Apresenta-se como M. G. Ferrey, mas os leitores não conhecem o seu nome verdadeiro. Não esconde a cara nem a sua história, mas é uma forma de manter uma persona pública distinta da sua vida privada — e, claro, de deixar algum mistério em torno do seu trabalho.
Há nove meses, a autora portuguesa que vive em Braga publicou o seu primeiro trabalho, “Aquorea — Inspira”. A estreia de uma saga de fantasia que se foca numa cidade submersa, e tecnologicamente avançada, que é descoberta pela protagonista Arabela Rosialt.
O fenómeno foi-se construindo de forma orgânica e rápida. A comunidade digital no Instagram de pessoas interessadas em livros — conhecida por “bookstagram” — foi fundamental para o empurrão inicial. Depois, seguiram-se as apresentações ao vivo.
Em setembro do ano passado, na Feira do Livro de Lisboa, deu autógrafos a centenas e centenas de pessoas, sobretudo adolescentes e jovens adultos. O livro, publicado pela Penguin, vai a caminho da quarta edição em menos de um ano. Custa 19,45€.
A 18 de abril, chegou o segundo livro da saga, “Shore Desvendado”, que reconta a história original da perspetiva de Kai, o protagonista masculino, que Arabela conhece no mundo Aquorea. Ainda não tinha chegado às lojas e já estava na segunda edição, tal foi o sucesso das pré-vendas. Este sábado, 30 de abril, na loja Fnac do NorteShopping, em Matosinhos, apareceram mais de 250 leitores — vários tiveram de ficar à porta da sessão de apresentação.
M. G. Ferrey está neste momento a escrever a continuação da história — sendo que provavelmente haverá um terceiro capítulo da narrativa principal. Leia a entrevista da NiT com a autora portuguesa, que conta que todo o universo de “Aquorea” nasceu durante uma ida à Praia da Galé, no Algarve, com a mãe.
Desde muito cedo que sentia vontade de criar e escrever histórias. Como é que esse desejo surgiu?
Sempre gostei muito de ler e sempre fui incentivada a fazê-lo pelos meus pais. A minha mãe sempre gostou muito de ficção — romances, policiais, etc.. Lembro-me de ser pequenina e ela lia-me histórias, a mim e ao meu irmão, para adormecermos. A partir dos 10, 11 ou 12 anos, comecei a pegar nos livros dela — que eram mais adultos — como os da Agatha Christie ou Nora Roberts. E foi aí que comecei, de facto, a apaixonar-me pela leitura. E uma coisa levou à outra. Comecei a escrever um diário — quase todas as meninas têm um, e lembro-me de escrever muito no dia a dia.
Com que idade?
Comecei muito nova, a partir dos nove ou 10 anos. Escrevia coisas super banais: hoje comi isto e não gostei. Depois, quando já era adolescente: hoje o Serginho disse-me olá e fiquei super feliz, coisas do género [risos]. Eram as minhas histórias, aquilo que tinha para partilhar comigo mesma. Entretanto, comecei a escrever alguns contos, mas nunca pensei sequer publicá-los ou partilhá-los com alguém. Alguns ainda os tenho, mas outros ficaram perdidos em computadores. Esta história de “Aquorea” foi algo que me surgiu quando estava a passear com a minha mãe na praia e íamos a falar. Costumamos divagar muito em histórias, por vezes, meio rocambolescas. “Já viste se agora déssemos aqui um mergulho e encontrássemos uma cidade debaixo do mar?” E ela: “Olha, vais escrever sobre isso”. E a partir daí a narrativa foi ganhando vida na minha cabeça, mas para a passar para o papel demorei dez anos. Nunca deixei de pensar na história, as próprias personagens foram ganhando vida, a cidade e a comunidade em si, foram sempre falando comigo até estar pronta para escrever.
Depois dessa conversa com a sua mãe, o que a fascinou nessa sociedade alternativa debaixo de água?
Sempre fui muito ligada à praia e ao mar. Desde que me lembro que tenho um fascínio por água, de forma geral, e sobretudo pelo mar. Nunca tinha pensado nisto, mas noutro dia estava em Coimbra numa apresentação e uma menina perguntou-me: qual é o teu filme preferido da Disney? E, sem hesitar, disse: “A Pequena Sereia”. Nunca tinha feito esta relação. Apesar de Aquorea ser uma cidade como a nossa, só que milhares de metros abaixo do nível do mar — tem ar, rios, florestas, cristais que dão luz — imediatamente depois de ter dado a resposta pensei que nunca tinha feito essa associação. Talvez venha daí este fascínio. Penso que tem mesmo a ver com o mistério sobre o existe nos oceanos. É a parte mais desconhecida do nosso planeta.
