Jennette McCurdy pode ser um nome desconhecido para a maioria dos portugueses, mas foi, em tempos, protagonista de uma das mais vistas séries juvenis dos Estados Unidos da América. Ao lado da estrela de “iCarly”, a jovem atriz tornou-se numa das caras da Nickelodeon. O percurso começara uma década antes, aos seis anos, quando fez a sua primeira audição. Na verdade, McCurdy nunca sonhara ser atriz.
A carreira foi precoce e acabaria por durar pouco tempo. Rapidamente desapareceu dos ecrãs e recolheu à sua vida privada. Os fãs esqueceram-se dela. Mas em 2022, McCurdy sentiu que estava pronta para contar o que tinha acontecido e foi assim que lançou a sua autobiografia com um título controverso: “Ainda Bem Que a Minha Mãe Morreu”.
A obra, que chegou a Portugal na passada terça-feira, 28 de fevereiro, tornou-se num sucesso. Vendeu mais de 800 mil cópias nos EUA e chega agora a 25 países. Nas páginas, a jovem atriz conta uma história recheada de pormenores sórdidos, de abusos, de pressão psicológica que por pouco não lhe arruinou a vida.
Teve que esperar mais de uma década para poder revelar o outro lado da sua vida como adolescente. “Havia uma parte da minha vida que era tão polida, tão brilhante, tão falsa. E depois havia a outra parte, tão dolorosa, real, crua. Uma parte que nunca ninguém viu”, confessou em entrevista ao “The Washington Post”.
O título do livro remete para o momento de libertação total, aquele em que a mãe morreu, tinha a atriz apenas 21 anos — hoje tem 30. Desde pequena que viveu subjugada à vontade da mãe, aos seus caprichos e vontades, ao ponto de se anular a si própria. Só anos mais tarde percebeu a dimensão desse domínio psicológico.
Cresceu numa pequena família mormon, sem grandes posses. Debra, a mãe, sonhava que a sua filha iria ser uma atriz famosa e fez tudo para que isso acontecesse. Do pai, pouco recorda, a não ser a sua fraca capacidade para se “ligar emocionalmente” às pessoas — e viria a descobrir, já depois da morte da mãe, que não era sequer o seu pai biológico.
As audições começaram cedo, logo aos seis anos. Quando não estava a conduzi-la aos castings, em casa Debra fazia de tudo para controlar todos os aspetos da vida da filha. Por fora, mascarava tudo como se mantivesse uma ligação especial com Jennette; dentro de portas, a intrusão roçava o abuso.
Era Debra quem dava banho a Jennette, pelo menos até completar 16 anos. Penteava-a, depilava-a e fazia exames de rotina aos seios e à vagina. Segundo a mãe, para despistar potenciais sinais de cancro.

“Ela fazia todos os esforços para manter a nossa relação privada. Agora percebo que ela me estava a condicionar, mas na altura pensava: ‘Oh, eu e a mamã temos uma relação tão especial’. É como quando tens uma melhor amiga com quem podes partilhar todos os segredos, forma-se uma intimidade. Era exatamente isso que a minha mãe fazia comigo, só que não era amizade, era abuso.”
O controlo foi ficando cada vez mais apertado. Debra começou a definir o que a filha podia ou não comer, a restringir o consumo calórico, ao ponto de a convencer a tornar-se anorética com apenas 11 anos. À sua volta, muitos iam percebendo a perda de peso, mas ninguém ousava falar. Quem falava era imediatamente afastado.
“Se alguém tentasse intervir, a minha mãe afastava-os por completo. Se o meu instrutor de dança continuasse a tocar no assunto, ela ter-me-ia tirado da dança. Se alguém na igreja falasse sobre isso, simplesmente não voltávamos lá. Ela não admitia ser desafiada”, recorda a atriz.
O estado mental de Jennette começou a deteriorar-se. Não gostava de si própria, sentia-se insegura, presa numa vida que não queria. Depois veio a bulimia, a depressão. O papel que interpretava em “iCarly” não ajudava: Jennette era Sam, uma miúda bem-disposta e sempre de mãos cheias de petiscos.
“É tragicamente cómico. O facto de a minha personagem estar constantemente a comer deixava-me super ansiosa. Cheguei a tentar falar com os produtores sobre isso, mas só lhes conseguia dar desculpas do género: ‘Acho que a Sam, como personagem, pode ter mais camadas.’ Não era capaz de falar dos meus problemas com a comida.”
Nas poucas ocasiões em que conseguia escapar ao controlo da mãe, o fantasma pairava sempre sobre si. Chegou a fazer umas férias com o namorado e quando a mãe viu as suas imagens na imprensa, bombardeou Jennette com emails insultuosos: “sua pêga”; “monstro horroroso”. Chegou mesmo a tentar sabotar a relação da filha com os fãs.
Sentia-se gozada por tudo e por todos. As inseguranças aumentaram, os traumas também. E a acrescer à violência psicológica protagonizada pela mãe, entrou em cena Dan Schneider, o criador das duas séries de Jennette na Nickelodeon, que caracteriza como um chefe “controlador, assustador e rabugento”. “Num dia elogiava-me, no outro dia arrasava-me com insultos”, conta.

Quando “iCarly” acabou, foi convidada para uma nova série também gerida por Schneider. Foi-lhe oferecido o papel principal, que depois se diluiu num co-protagonismo com Ariana Grande. A produção correu mal e foi cancelada ao fim de 36 episódios. A Nickelodeon terá oferecido um pagamento de mais de 300 mil euros como “agradecimento”. “Pareceu-me que estavam a tentar comprar o meu silêncio”, conta. Recusou.
Durante todo esse tempo, Jennette procurou os habituais escapes para a “raiva e frustração”: sexo e álcool. “Não admira que algumas pessoas se passem. Que rapem a cabeça, façam tatuagens na cara e comecem a mijar em baldes. Não admita que haja tanta gente com problemas de saúde mental e com crises em público”, conta. “Estou muito grata por isso não ter acontecido comigo. As minhas crises aconteceram todas em privado.”
O cancro que atormentou Debra anos antes voltou e, em 2013, não resistiu à doença. A morte foi o momento de lucidez de Jennette. “Foi quando percebi quão perigosos eram os meus hábitos de autodestruição.”
A terapia foi o passo seguinte. O apoio ajudou-a a perceber o que lhe tinha acontecido. “Foi aí que percebi e consegui aceitar que a minha mãe era uma abusadora. Mas, ainda assim, continuava a ser a mesma pessoa que era quando a minha mãe era viva. Foi um processo muito lento, doloroso de muitas e diversas formas”, conta. “Abraçar a realidade da minha vida não foi simples, não foi indolor.”