É simplesmente conhecida como Marie e foi assim — através de plataformas digitais como o TikTok, o YouTube ou o Instagram — que se apresentou ao mundo para relatar a sua La Vie de Marie. Nascida em 2001, Maria Manuela Gomes cresceu na pequena freguesia de Estela, na Póvoa de Varzim, num ambiente rural e contexto algo conservador, que contrastava bastante com a sua personalidade e gostos pessoais.
Marie sempre se apresentou num mundo colorido e aparentemente mágico, como se ela própria fosse uma fada da natureza. Abordando a sua saúde mental, a sua crise de identidade, partilhando os medos e preocupações mas também a arte diversa que cria e as suas divagações divertidas, Marie conquistou um público jovem — é seguida por dezenas e dezenas de milhares de pessoas nas redes sociais.
Este ano, aceitou o convite para entrar em “Big Brother”, o reality show da TVI — e naturalmente tornou-se conhecida junto de uma audiência muito diferente, conquistando protagonismo e mediatismo a um nível nacional. Agora, teve a oportunidade de lançar um livro.
“La Vie de Marie: A Verdadeira História” foi escrito em parceria com uma colega do “Big Brother” — a escritora e jornalista Virginia López, que a NiT entrevistou recentemente a propósito de outro livro — e é basicamente uma compilação. Reúne textos antigos e outros mais recentes, pensamentos diversos, além de desenhos e ilustrações. É um reflexo da jornada de Marie até aqui — onde a influenciadora digital aborda de forma direta todos os problemas por que tem passado. A edição da Contraponto está à venda por 16,60€.
“Há dias em que me sinto bonita e amada. E outros em que não passo de uma couve-galega; por isso, decidi abrir o meu coração e mostrar quem sou, apesar de ainda andar, tal como outros jovens da minha geração, à procura de mim mesma”, explica Marie na sinopse do livro.
“Neste livro sem tabus, falo dos meus traumas de infância, da relação com a minha família, da depressão por que passei, dos distúrbios alimentares com que convivo, de quando fugi de casa para ir viver nua numa comunidade hippie e até da ingenuidade do meu primeiro beijo, entre muitos outros episódios que não sei se vos farão rir ou chorar, mas que constituem a verdadeira história da Marie.” A NiT falou com Marie sobre este projeto. Leia a entrevista.
Porquê este livro? Como é que surgiu? Suponho que lhe tenham feito uma proposta.
Sim, o livro foi proposto pelo Rui [Couceiro, editor] e pela Virginia. Eu já escrevia há algum tempo, sempre escrevi, então quando eles propuseram o livro falei-lhes um bocado disso. E basicamente colecionámos algumas coisas que escrevi agora e juntámos com outras mais antigas. Foi quase como se fosse da autoria de uma versão minha mais criança — que estava a escrever na primeira pessoa tudo o que estava a sentir. E juntámos desenhos de várias alturas também. Foi assim que tudo começou.
Diria que é uma descrição da sua jornada até aqui?
Sim, acho que o livro é sobre uma pessoa que está a tentar perceber o que é que está a acontecer — e a tentar levar isso para uma coisa melhor. Se tivesse escrito agora certas coisas, não teria feito tanto sentido. Acho que é um livro interessante especialmente para adolescentes ou mesmo pessoas mais velhas que passaram por processos de tentar descobrir a sua própria identidade, vivemos num mundo que às vezes não é super aberto a coisas novas e torna-se difícil encontrarmos quem somos verdadeiramente e expressar-nos da forma que sentimos que realmente nos queremos expressar. E é um bocado essa jornada de tentar perceber o que é que sou, o que quero ser, e tentar perceber um bocado o mundo. Acho que há muitas pessoas a passar por coisas assim, que se poderão identificar. E mesmo visualmente acho que o livro é super interessante.
Sente que já está num passo à frente em relação àquilo que está no livro? A Marie sente que já está noutra fase?
Sim, o livro também tem coisas bastante recentes, mas sinto que sim, sem dúvida — há coisas que às vezes leio e quase que é estranho. Consigo voltar àquele corpo que estava a sentir aquilo, mas é mesmo estranho saber que aquilo era a minha normalidade, sentir aquilo e passar por certas coisas. Mas estou muito mais tranquila e talvez por isso é que fui capaz de lançar os textos. Na altura tinha muita vergonha de mostrar certas coisas e sentimentos. Agora é muito mais fácil para mim falar e expor certas coisas. Há vários tópicos: crise de identidade, crises comigo mesma, com a família, fases de crescimento, procura de respostas, há mesmo várias coisas e aquilo é mesmo quase descritivo ao longo da minha vida. Não é só sobre um assunto.
Acaba por ser sobre várias coisas que marcaram a sua vida até aqui. Como foi o processo de trabalho com a Virginia? Ela moldou os seus textos? Também teve certamente conversas com ela sobre o tom que queria apresentar no livro.
