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Elena Ferrante. A misteriosa identidade da escritora italiana que é um sucesso mundial

Escreve best sellers desde 1992 sob um pseudónimo e tem visto várias obras darem origem a séries e filmes. A mais recente chega agora à Netflix.
O mistério perdura.

Há precisamente trinta anos, Elena Ferrante lançava o seu primeiro livro e em apenas três anos, via-o ser adaptado ao cinema e concorrer no prestigiado Festival Internacional de Cinema de Cannes. As décadas que se seguiram foram prolíficas: a autora italiana editou mais onze obras.

As restantes histórias de Ferrante têm também têm saltado das páginas para a televisão e para o cinema. Além do primeiro livro e de “A Filha Perdida” chegar ao cinema em 2021, “A Amiga Genial” foi adaptada para a HBO em 2018 — e a 4 de janeiro foi a vez de “A Vida Mentirosa dos Adultos” chegar à Netflix.

Estima-se que tenha vendido mais de 15 milhões de cópias em todo o mundo. Um sucesso a que aliou ao Man Booker Prize em 2016 e a eleição como uma das pessoas mais influentes do ano para a revista “Time”. Contudo, ao longo de trinta anos de sucesso, um dado permaneceu sempre oculto: a sua verdadeira identidade.

Naturalmente, à medida que o seu pseudónimo se tornava mundialmente reconhecido, foram muitos os que tentaram — e ainda tentam — descobrir o verdadeiro nome por detrás desta anónima escritora italiana. Mas será que é mesmo uma escritora? Até isso tem sido colocado em causa pelas mais diversas teorias e rumores.

Nápoles é o centro do mundo de Ferrante, onde têm lugar as histórias e onde vivem as personagens das suas Novelas Napolitanas. E a sua enorme fila de fãs procura nas páginas dos livros as pistas que indiquem, afinal, quem é a autora. Muitas vezes omissa em detalhes, as histórias parecem muitas vezes coincidir com pormenores reais.

Em 2015, a “NPR” viajava até à cidade italiana para uma investigação. Apesar de Ferrante não revelar o nome dos bairros onde vivem as personagens, as descrições permitem que se chegue aos locais. É aí que, num café cujo dono nunca leu uma única passagem de Ferrante, descobrem o ouro. Perguntam-lhe qual foi o primeiro automóvel do bairro. “Um Fiat 1100. O dono do carro ficou um pouco maluquinho das ideias”, atira o homem.

“Ficámos estarrecidas. Era como se ele estivesse a falar de Marcello Solara, o vilão nos quatro livros da série de Novelas Napolitanas. As semelhanças curiosas acumulam-se: o seu sobrinho indica que o sapateiro local se chama Gennaro, mas que todos o conheciam por Rino. Até o dono do café fica surpreendido com o quanto nós sabemos.”

Raramente dá entrevistas. Quando as concede, acontecem sempre por email. Isso não tem impedido muitos jornalistas de tentarem ir desenhando o perfil da escritora por detrás do pseudónimo. Em 2013, o crítico literário James Woods compilou muitas das pistas que foram sendo assumidas como autobiográficas.

Ferrante terá nascido em Nápoles, mas terá vivido durante vários períodos fora de Itália. Tem formação em história e literatura clássica, será mãe e não estará casada. Além de escrever, estuda, traduz e ensina. Mais do que isso, pouco se sabe — apenas se especula.

Foi no pico da sua popularidade, em 2016, que chegou o primeiro aparente grande golpe contra a sua anonimidade. Um trabalho do jornalista de investigação Claudio Gatti, que procurou por outros meios que não os da interpretação chegar ao verdadeiro nome da autora.

O jornalista socorreu-se de registos financeiros e de contratos imobiliários para chegar a um nome: Anita Raja. Raja era uma tradutora que vivia em Roma e que, segundo Gatti, estava por detrás do pseudónimo.

