Dos poderes fantásticos dos super-heróis da Marvel ao estudo do comportamento e da mente de comuns mortais. Dificilmente irá encontrar um percurso profissional tão peculiar como o de Miguel Montenegro, de 47 anos.
Quando somos miúdos queremos ser tudo e mais alguma coisa: bombeiro, médico, cabeleireiro, ator ou futebolista. Aos 12 anos, Miguel tinha outro desejo: ilustrar bandas desenhadas, a sua grande paixão na altura.
“Já as lia desde muito pequeno e foi quando descobri os super-heróis da Marvel que percebi que era isso que queria fazer. Durante a adolescência comecei a orientar tudo nesse sentido”, conta Miguel em entrevista à NiT. Aos 26 anos tornou-se no primeiro ilustrador português a trabalhar para a Marvel Comics.
“Quase já podia morrer”, pensou o lisboeta, quando viu a sua missão cumprida. “Por um lado, senti uma grande satisfação por alcançar o meu objetivo de sempre. Ilustrou o ´Red Prophet’, uma série limitada de bandas desenhadas que começou com a autoria de Orson Scott Card, em 2006, e terminou com a Marvel Comics, em 2008.
A narrativa desenrola-se numa versão alternativa da América, onde as pessoas possuem habilidades especiais, designadas “talentos”. Os personagens são apanhados num enredo como ramificações sobre o futuro do continente.

Fez ainda alguns trabalhos na Image Comics, fundada por sete ilustradores e roteiristas dissidentes da Marvel. Foi fundada em 1992, e foi nessa década que chegou a ser considerada a segunda maior editora, tendo ultrapassado a gigante DC Comics.
Mas, curiosamente, ao contrário do que se possa pensar, o autor não tem saudades desses tempos. Descreve a sua experiência na Marvel Comics como “agridoce”. Apesar da satisfação por ter vivido o sonho de miúdo, “por outro lado, já estava um pouco aborrecido, precisava do estímulo intelectual, e também relacional, que a ilustração não me dava. É um trabalho muito solitário”.
Um dos motivos que o levaram a ir desistindo da ideia passou pela falta de participação que tinha nas histórias que desenhava. “Poucas vezes o ilustrador é o argumentista e eu gostava de ter tido um pouco mais de participação nessa área”. De acordo com Miguel, trata-se de um guião que chega já feito e o desenhista limita-se a fazer o seu trabalho. Embora houvesse margem de manobra para a criatividade, “queria mais”, explica. “Acho que a participação devia ser mais igualitária. No cinema o realizador manda, na BD não. Achei isso muito frustrante, senti-me um pouco ressentido na altura”.
A insatisfação levou-o a mudar de rumo. Por volta dos 30 anos, aventurou-se pela psicologia. “Estava indeciso entre a psicologia e a filosofia, mas optei pelo primeiro e foi a decisão certa”, confessa. A filosofia chegou mais tarde, no doutoramento, que se encontra ainda a realizar e que tem sido extremamente útil na sua prática clínica. Atualmente, sublinha que prefere conversar sobre a ponte que faz entre estas duas áreas — as primogénitas na sua nova carreira.
No entanto, Miguel continua a manter o gosto pelo desenho, e foi sempre capaz de o conciliar com os estudos. No primeiro ano de mestrado, por exemplo, deu início aos cartoons “Psicopatos”, cujo primeiro volume — apelidado de Volume Zero — foi publicado pelo Instituto Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida (ISPA), em Lisboa, onde estudava. Mais tarde, em 2015, lançou mais dois volumes pela editora Arcádia. Em França, chegou a publicar uma antologia.
Talvez para compensar a falta de intervenção que sentia na Marvel Comics, em conjunto com a necessidade de questionar o que ia aprendendo na faculdade, surgiram os patos pensadores. “Queria colocar em causa alguns dos dogmas da psicologia”, explica. “Então, decidi fazê-lo desta forma”. Foi a solução que arranjou para dar asas ao seu espírito crítico, ao mesmo tempo que combinava a ilustração com a psicologia.
Apesar do orgulho no passado como ilustrador a tempo inteiro, Miguel não deixa de reforçar que hoje está noutra fase da vida. “A Marvel foi há 20 anos e o «Psicopatos» há 10. As dimensões da psicologia e da filosofia são mesmo aquelas em que me revejo atualmente”.
A filosofia, acrescenta, é uma preciosa ajuda na prática clínica. “As pessoas não costumam remeter a filosofia moderna para estes problemas, mas, por exemplo, termos como dívida e dádiva, fantasia e muitos outros, têm-me ajudado bastante”.
No entanto, Miguel admite que nunca deixou de ser desenhista, mesmo sendo psicólogo. Por isso, tem ainda a ideia de produzir o terceiro volume dos “Psicopatos”, assim como um segundo do “Futuroscópio” e outras possíveis histórias. Além disso, é também professor na Sociedade Nacional de Belas Artes, comprovando que o seu talento natural para o desenho não o deixa fugir dos quadradinhos.