Íamos fazendo vídeochamadas, eu ia-lhe enviando textos, fotografias dos meus cadernos, fui escrevendo coisas novas… Eu vou escrevendo mas sou muito do meu momento, não sou organizada, não tenho tudo por uma ordem cronológica e assim. Então foi o processo de transformar tudo numa narrativa que fizesse sentido, com os textos de forma cronológica. E para o facto de me sentir confiante em relação ao livro também foi muito importante as conversas que existiram com toda a equipa. Porque como é uma coisa muito pessoal, várias vezes pensei “será que deveria mesmo estar a fazer isto? Será que faz sentido?” Mas agora faz-me muito mais sentido. Fico mesmo feliz por ter trazido alguma coisa às pessoas sem ser apenas digital.
Que reações tem recebido do livro?
Recebo muitas mensagens das pessoas que me seguem, por acaso. E acho que o meu público no geral é muito querido nesse aspeto. Dão muito valor, fazem muitos elogios aos quadros. Havia muitas coisas sobre as quais estava insegura, não sabia se iria fazer sentido para elas, e em termos das pessoas que me seguem, acho que são mais afetuosas do que às vezes estou à espera. Acho que até foi a partir do momento em que comecei a receber feedback que tive a certeza de que estava a fazer sentido para as pessoas. Reconfortou-me.
Esse feedback também a ajuda no dia a dia, a fortalecer a sua auto-estima e sentido de amor próprio?
Acho que procuro sustentar a minha auto-estima com coisas que só eu possa sustentar. Estou numa fase em que estou mesmo à procura de encontrar… Porque, imagina, a qualquer momento também posso receber coisas más. Então estou focada em mim mesma para estar bem. E isto faz-me feliz por ter criado algo, fico orgulhosa. Muitas vezes coloco muita pressão em mim e perceber que ainda sou tão nova e já fiz algumas coisas e as pessoas realmente valorizam — às vezes até recebo mensagens de crianças a dizer que coisas que eu nem reparo que faço ajudam, ou quando tentam recriar os quadros que estão no livro, ou falam de certos excertos… Acho que, quando sinto que estou a ajudar alguém, através de alguma coisa que criei, faz-me sentir melhor. Parece que já fiz alguma coisa, mesmo que muito pequena, pelo mundo.
O prefácio do Valter Hugo Mãe foi marcante para si?
Sim… Por acaso é mesmo estranho. Quando leio o prefácio, acho que aquilo é lindo, mas é mesmo estranho… Quando estou a ler quase que não associo a mim. Aquilo é tão bonito, e de uma pessoa tão bonita também, que às vezes quando leio parece que é direcionado para outra pessoa e quando percebo que é para mim é uma sensação estranha. Parece difícil de perceber que é para mim. Mas estou eternamente grata.
Estava a falar da resistência natural de querer partilhar algumas coisas. O facto de ter estado no “Big Brother”, que é um programa onde obviamente as pessoas também se expõem bastante, sente que também lhe deu um empurrão nesse sentido? De não ter tanto receio de se expor?
Acho que não, por acaso. E na altura em que saí do “Big Brother” até era uma altura em que me queria expor menos. Tive uma fase em que, não diria que estava assustada, mas estava um bocado de pé atrás com tudo o que estava a acontecer. Parecia que estava um bocado a desistir de criar e fazer coisas. OK, não sei se me apetece continuar a tentar criar coisas para as pessoas, se calhar vai ser só para mim. Mas acho que o máximo que podes fazer por ti é tornares-te uma versão mais forte, com mais contexto, com mais coisas para mostrar e dizer, com mais conteúdo, uma versão mais profunda de ti. E acho que agora me sinto melhor. Foi quando percebi que, eh pá, tal como eu há montes de pessoas a passar por coisas super difíceis. As pessoas têm problemas em abrir-se umas com as outras. E a falar desconstruímos tanta coisa. E se ajudar uma pessoa já é bom. Percebi que a dor e as coisas por que passamos não são necessariamente para nos vitimizar, mas são coisas que temos de transmutar como forma de força para o nosso futuro e presente.
Diz no livro que o “Big Brother” não lhe deu aquilo que procurava quando decidiu ir para o programa.
Quando fui para o “Big Brother”… Não me desiludiu, foi bom, foi interessante, mas acho que fui com outras expetativas. Na altura, se calhar achava que poderia ir trabalhar para a televisão. Também nunca tinha estado na indústria da televisão. Nem sabia se gostava ou não. Fui com expetativas um bocado inocentes, mas é natural para alguém que nunca tinha tido contacto. E estava ainda a tentar perceber de que é que gostava mais de fazer. E não nego esse desejo de um dia… Mas agora estou numa fase em que gosto mais de criar e mostrar-me de uma forma não necessariamente física. Não nego que, se fosse uma coisa interessante e em que gostasse de participar, é sempre uma forma de desenvolvimento da tua personagem e assim. Mas, depois de tanta coisa que aconteceu, e ainda não parei porque estou sempre a fazer coisas, acho que estou a precisar de mais um tempo para criar, mais um bocado de silêncio… Estou super grata, mas a nível criativo às vezes é um bocado difícil criar quando há tantas coisas. Foi mais um processo de expansão de afirmação da minha personagem.