Gatti descobriu que os pagamentos da editora a Raja aumentaram 50 por cento em 2014 e mais de 150 por cento em 2015. Em cinco anos, passou a receber sete vezes mais do que recebia até então. Sandra Ferri, uma das donas da editora, recusou comentar sobre a conclusão de que Ferrante era Raja, mas deixou uma nota: “Se alguém quer ser deixado em paz, deixem-na em paz. Ela não é membro da Camorra, não é o Berlusconi. É uma escritora que não faz mal a ninguém.”

A verdade é que o nome de Raja, para quem circulava no meio literário, era ocasionalmente atirado para o ar. Os registos de Gatti vieram apenas dar mais força à hipótese. Mas havia mais por desvendar. Muito se falava sobre a semelhança das traduções de Raja com a escrita de Ferrante. Mais: Raja é casada com o também escritor Domenico Starnone, também ele apontado como possível nome por detrás do pseudónimo. Há quem atire que as obras poderão até ser um trabalho conjunto do casal. Certezas? Ninguém as tem.

Gatti não ficou imune a críticas. Muitos fãs apontaram o dedo aos que procuravam saber a verdade, acusando-os de sexismo e de não respeitarem a vontade da autora. O jornalista defendeu-se. “Gostaria de frisar que Elena Ferrante (com a ajuda dos seus editores) foi a primeira pessoa a violar a privacidade da Elena Ferrante. Fê-lo ao providenciar informação sobre si própria em várias entrevistas. Contudo, a informação que providenciou era falsa. A filha da costureira napolitana, as três

Raja é, assim, a grande suspeita. Uma italiana filha de uma judia alemã que escapou ao Holocausto e se refugiou primeiro em Milão, depois na Suíça, até se reunir com a sua família em Nápoles. Mudou-se aos três anos para Roma onde se formou em literatura.

Eventualmente, Gatti teve que se justificar. “Percebo que muitos dos seus leitores ficarão chateados, mas este é o grande mistério italiano fora de Itália, quem é Elena Ferrante. Eu providencio respostas, é o que faço da minha vida.”

Para Gatti, a culpa não é sua, mas sim dos editores que a terão convencido a lançar textos autobiográficos com “mentiras”, o que terá justificado a sua investigação por forma a repor a verdade. E também aponta o dedo aos colegas da imprensa, por alimentarem “o mito da anonimidade” quando “a identidade já é conhecida”.

Nada disso impediu que, em 2017, a abordagem para a descoberta da sua verdadeira identidade mudasse. Na Universidade de Pádua, investigadores usaram software que analisou 150 obras italianas de mais de 40 autores. O computador procurou semelhanças na escrita e chegou à conclusão de que o estilo mais parecido era o de Domenico Starnone, precisamente o marido de Anita Raja, que seria assim o mais provável candidato a face por detrás de Ferrante.

Imperturbável, Ferrante tem continuado a produzir obra atrás de obra. E num discurso escrito em 2021, ofereceu algumas explicações sobre a opção do anonimato.

“Um professor que eu muito admirava — e considerava ser muito autoritário — chamou-me uma manhã e perguntou-me num tom afável e compreensivo: ‘Porque é que te comportas assim? Porque é que paraste de estudar? O que é que queres fazer da tua vida?’ Respondi-lhe apenas porque me pressionava. ‘Quero escrever.’ ‘Escrever o quê?’ ‘Histórias.'”

“Ele olhou para mim de uma forma que nunca esqueci, como se eu lhe tivesse faltado ao respeito. ‘Histórias? Como é que tu, aos 13 anos, és capaz de chegar aqui com esse ar descarado e dizer-me ‘não vou estudar porque quero escrever historias’?”

Segundo Ferrante, a reação do professor “arruinou” o seu “prazer em escrever histórias”. Lavada em lágrimas, ficou com essa memória na cabeça. “Decidi que iria começar a escrever, mas que nunca diria nada a ninguém.”

“A humilhação afetou-me e mais tarde, apesar da presunção da juventude, fui muito cautelosa. O mais importante era menos a ideia de me deixar definir por uma imagem, por um papel, e mais a liberdade que teria de cometer erros e voltar a tentar, cometer mais erros sem estar sob a ameaça e a chantagem de ser humilhada.”

Carregue na galeria para conhecer as novas séries que chegam à televisão em janeiro.

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