Fez pesquisa sobre os oceanos, ao longo dos anos em que esteve a pensar sobre a história, para criar esta saga? Ou procurou estímulos que a ajudassem a entrar nesse mundo?
Não… Quando tive aquela conversa com a minha mãe, cheguei a casa e assentei logo essa ideia. Depois não peguei na história durante muitos anos. O meu marido ficou doente, com cancro, o que levou a que deixasse isso noutro plano. Sentia que estava a desenvolver a ideia na minha cabeça, mas só quando a vida estabilizou, quando meu marido ficou melhor, percebi: tenho de fazer isto. As minhas prioridades mudaram completamente quando soubemos que o meu marido estava com cancro. Era muito focada no trabalho e isso mudou. A minha prioridade passou a ser acompanhá-lo e vê-lo bem. Quando nos disseram que estava tudo OK, pensei: está na hora de fazer aquilo de que gosto, de realmente concretizar o meu sonho. Aí, sim, nessa fase comecei a fazer muita pesquisa. Não na fase inicial, porque aí só escrevi e escrevi. Depois, para melhorar e deixar as coisas com sentido e nexo — porque é fantasia, há muita coisa inventada, mas existem partes que são, de facto, reais e científicas. Tentei aproveitar várias dessas coisas para dar impacto e realismo ao livro.
Quando o seu marido melhorou e decidiu escrever este livro, foi também quando fez uma pós-graduação em Jornalismo?
Isso foi antes, durante os tais 10 anos depois de já ter tido a ideia de o escrever. Depois a vida foi acontecendo, mas ainda bem que fiz esse curso e também os de escrita criativa. Foram, realmente, uma base muito boa. E continuo a aprender. Não gosto de estudar, mas gosto muito de aprender [risos]. Sempre fui assim.
Fez essa pós-graduação porque já tinha o intuito de escrever histórias?
Era mesmo com o intuito de melhorar a minha escrita, de escrever histórias. Não esta história em específico porque penso que naquela altura ainda não me tinha lembrado dela. O bichinho foi crescendo ao longo dos anos.
Trabalhou como psicóloga. Continua nessa área, a par da escrita?
Não, já não estou nessa área há dez anos. Trabalhei 12 anos como psicóloga, focada na enurese noturna — que é, basicamente, fazer chichi na cama — e era um trabalho muito intensivo porque era a única especialista em tratamento de enurese. Dava consultas, literalmente, de manhã à noite. Começava às oito da manhã e, às vezes, acabava à meia-noite. Cansei-me de estar o dia todo no consultório, todos os dias — não tinha vida. Depois, sempre gostei muito de tudo aquilo que é ligado à moda, à estética e, na altura, a minha cunhada estava a tirar um curso de esteticista. Fui a Milão, a uma feira de cosmética, e comprei uma máquina para ela fazer os tratamentos. Paguei a máquina lá, passados três meses ainda não tinha chegado. Entretanto chegou, mas ficou parada — um ano ou mais porque a minha cunhada resolveu não seguir por essa área. Pus a máquina à venda no OLX e vendia-a no dia seguinte. Pensei que era algo que tinha pernas para andar: mandei vir outra, depois outra, e assim sucessivamente. E tive de abrir uma empresa de venda de equipamentos de estética, que é o que faço hoje [risos].
Completamente por acaso.
Sim, acho que as coisas vão acontecendo na minha vida sem forçar nada. Sou muito tranquila e as coisas vão aparecendo.
Trabalhar em psicologia não a realizava?
Continuo a adorar psicologia, é uma área que ainda me fascina e uso-a todos os dias. Até porque é impossível: uma vez psicóloga, sempre psicóloga, não há outra hipótese. Avaliamos comportamentos, está sempre a acontecer. Mesmo na minha escrita tento usar isso a meu favor. Uma das coisas que me dizem muito é: adoro as personagens. São todos diferentes, têm características muito díspares. Isso devo à psicologia, porque consigo fazer com que cada personagem tenha uma voz muito própria, uma personalidade distinta. É uma coisa que continuo a adorar e pode ser até que um dia regresse às consultas, não fecho essa porta de todo. Neste momento adorava conseguir escrever mais.
Além da relação que tem com o mar, existiram coisas específicas que a tenham inspirado a criar este universo?
Coisas específicas não. Além de “Viagem ao Centro da Terra”, o livro do Júlio Verne, de que gosto imenso e volta e meia leio, não houve assim nada… Queria um mundo diferente, e assim que tive a ideia da cidade submersa as coisas começaram a aparecer naturalmente. Queria que fosse uma cidade submersa sem que eles fossem atrasados tecnologicamente. Queria juntar fantasia com um pouco de ficção científica, porque eles são muito desenvolvidos, talvez até mais do que nós, em muitas coisas. Queria criar uma comunidade completamente distinta da nossa, com pessoas diferentes, que seja também um retrato e uma forma de chamar à atenção em relação àquilo que fazemos na superfície, as muitas coisas erradas que estamos a fazer ao nosso planeta.
