual e que sofre de surdez de um dos ouvidos; e , por fim, 009, Sid Bashir, filho de pai sudanês e de mãe paquistanesa.
“É incrível poder ter a oportunidade de trazer estes livros até ao século XXI”, afirmava Sherwood, de 33 anos, por altura do anúncio da sua escolha, no final de 2021. A britânica é uma lufada de ar fresco e sucede a quatro homens, todos na casa dos 60 e 70 anos de idade.
“Quis criar novos heróis do nosso tempo. Os meus agentes são um grupo diverso, encarregue de combater as ameaças atuais, descobrir a toupeira que existe dentro do MI6 — e a pequena tarefa de encontrar o paradeiro de James Bond, desaparecido em missão.”
Fã inveterada de Bond
Professora universitária, tornou-se numa autora conhecida graças a “Testament”, publicado em 2018, que se inspira na vida atribulada dos avós, judeus nascidos na Hungria e que sobreviveram aos horrores do Holocausto. É de outro avô que surge também a primeira ligação ao mundo de Bond.
George Baker, seu avô, fez parte do elenco de pelo menos três filmes, sempre em papéis distintos. Em 1967 fez de figurante, um engenheiro da NASA, em “Só Se Vive Duas Vezes” de 1967. Voltou em “Ao Serviço de Sua Majestade” como especialista em genealogia; e mais tarde em 1977 em “O Espião Que me Amava”, como oficial de um submarino nuclear.

Apaixonou-se pelo agente secreto britânico graças a Pierce Brosnan, então o 007 do primeiro filme que Sherwood viu, “Goldeneye”. Depois apaixonou-se pelos livros, “pelo estilo, pelo suspense”. “Ainda adolescente, a minha professora de inglês pediu-nos para escrevermos um trabalho sobre um autor que admirássemos. Escolhi o Ian Fleming. Sempre sonhei escrever algo de James Bond”, conta ao “The Guardian”. “É raro ver os sonhos tornarem-se realidade.”
Na verdade, Bond também está presente no seu mais bem-sucedido livro “Testament”. “Já continha algumas referências a Bond”, admite. Quando o seu agente lhe revelou que a editora estava à procura de um novo autor, Sherwood fez a sua parte.
“Escrevi-lhes uma carta com as minhas ideias, a explicar o que faria se me fosse dada a oportunidade. Sei que a história é o legado da família e sei que é importante que os autores sejam verdadeiramente apaixonados. Encontrei esse trabalho que tinha escrito na escola, fotocopiei-o e enviei-o aos Flemings. Disse-lhes que seria um sonho tornado real.” E a resposta foi sim.
Uma visão fresca de uma velha história
“O James Bond sempre se manteve como um símbolo permanente do Reino Unido porque ele vai mudando connosco”, garante a escritora, que aponta para a maior diversidade e inclusividade como algo realista e menos como uma agenda ideológica. “A primeira coisa que fiz foi perceber como é que o MI6 recruta os seus agentes. Fui ao site deles e vi os requisitos (…) O que eles explicam é que pretendem pessoas de todo o tipo de contextos, diferentes experiências de vida. E quando pensas bem nisso, tudo faz sentido, porque se todos os teus espiões forem homens brancos heterossexuais que frequentaram Eton, então haveria um número muito limitado de missões em que poderiam participar.”
O novo livro traz também outro pormenor importante nos dias de hoje, a crise climática. A história apresenta uma bizarra invenção que pretende reverter os efeitos nefastos do aquecimento global, algo imaginado, claro, por um multimilionário excêntrico. “O Ian Fleming falava sempre sobre as grandes ameaças dos seus dias, sobre aquilo que preocupava as pessoas, o medo do comunismo, das bombas nucleares. Ele também escreveu sobre os primeiros passos dos movimentos feministas, dos movimentos pelos direitos civis, tudo isso está presente nas narrativas. A crise climática é hoje uma das nossas principais preocupações e quis trazer isso à história.”
E para uma personagem que está ausente em todas as páginas do novo livro, Sherwood perdeu bastante tempo a pensar nela. Na verdade, Bond está omnipresente, mesmo que indiretamente. “Comecei a pensar nele, no seu passado, na quantidade de perdas que ele experienciou. Nos livros, ele perde os pais ainda novo, depois a primeira mulher que amou, depois a esposa no primeiro dia de casamento. É perda atrás de perda atrás de perda”, conta. “Olhamos para ele através do olhar dos outros, até porque cada personagem tem uma opinião diferente sobre ele. É com se ele fosse um puzzle e cada nova personagem ajuda a preenchê-lo, peça a peça.”
Sherwood quis também prestar uma homenagem feminista através da sua personagem Joanna Harwood. O nome foi resgatado do filme “Dr. No” de 1962 e de “Da Rússia Com Amor” de 1963; Harwood foi a primeira mulher a escrever sobre Bond como co-argumentista, quase seis décadas antes de Sherwood e de Phoebe Waller-Bridge, que colaborou na escrita do guião de “Sem Tempo Para Morrer”.
“Queria prestar homenagem a essa geração de mulheres porque se não fosse o seu pioneirismo na indústria criativa da altura, a minha geração nunca poderia fazer o que está a fazer hoje.”
Dos livros para os filmes?
Se os livros decidiram virar a página e inovar, o mesmo não se poderá dizer da saga cinematográfica. Segundo os responsáveis — os direitos dos filmes estão nas mãos da família Broccoli e da Amazon —, o próximo ator Bond “pode até não ser um homem branco”, mas com certeza não será uma mulher. O casting para o sucessor de Daniel Craig está em andamento, mas a dinâmica é complicada.
Os detentores dos direitos cinematográficos não pretendem criar inúmeras prequelas, sequelas e spin-offs; preferem manter a saga bem focada em Bond. E especula-se que a inovação dos livros possa servir para pavimentar um novo caminho para os filmes.
Sherwood não sabe se será essa a realidade dos próximos anos, mas garante que era esse o seu objetivo. “Senti que era um convite para criar uma história inclusiva, deixar entrar em cena mais personagens que possam ser heroicas, mantendo ao mesmo tempo James Bond no papel de James Bond, sem mudar os seus traços.”