Na segunda temporada de “Emily em Paris”, a popular série da Netflix, um dos cenários que aparecem na história é uma livraria lusófona. O espaço é real, como já lhe explicámos neste artigo, e chama-se Librairie Portugaise & Brésilienne.
Fica num dos quarteirões mais nobres da capital francesa e foi fundada em 1986 por Michel Chandeigne. Aos 65 anos, gere a livraria com a jovem Corinne Saulneron. A editora Chandeigne, uma referência na área, está a cargo de Anne Lima — mas obviamente Michel também está envolvido.
De Paris para Lisboa, a cidade onde viveu e que o fez apaixonar-se pela cultura lusófona, dá uma entrevista por telefone à NiT. Com um forte sotaque, o seu português é percetível, embora Michel se desculpe constantemente por não dominar a língua na oralidade.
Porque é que quis abrir esta livraria, especializada na literatura lusófona?
Desde o início que quis uma livraria lusófona, com Portugal, Brasil e toda a história dos viajantes portugueses e dos judeus no mundo. A lusofonia pode ser de todos os continentes e em muitas épocas da história. Foi o que me interessou mais a mim e aos franceses: a dimensão universal da cultura portuguesa.
O Michel tem alguma ligação familiar a Portugal?
Não, simplesmente fui nomeado como professor de Biologia no Liceu Francês [em Lisboa], em 1982. Descobri uma cidade ímpar e espantosa. Lisboa em 1982 era uma coisa incrível. E, depois, uma língua incompreensível mas magnífica. E uma literatura e poesia… Tornei-me muito rapidamente tradutor de Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e muitos autores. Foi o choque de Lisboa e de uma área completamente desconhecida. Fui muito feliz em Lisboa [risos]. De volta a França, continuei a manter uma ligação forte ao País e, naquele momento, havia um trabalho a fazer sobre a cultura portuguesa. Em 1982 só havia uns dez livros traduzidos sobre a história de Portugal, era pouquíssimo. Havia um trabalho enorme a fazer no domínio editorial, de tradução. E foi na altura em que Portugal entrou na CEE, houve muitos meios financeiros na cultura para desenvolver toda esta atividade.
Além da livraria, fez o tal trabalho editorial.
Sim, no início trabalhei com editores para produzir livros, de Eduardo Lourenço, por exemplo. E tentei convencer editoras a publicar “Os Maias”, do Eça de Queirós, e títulos sobre os Descobrimentos portugueses, mas com a recusa de alguns editores, fundei uma editora em 1992, com a Anne Lima, uma antiga aluna [franco-portuguesa] do liceu. E há 30 anos que ela dirige as edições. Fazemos livros de literatura, desde os clássicos a autores como o Valério Romão, a Dulce Maria Cardoso ou a Isabel Figueiredo. Temos dez livros traduzidos do Mia Couto. E na área da história, temos quase 70 livros — sobre a história e arte de Portugal. Em 30 anos são quase 200 publicações.
O vosso público é sobretudo francês? Pessoas interessadas em conhecer a cultura lusófona?
Sim, na editora, sim. Mas na livraria é muito complicado definir um público. Há portugueses, brasileiros, casais franco-portugueses que querem descobrir a cultura do outro, e também crianças educadas nas duas línguas que precisam de livros. E, claro, historiadores. É um público muito diversificado. E por isso é que acho que a livraria ainda consegue resistir mais alguns anos.
Tem sido um desafio, tendo em conta que é um nicho de mercado?
O problema é a Internet, plataformas como a Amazon deram a possibilidade de cada um comprar através do site dos editores, com preços em saldos, ou livros em segunda mão, etc. É complicado resistir. Mas também temos um site, que é uma montra para o mundo inteiro. Temos clientes espalhados pelo mundo.
Sente que tem uma missão de divulgar a cultura lusófona, e que tem sido cumprida?
Bom, há 35 anos que fazemos este trabalho, e temos o sucesso da longevidade. Mas não é uma missão, é um prazer. Isto é dar Portugal a conhecer, é só um prazer de conviver neste mundo aberto.
Quais são os seus autores lusófonos favoritos?
Pessoalmente, Eça de Queirós e Mia Couto. Mas estou sempre curioso. Gostei imenso dos livros do Valério Romão, de alguns do José Cardoso Pires. E também brasileiros como o Machado de Assis ou o Milton Hatoum. Não tenho fixação com nenhum autor, mas tive uma longa convivência com o Fernando Pessoa, traduzi-o durante alguns anos e continuo a publicar edições bilíngues. Sempre gostei muito da poesia portuguesa, traduzi muitos livros — estou sempre impressionado com a obra do Herberto Helder — e é um farol e ponto de referência na minha formação. Acabámos de fazer uma antologia bilíngue de duas mil páginas sobre poesia portuguesa, uma obra monumental do Max de Carvalho.
A vossa livraria aparece na série da Netflix “Emily em Paris”. Como é que isso foi para vós?
Foi muito bom, porque em cada dia de filmagens há uma pequena compensação que é muito agradável [risos]. E agora há muitas jovens raparigas que estão a aparecer para tirar selfies, mas não são potenciais leitoras.
Tem havido mais gente a aparecer, mas as vendas não têm subido por causa disso.
Sim, não têm subido. Mas gerou algumas reportagens jornalísticas que falam de “Emily em Paris” e da nossa livraria. Mas ainda não é um fenómeno como a Livraria Lello [no Porto] e o “Harry Potter” [risos].
Já tem 65 anos. Planeia continuar a fazer este trabalho?
Sim, não é um trabalho, é um prazer. Espero continuar até ao fim. Depende da minha saúde, claro, um dia ela não me vai permitir, mas quero continuar. Nunca tive a impressão de estar a trabalhar, é um prazer estar na livraria, receber pessoas e imaginar livros na edição.