Ele percebeu que a sua vida não era normal quando começou a conviver com os outros miúdos na escola. Quando tinha sete anos o pai revelou-lhe que era um bandido, aos oito mostrou-lhe todas as drogas que existiam e pediu-lhe para lhe dizer se algum dia tivesse vontade de experimentar. Apesar de tudo isto, só anos mais tarde é que Juan Pablo Escobar entendeu a verdadeira dimensão dos crimes do pai e conheceu as histórias das pessoas que ele mandou matar.
Algumas das mais marcantes estão em “Pablo Escobar — O Que o Meu Pai Nunca Me Contou” (editado pela Planeta e nas lojas desde 3 de maio). Conheceu filhos que ficaram órfãos como ele por culpa do mais conhecido traficante de droga do mundo, falou com as últimas pessoas que esconderam Pablo Escobar e descobriu que, nos dias antes de ser morto pela polícia (a 2 de dezembro de 1993, em Medellín, Colômbia), o pai era um homem derrotado e perdido.
“O telefone é a morte”, tinha dito várias vezes a Juan Pablo, mas foi exatamente assim, através de uma chamada para a família, que Pablo Escobar foi apanhado. Quando soube da morte, o filho, que na altura tinha 16 anos, jurou vingar-se do governo e do país mas percebeu rapidamente que esse não seria o caminho.
Viveu com a mãe e a irmã em Moçambique, depois viajaram para a Argentina, onde ficaram exilados e onde ainda hoje trabalha como arquiteto. Aí foi preciso aprender coisas básicas, como andar de transportes públicos, e até lhe negaram a abertura de uma conta no banco.
Decidiram mudar de nome e Sebastián Marroquín foi escolhido numa lista telefónica. Era assim que era conhecido até fazer um documentário em 2009 (“Sins of My Father”) e decidir usar a sua identidade verdadeira em 2014 para escrever o primeiro livro, “Pablo Escobar: O Meu Pai”.
Juan Pablo Escobar está em Portugal para o lançamento da segunda obra, “Pablo Escobar — O Que o Meu Pai Nunca Me Contou”, e a NiT falou com ele. Leia a entrevista.
Para este livro conheceu inúmeras pessoas que se cruzaram com o seu pai. Qual foi a história que mais lhe custou descobrir?
Acho que foi a história de Ramón Isaza, o paramilitar. Eu sabia que ele tinha sofrido uma grande violência do meu pai, mataram-lhe sobrinhos e o filho por causa do meu pai. Era um homem que tinha tido muito poder e, se aquela reunião [Pacto de Ralito, um acordo de paz entre vários grupos colombianos] não tivesse acabado bem, eu podia nem estar aqui a falar consigo.
Também foi duro para si descobrir o estado psicológico em que o seu pai estava nas últimas horas antes de morrer. A tia que o ajudou a esconder-se descreveu como ele estava a enlouquecer.
Foi difícil entender e aceitar.
Antes de saber que ele se sentia tão sozinho e desorientado, como é que imaginava que ele tinha vivido esses momentos?
Nunca pensei que ele estivesse tão desesperado antes de morrer.
O último contacto que teve com o seu pai foi no dia em que ele morreu, ao telefone. Lembra-se exatamente do que ele lhe disse?
Ahorita te amo (amo-te). Foi a última coisa que ele me disse.
Alguma vez teve propostas para entrar nesse mundo, o da droga?
Não. Mas não tem a ver com o que te propõem, mas sim com o que tu decides fazer com a tua vida. Em 23 anos, todos os dias escolho não ir por aí.
Tirando aquele momento…
Em que ameacei o país? Foi só nesses dez minutos [logo depois do pai morrer disse que se vingaria de todos], disse de imediato que não o faria. Estou a cumprir a segunda promessa, não a primeira.
Diz que só estiveram num tiroteio com o seu pai mas não como é mostrado na série “Narcos”.
“Narcos” é uma extrapolação e uma glorificação agregada a esta história que ela nunca teve.
