Agosto de 2008, Kalaf Epalanga está num autocarro que liga Gotemburgo (Suécia) a Oslo (Noruega). Lá vai atuar num festival mas não tem passaporte válido e acaba detido por tentativa de imigração ilegal. O interrogatório que se segue é o ponto de partida para “Também os Brancos Sabem Dançar”, o romance de estreia do músico dos Buraka Som Sistema, editado pela Caminho e à venda desde 21 de novembro.
A apresentação acontece esta quarta-feira, 6 de dezembro, no Teatro São Luiz, em Lisboa, às 18h30, mas o autor ainda quase não teve tempo de olhar para o livro. Acaba de aterrar, vindo de umas férias em Moçambique, quando passa pela redação da NiT para ler um excerto. Tem daqueles sorrisos contagiantes e a forma como fala é melodiosa. Talvez por isso faça todo o sentido que este seja um romance musical, não apenas porque conta as origens do kuduro com Kalaf como personagem principal no centro da história, mas também porque a escrita é simples mas harmoniosa e ainda por cima tem sentido de humor.
Escrever sempre foi o que ele quis realmente fazer, tanto quando trocou Angola por Portugal para estudar Gestão, como quando largou esse plano estável para fazer biscates que lhe permitissem entrar no meio a que pretendia pertencer. Na altura até achou que fosse a música mas garante que não tinha talento para cantar. Os fãs de Buraka Som Sistema serão os primeiros a discordar mas será possível um regresso da banda? “Só daqui a 20 anos”, garante.
Até lá, o plano é passar histórias para o papel e até já tem as ideias para os próximos cinco romances. Vive a maioria do tempo em Berlim, na Alemanha, onde consegue realmente concentrar-se mas quer passar a próxima primavera por Portugal para não sujeitar o filho de um ano a um inverno demasiado longo.
Leia a entrevista a Kalaf Epalanga e veja o vídeo com um excerto de “Também os Brancos Sabem Dançar” lido pelo próprio.
Porque é que o livro é um romance musical e não um romance ou até biografia?
Não chega a ser uma biografia e eu queria chamar-lhe só romance, para ser levado a sério [risos]. Quando o meu editor no Brasil leu, sentiu que a música estava tão presente que acabava por ser uma personagem. Para chamar a atenção para isso, achou que podíamos chamar-lhe romance musical. Eu disse ao meu editor cá em Portugal e ficou assim.
O excerto que leu foi uma experiência verídica e muito séria. Qual é a parte inventada do livro?
O livro está cheio de momentos sérios, até demasiados para um romance se calhar. Tem esse momento real mas tem referências a discos, pessoas, lugares e até houve imensa coisa que tive de deixar de fora. Eu vivi um pouco daquela explosão do Alcântara-Mar e acho muito interessante esse período, com o DJ Vibe também .
Quando veio para Portugal, aos 17 anos, foi para Almada mas depois mudou-se para Lisboa. A sua família disse-lhe que, se não queria estudar Gestão, tinha de se desenrascar. Mudou-se para uma zona que não é propriamente barata, Bairro Alto e depois Avenida da Liberdade. Como é que pagava as contas?
Fiz de tudo um pouco. Distribuí pizzas, fiz sushi num bar de teriyaki no Saldanha. O que foi interessante, e falo no livro desse período de 1999, é que encontrei uma figura mítica da noite de Lisboa que é o DJ Johnny — das pessoas mais caóticas que eu conheço mas também das mais talentosos — e ele mostrou-me como era possível. Não no sentido “é assim que se faz” mas a maneira dele estar na música e na vida mostrou-me que realmente é possível, desde que tenhamos um bocadinho de responsabilidade. Em Lisboa, o pagamento médio de um DJ são 70€. Com esse valor, precisas mais ou menos de quatro gigs para pagar um quarto. Eu não era DJ mas era MC, fazia beats, fazendo dois por semana era possível.
Teve logo a noção que as coisas aconteceriam devagar?
Claro, mas sabia que tinha de estar próximo daquilo que aspiro fazer. Queria fazer música nessa altura, então tinha de estar perto. Por exemplo, quando me convidaram para escrever crónicas para o “Público”, senti que estava próximo daquilo que queria fazer em termos de escrita. Pensei: “Ok, leve o tempo que levar, o facto de estar aqui a escrever todas as semanas uma página e meia, vai levar-me a algum lugar.” Recoloquei-me no caminho da escrita, dos livros e, depois, o tempo trouxe-me um editor. Leu as crónicas e propôs-me publicá-las, depois veio o romance. Às vezes perguntam-me que conselhos daria a um jovem músico, a um artista, e é basicamente: “Se tiveres de ir limpar pincéis de um pintor consagrado, vai, porque isso vai colocar-te mais perto daquilo que queres fazer.”
Todas essas histórias já davam para fazer uma biografia.
Totalmente, mas sinto que ainda não tenho idade e usei-me como personagem. Tenho três irmãos mas no livro sou filho único, caso-me para ter nacionalidade portuguesa e isso não é verdade. Fui abrindo a história e criando uma data de situações.
Fui parar à música sem querer, não tenho talento nenhum para cantar.
As pessoas podem fazer essa confusão então, entre o que é ficção e realidade?