Existe uma consciência ambiental.
Sim, talvez tenha aparecido de forma inconsciente. E, depois, quando li o primeiro rascunho, comecei a aperceber-me de determinadas coisas. E pensei: vou explorar melhor esta área, porque faz sentido. Mas queria criar algo que nunca ninguém tivesse escrito. Depois de escrever o primeiro rascunho é que fui pesquisar para saber se havia alguma coisa parecida.
Porque não se queria deixar influenciar.
Exatamente, e havia outra coisa: nunca tinha lido fantasia [risos]. Sempre li muitos romances. Já tinha visto vários filmes e séries, claro, mas nunca tinha mesmo lido até terminar de escrever “Aquorea”. Depois, quando terminei e fui procurar quem me ajudasse… são as chamadas beta readers [leitores que têm acesso antecipado a um rascunho de um livro para poderem dar sugestões antes da publicação]. Tinha criado uma página no Instagram e normalmente encontramos pessoas com gostos semelhantes, pessoas que leem, o chamado universo bookstagram. E uma menina com a qual falava bastante, que lia muita fantasia. Achava aquilo delicioso porque lia as opiniões dela e achava fascinante. Mandei-lhe mensagem, disse que tinha terminado de escrever um manuscrito de fantasia, perguntei-lhe se ela alinhava, ela disse logo que sim. Foi espetacular e continuou a ser minha beta reader e amiga. Deu-me sugestões muito válidas e importantes. E obrigou-me a ler fantasia pela primeira vez, é a ela que devo o facto de também me ter apaixonado por fantasia enquanto leitora.
Escreveu o livro e depois enviou-o para várias editoras, para tentar que fosse publicado. Como foi esse processo?
Felizmente não foi muito longo, tive essa sorte. Quando terminei o primeiro rascunho, comecei logo a pensar: quero publicar no estrangeiro. Que ridículo [risos]. Se já em Portugal é difícil… Quem não está dentro do mercado está completamente a leste. A minha ideia era essa, achava que teria mais impacto e potencial lá fora. E se calhar continuo a achar, sinceramente.
É uma história com características universais.
É isso. E cheguei a contratar uma tradutora que traduziu alguns capítulos. E comecei a enviar lá para fora — mas numa fase ainda muito inicial. Depois apercebi-me realmente de que não ia conseguir. E comecei a enviar para editoras portuguesas. Foi um processo de cinco ou seis meses, o que não foi muito tempo, comparado com algumas pessoas. Tive alguns “nãos”, algumas respostas nunca chegaram, e tive dois “sim” antes de ter o “sim” da Penguin. Um deles não me interessou de todo, e o outro interessou-me mas só publicavam daqui a dois anos. Mas a minha editora de eleição foi sempre a Penguin. E nunca enviei para lá o manuscrito, com medo. Porque pensei: o “não” deles seria determinante. Se me dissessem que não, acho que desistia mesmo. Quando enviei, passados dois dias tinha o “sim” e uma semana depois tinha o contrato assinado. Foi mesmo muito rápido. Acredito muito no nosso trabalho, sem dúvida, mas acho que também é preciso ter sorte. E naqueles seis meses em que andei a enviar para as editoras, estava a pensar em auto-publicar. “Vou começar a tratar de tudo: se ninguém me responder vou auto-publicar.” Tratei da capa — que foi a que ficou —, dos book trailers, já estava a adiantar serviço. Queria mesmo que o livro fosse lido.
Já tinha decidido usar este pseudónimo literário?
Já, mal comecei a escrever pensei logo que não poderia ser com o meu nome. Por causa da tal história de tentar publicar lá fora. Ainda por cima é fantasia, encaixa bem. Nada contra o meu nome, adoro-o [risos], mas queria publicar com um pseudónimo. Algumas pessoas mais próximas do mundo literário sabem o meu nome, mas a maior parte não, e isso ajuda àquele mistério.
Quando lançou o primeiro livro, aconteceu o que esperava? Teve logo feedback?
Parece que aconteceu há muito tempo, mas foi só há nove meses. E estou muito feliz porque soube recentemente que vai para a quarta edição. Penso que é um ótimo feito para uma autora desconhecida e para um primeiro livro. Primeiro, estive num estado de ansiedade pelo qual acho que nunca passei. Porque é tudo muito novo e foi tudo muito rápido. As pessoas começaram a ler o meu livro, o feedback foi super positivo e o passa-palavra foi incrível. Esta comunidade bookstagram foi quem inicialmente me deu incentivo e nome para depois chegar a outras pessoas. Foram eles que fizeram que o livro tivesse esta visibilidade. Estou-lhes eternamente grata.