Estava a falar de ter um dia a dia muito intenso, e de que se calhar precisa de alguma tranquilidade… O que é que se vê a fazer criativamente nos próximos tempos?
Além de fazer conteúdos para marcas e assim, estou a fazer um documentário que estivemos a filmar. Estou também a trabalhar na criação da minha loja. Vou tentar fazer uma loja para vender coisas feitas por mim e vou começar a aprender fazer cerâmica… Ou seja, vou investir um bocado agora na minha criação, em aprender a fazer coisas, a experimentar coisas quase como se estivesse numa escola auto didata. Ir aprender a costurar, a fazer cerâmica e escultura, pintar mais em tela e experimentar novas técnicas, ou seja, explorar mais o meu lado criativo para criar coisas novas. Enquanto artista, sinto que tenho muita necessidade de encontrar coisas novas e fico muito cansada rapidamente se estiver há muito tempo a fazer a mesma coisa…
E esse documentário de que estava a falar é, como o livro, sobre a sua jornada?
Sim, por acaso é, já estávamos a filmar o documentário até antes de ter entrado no “Big Brother”. Então foi super interessante porque foi todo um processo acompanhado que nem sequer era suposto…
Não foi planeado, nesse sentido.
Mas até acabou por tornar as coisas mais interessantes. É todo um processo e uma evolução, seja lá o que isso for. Já começámos a filmar para aí há um ano e tal. Vamos fazer a apresentação do documentário a 11 de dezembro na Comic Con e vamos ter uns dias intensivos na edição. Como ainda estamos na parte do processo de edição, não sei muito bem como é que vai ficar.
Como não foi muito planeado, será um bocado a edição que vai definir o rumo do documentário, é isso?
Sim, sim. Agora vamos estar uns dias a organizar todo o guião e a estética. Por isso é que ainda não posso falar muito sobre o documentário, porque ainda podemos mudar as coisas. Ainda é um processo.
Já pensou em fazer exposições com as suas peças artísticas?
Por acaso já tenho bastantes obras e é uma coisa que quero fazer, mas nem tenho quase tempo para pensar agora numa exposição… Mas claro que é algo que quero fazer e queria fazer algo mesmo bom, se fosse uma exposição. É algo em que quero pensar com calma.
No livro fala muito sobre a sua família e contexto familiar e social. Diria que está numa fase mais pacífica, segura e tranquila com as suas origens e família?
Sim… Sinto-me bem. A partir do momento em que estou melhor e bem comigo, estou mais na minha vida, então não é necessariamente um tópico que me atrofie no dia a dia. Acho que estou mais madura para perceber que cada um dá o que tem e estou mais focada nos meus projetos. Dou-me bem com as pessoas, não estou naquele conflito interior que acabava por se tornar exterior como nessa altura, a relacionar-me com as pessoas próximas… Estou numa fase super tranquila, e concentrada no meu trabalho e nas minhas criações, a tentar fazer coisas que me nutrem enquanto pessoa. Não estou focada nos problemas. Acho que nem tenho paciência para me chatear ou para dar demasiada atenção a coisas que já não são a minha prioridade.
E esse processo tem a ver com o seu amadurecimento e crescimento? Ou está relacionado com o facto de, geograficamente, já não estar tanto no ambiente da aldeia onde cresceu? O que é que mudou mais?
Acho que tem a ver comigo enquanto pessoa. Quando estás mal, independentemente do sítio onde estejas, parece que é tudo muito mais difícil. E agora estou melhor. Acho que sei gerir muito melhor as minhas emoções, as pessoas com quem quero estar, nos momentos em que quero estar, como é que quero gastar o meu tempo, o que vale e o que não vale a pena… Nem toda a gente tem a mesma capacidade, mesmo emocionalmente as pessoas divergem muito, e a partir do momento em que tu pões as tuas barreiras, e começas a perceber como queres gastar a tua energia, torna-se tudo mais tranquilo.
Diria que o livro acaba por refletir uma fase da sua vida, e que agora está numa nova?
Há coisas com as quais ainda me identifico, mas o livro é quase um registo de algo em que já estou a trabalhar para não me sentir assim. Porque eu era muito triste, não sei. E de certa forma é um registo material da pessoa que fui — e que guardo com muito amor. Fico feliz por ter feito isso. Se calhar vou ser velha, se chegar lá, e vai ser fixe ter um registo de quando era mais nova.