E do tal tiroteio em específico, que memórias tem?
São coisas que só depois agradeces teres sobrevivido. Naquele momento, quando estás em situações extremas, não te dás conta de quão frágil é a vida. Isso pode mudar a forma de ver a vida, desfrutar dela e entendê-la.
“A morte para nós não era tabu, todos os dias morria alguém da nossa família”
Esse foi um dos traumas da sua vida?
Para traumas tenho uma coleção de histórias. Mas não quero acreditar em traumas.
Mas como é que se ultrapassam coisas dessas? Fez terapia?
Nunca fui ao psicólogo.
Porquê?
Para não enlouquecer.
Em algum momento teve medo de se transformar no seu pai?
Não, porque não quero deixar ao meu filho o mesmo legado que eu herdei.
Ele tem quatro anos. Vai contar-lhe as coisas de forma faseada?
Sim, é fundamental que mais cedo do que tarde ele saiba tudo. Ele sabe quem é o avô, reconhece a imagem dele. Se o vê na televisão, dá um beijo ao ecrã. Não entende o que é o tráfico de droga nem eu pretendo explicar-lhe o que é para já, mas acho que não vai demorar muito, a julgar pelas perguntas que ele me faz.
O que lhe pergunta?
O que é a morte? Qual é a origem dos nossos tempos?
Ele é tão pequeno.
E essa pergunta da morte nem sequer ma fez aos quatro anos, foi aos dois anos e meio. Posso dizer que fico surpreendido com o que me pergunta, parece que estou a falar com um velho.
Houve uma fase em que não queria ter filhos, certo?
Parecia-me uma grande irresponsabilidade trazer um filho a este mundo para ser perseguido pelos pecados do avô dele. Achava que era dar-lhe uma vida que ninguém merecia viver.
Que idade tinha quando percebeu que a sua vida não era normal?
Desde muito cedo comecei a perceber as diferenças entre nós e os outros.
Houve um momento específico?
Não propriamente. Eu cresci nessa bolha, rodeado de luxos, de excentricidades, de excessos. Aparentemente para mim era normal porque não conhecia outra coisa. Começas a perceber que há diferenças quando vais para a escola e vês em que carros é que vão buscar os teus colegas e em que carros te vão buscar a ti.
Alguma vez o seu pai lhe contou diretamente o que fazia?
Aos sete anos. Ele disse-me: “Sou um bandido e é a isso que me dedico.” Eu entendi.
E tinha oito anos quando ele lhe apresentou as drogas. Como foi isso?
Foi na Hacienda Nápoles, ao lado da piscina. Pegou nas que havia disponíveis — cocaína, marijuana, crack, heroína, não havia muitas mais. Pô-las em cima da mesa e a mesa era pequena. Se eu tiver a mesma conversa com o meu filho, vou precisar de uma mesa muito maior para explicar tudo o que há hoje, e acho que nem as conheço a todas.
Tinha noção de que um dia ele ia acabar morto?
A morte para nós não era tabu, todos os dias morria alguém da nossa família ou amigos. Estávamos muito conscientes, não éramos uma família normal. A morte fazia parte do quotidiano.
Quando uma pessoa se chama Escobar, que obstáculos encontra na vida do dia a dia. Consegue um trabalho, consegue comprar uma casa?
Não consegues ter nada disso e até te negam uma conta bancária. Ver um banco negar-te esse direito e em vez disso convidar-te para te desviares para algo de que não queres fazer parte. Se eu quero ter uma conta no banco com o meu nome é porque quero fazer as coisas bem, não é porque sou um idiota que quer uma conta para lavar dinheiro. Idiota é o tipo do banco que pensa que eu sou tão tonto para fazer uma coisa assim. Isso é uma espécie de violência, é um convite a fazermos parte de um setor ilícito. Ter uma conta num banco não é difícil e ter uma conta secreta é mais fácil do que as pessoas pensam. Os corruptos atuam mais rápido do que a instituição.