Quais foram as melhores reações em relação à história e às personagens?
Aquilo foi tudo muito rápido. Uns dias depois do lançamento, comecei a receber feedback e as pessoas ficaram completamente loucas com aquele mundo e com as tais características fortes das personagens. De serem tantas e tão diversificadas, num mundo tão rico. Comecei a receber centenas de mensagens e a partir daí foi um descalabro muito grande. Sabia que estava muita gente a ler, mas não tinha noção. Só a tive quando chegou a feira do livro em setembro.
A de Lisboa?
Sim, eu e o meu marido estávamos a caminho, sou muito tranquila a falar em público, gosto imenso de estar com as pessoas e falar. Mas ia com medo: “espero que apareçam pelo menos umas 15 ou 20 pessoas”. Entretanto cheguei, a minha hora era das 15 às 16 [horas] e depois tinha de dar o meu lugar. Cheguei um bocadinho mais cedo, estavam uns 40 graus, entretanto apareceram umas meninas. Comecei a falar com cada uma, a dar uns autógrafos, e deixei-me absorver muito. Quando estou com a pessoa, estou só focada naquela pessoa. E depois olho para o meu marido, que estava de lado, de boca aberta e a gravar com o telemóvel. Porque eu estava mais recolhida para trás e não conseguia ter ideia. Então levantei-me e aí é que vi centenas de pessoas na fila. Estive lá até quase às 20 horas a dar autógrafos, a falar com pessoas, para mim foi surreal. Voltamos para Braga e não estava a perceber o que tinha acontecido. Sabia que estavam a ler, mas não naquela dimensão.
A ideia de escrever a continuação da história era algo que estava presente desde o início?
Sim. Aliás, terminei o “Aquorea” e comecei logo a escrever a continuação. Porque o final do primeiro livro fica em aberto. Mas, entretanto, em meados de setembro, ia a conduzir e a pensar numa cena específica do segundo volume em que entra o Kai, a personagem masculina principal. E pensei: isto ficava bem era num livro do Kai. Então liguei logo à minha editora: é uma ideia um bocado maluca, mas gostava de escrever um livro do ponto de vista do Kai. E foi. Então interrompi a escrita do segundo volume de “Aquorea” e fui escrever o livro do Kai, que é o “Shore Desvendado”. Em dois meses e meio escrevi o livro — é bastante mais pequeno e são os acontecimentos de “Aquorea” do ponto de vista do Kai. Não sabia que precisava de escrever este livro até começar a escrevê-lo.
E está agora a escrever o segundo livro da saga?
Sim, estou a escrever, ainda não tenho data para o terminar, quero que fique o melhor possível. Já sinto outra pressão, quero corresponder às expetativas. E, se calhar erradamente, mas estou a ponderar muito mais naquilo que escrevo, no que digo. Se calhar estou a escrever com medo, o que também não é bom. Mas está no bom caminho e, depois deste, se os leitores quiserem, ainda virá um outro que queria muito escrever.
Tem sentido um crescimento no número de pessoas que têm seguido o universo “Aquorea”?
Sim, aos pouquinhos tenho sentido que há muito mais gente a chegar até mim, a falarem-me de “Aquorea”, a mandarem-me mensagens. Peço sempre para falarem comigo e para me dizerem o que acham — e o que não gostaram também, para poder melhorar. Isso também deixa as pessoas mais à vontade para me dizerem, sem maldade, e fazerem uma crítica construtiva. Também vou às escolas falar, não só de “Aquorea”, mas de leitura no geral e de empatia, e acabo por ampliar o público. Têm sido experiências muito boas.
Quais são as suas grandes ambições? Continua a querer publicar no estrangeiro?
Antes de mais, agora com os pés mais assentes na terra e com a realidade do que é o público do nosso país — onde se lê muito pouco —, gostava que chegasse ao número máximo de pessoas possível. Não só esta saga de “Aquorea” mas todos os livros que planeio escrever. Porque não planeio só escrever fantasia: tenho mais dois livros que são romances adultos que também já estão alinhavados. O quero realmente é ser lida e que as pessoas gostem daquilo que escrevo. Claro que, se falarmos em sonhos, conseguir publicar no estrangeiro é o sonho de qualquer autor, que os livros sejam traduzidos noutras línguas. O maior sonho era que “Aquorea” fosse transformado numa série pela Netflix [risos]. Vamos devagarinho e a ver onde isto nos leva.