Sim, mas achei interessante essa possibilidade. É curioso porque, por exemplo, acabei de chegar de Moçambique e cruzei-me lá com uma conterrânea angolana que ligou para a filha a dizer: “Encontrei outro angolano, o Kalaf.” A filha virou-se para ela e disse: “O Kalaf, angolano? Ele é da Amadora.” Eu nunca vivi na Amadora, vivo na Baixa de Lisboa. Acho esses equívocos engraçados e é interessante explorá-los na ficção. Por isso é que também não poderia ser eu a escrever a minha biografia.
Porque é difícil escrever sobre si próprio?
Não só sobre mim. Neste livro tive imenso pudor porque estou a citar nomes que existem, os meus colegas de Buraka [Som Sistema], amigos. O que seria que iam pensar ou dizer de se verem ali expostos.
A situação que dá início ao livro aconteceu em 2008. Só agora é que decidiu escrever sobre isso ou já tinha a história guardada na gaveta há algum tempo?
Não tinha. Para mim era só um episódio que ia contar aos meus filhos, nem queria tornar público porque foi realmente traumatizante. Até há três anos ainda era cidadão estrangeiro e pensava sempre que, se contasse que tinha sido preso na Noruega, não me iam dar cidadania portuguesa. Tinha esse receio, não queria manchar a minha ficha. Quando pedimos vistos para Inglaterra ou para os Estados Unidos, eles levam muito a sério esse tipo de questão. Já depois disso, estava a fazer uma tournée com os Buraka nos Estados Unidos e não conseguimos ter os vistos de performer a tempo. Decidimos ir com visto de turista e fizemos um plano todo elaborado: quando chegámos, cada um foi para um guichet, e achámos que ninguém ia perceber que estávamos a viajar juntos. Sistematicamente, um atrás do outro, fomos sendo levados para uma salinha. Fomo-nos encontrando na sala austera e difícil de digerir. Decidimos dizer a verdade, que estávamos a fazer promoção, que não era remunerada. Eles disseram logo: “Se por acaso nós virmos que vocês tocaram na sala X e soubermos que receberam dinheiro, vão ser banidos dos Estados Unidos durante dez anos.”
Como é que acabou a história?
Depois deixaram-nos ir mas disseram que iam monitorizar as nossas páginas de Facebook. Eles não brincam.
Então quem é que o desafiou a contar o episódio da Noruega?
Há uns dois anos participei numa mesa com o escritor José Eduardo Agualusa no Rio de Janeiro e ele estava a fazer perguntas sobre kuduro e as origens porque percebemos que a plateia não sabia nada sobre a música urbana em Lisboa ou em Angola. Isso levou-me a ter um discurso super didático, quase como se estivesse a explicar a um miúdo. Depois o Agualusa disse-me que eu devia escrever a biografia do kuduro e eu sou fã desse tipo de livros. Imaginei que seria uma tarefa super difícil, tinha de ir para Angola, começar a entrevistar uma data de gente. Sou angolano e sei o quão difícil é perseguir personagens que não querem ser encontradas. Então desisti praticamente, até porque estava a escrever outro livro na altura, mas obviamente que quando o Agualusa te desafia, tens de dar resposta. Então pensei que, se contasse a história do kuduro, ia contar pelo meu ponto de vista, como a pessoa que está a ser exposta a esse tipo de coisas. Aí precisava de um episódio para lançar a história e nada melhor do que ser preso na Noruega por causa de um concerto.
Agora vive entre Lisboa e Berlim. O que faz em Berlim?
Escrevo [risos].
Passa lá temporadas de meses, semanas?
Normalmente meses. Essa escolha foi feita há nove anos. Eu tinha Lisboa como o lugar da música, a banda estava fixa aqui, os ensaios eram aqui, mas precisava de uma cidade onde pudesse sair da minha zona de conforto. Lá o telefone não vai tocar para eu ir tomar um café ao Chiado, ninguém me vai chamar para ir ao Lux porque está lá o DJ X ou Y.
Passa lá a maior parte do tempo agora?
Já estou a planear o próximo livro e tenho um guião para escrever, uma peça de teatro. Tentei escrever nas férias e não consegui. É a prova de que só consigo escrever em Berlim, estranhamente. Um dia pode mudar mas, para já, é assim.
O próximo livro que vai escrever também é um romance?
Sim, já tenho ideias para os próximos cinco romances alinhavadas. A verdade é que fui parar à música quase sem querer, não tenho talento nenhum para cantar.

No início dos Buraka Som Sistema esteve ali num limbo sem saber se devia ou não fazer parte da banda, não foi?
Eu não tinha talento para estar ali, achava sempre que alguém melhor podia ocupar o meu lugar. Nunca achei que tinha nascido para a música, que era o meu chamamento, o meu chamamento foi para escrever. Queria ter a possibilidade de pegar numa folha e por algumas ideias ali. Acontece que ninguém queria cantar as minhas canções e eu comecei a fazer música por isso. Agora voltei ao caminho inicial.
E como está o capítulo Buraka Som Sistema? Há um capítulo a seguir?
Não [risos]. Não, não, talvez daqui a 20 anos. Toda a história da música popular é feita de reuniões. Tenho a certeza de que, se o John Lennon e o George Harrison estivessem vivos, os Beatles iam voltar. Mas também gosto da ideia de não ter pressa. Todos os outros membros de Buraka precisam de fazer outras coisas, é estimulante.