É verdade que escolheu o seu nome atual, Sebastián Marroquín, na lista telefónica?
Deram-me dez minutos para escolher, não tive tempo para pensar. Se lhe desse esse tempo para escolher um nome para o resto da sua vida, qual seria? Não é fácil. E disseram-nos que, para nossa segurança, esse nome não devia ter conotações mafiosas. Chegámos até à letra M para encontrar um apelido que, mais ou menos, não estivesse relacionado com a máfia.
“Tenho de viver a vida em paz, é essa a minha opção, se não dava um tiro a mim próprio”
Depois da morte do seu pai, como foi a vida com a sua mãe e a irmã? Conseguiram fazer as pazes com tudo o que aconteceu, perdoar-lhe?
Nós não sentimos que temos de perdoá-lo, porque o amamos. Essa é a diferença. Não temos uma relação de ódio com ele, é puro e exclusivo amor, não há outra coisa. Não é que não vejamos o mal que ele fez, e fomos críticos até quando ele era vivo, mas tivemos uma relação de amor. É verdade que era contraditório com o que se passava lá fora mas lá dentro não havia outra coisa.
A sua mãe conseguiu refazer a vida dela?
Acho que conseguiu, pelo menos, estar tranquila.
Vocês falam ou falavam muito destas coisas?
De tudo. Se há algo que não existe na minha família são tabus.
Parece uma pessoa muito bem resolvida. Qualquer pessoa que tivesse passado por isto…
Levaria a vida a chorar, não é? Ou suicidar-se-ia. Tenho de viver a vida em paz, é essa a minha opção, se não dava um tiro a mim próprio. Tenho mais razões para viver do que para sacrificar a vida.
No livro diz que há jovens que sonham tornar-se narcotraficantes por causa das séries e recebe mensagens sobre isso.
Não dá para a acreditar, pois não? Vou mostrar-lhe a última que recebi. [Tira o telemóvel do bolso e mostra uma fotografia das costas completamente tatuadas de um homem. De um lado está a cara de Pablo Escobar e a seguir uma imagem de Wagner Moura na série “Narcos”].
Enviam-lhe isso e dizem-lhe o quê?
Exibem isto com orgulho, dizem que querem ser traficantes. Isto tudo graças à Netflix.
Tentou colaborar com a Netflix quando soube que iam fazer “Narcos”, não foi?
Sim, mas a Netflix saiu a correr. Eles acham que sabem mais de Pablo Escobar do que a mulher dele e os filhos.
Preferem ficcionar a história?
Isto não é ficção, é uma história com um teor político para marcar certos eixos da história que não aconteceram e para encobrir a corrupção dos Estados Unidos no negócio da droga. Viu a série? As duas temporadas?
Sim.
Em algum episódio ouviu o nome Barry Seal?
Que me recorde, não.
Esqueceram-se de contar a história do seu próprio Pablo Escobar, o homem da CIA. Que estranho que justamente os Estados Unidos se esqueceram de Barry Seal [piloto, traficante e informador da DEA]. Se procurarmos, descobrimos os nomes dos cartéis de droga do México, mas nunca ouvimos falar dos de Miami, Nova Iorque, Chicago. Não sou anti-Estados Unidos mas acho que tenho uma visão mais honesta do mundo.
Até agora não lhe deram o visa para entrar nos Estados Unidos. Acha que isso algum dia vai acontecer?
Depois deste livro é garantido que nunca. Talvez na próxima vida.
Na sua cabeça tem conversas com o seu pai? O que lhe diria hoje?
Nós falávamos muito, não é algo que tenha ficado pendente. Sempre lhe disse o que pensava e ele ouvia. Depois fazia o que lhe apetecia mas ouvia-me.
O que é que ele lhe dizia que desejava para si? Que fosse médico, político?
Se eu fosse médico, dar-me-ia o melhor hospital. Se fosse cabeleireiro, dar-me-ia o melhor salão. Era isso que me dizia. Sempre me educou com amor. Nunca quis que seguisse os seus passos. Nunca.