Depois de Stieg Larsson ter criado a trilogia original da história de “Millennium” — e de se ter tornado um fenómeno global, também graças às adaptações — a editora quis que a saga sueca continuasse. O herdeiro acabou por ser David Lagercrantz, antigo jornalista e escritor que se tinha tornado célebre por ter escrito a biografia do futebolista Zlatan Ibrahimovic.
David Lagercrantz escreveu três livros de “Millennium”, publicados entre 2015 e 2019, e depois começou a explorar novos projetos. O resultado chegou a Portugal no passado mês de novembro e chama-se “Obscuritas”, o primeiro livro do autor desde a saga “Millennium”.
É um policial com contornos de um thriller que começa no verão de 2003, quando os Estados Unidos da América acabam de invadir o Iraque. Em Estocolmo, um árbitro de futebol de origem afegã é assassinado. Giuseppe Costa, o pai de um dos jogadores, é preso pelo crime. No entanto, Costa insiste na sua inocência e a polícia decide consultar o professor Hans Rekke, um especialista em técnicas de interrogatório reconhecido internacionalmente.
Nada acontece como era esperado. Com um admirável raciocínio, Rekke descarta por completo a investigação preliminar, fazendo desmoronar todo o caso. Costa é libertado e a polícia não sabe que caminho seguir.
Porém, Micaela Vargas, uma jovem agente entretanto afastada do processo, não baixa os braços e volta a procurar o professor, embora ele não atenda nem retribua as suas chamadas. A dupla vai acabar por se reunir e o caso vai conduzi-los a uma caça ao terrorista levada a cabo pela CIA e à guerra dos talibãs contra a música.
“Obscuritas”, editado pela Porto Editora, tem 400 páginas e está à venda por 15,92€. A NiT conversou com David Lagercrantz sobre a sua nova obra. Leia a entrevista.
Depois da saga “Millennium”, o que o fez querer escrever um livro como “Obscuritas”?
Bem, primeiro não sabia o que fazer depois da saga “Millennium”. Devo escrever algo muito literário? Senti que a minha editora queria que continuasse. E, depois, de repente, tive esta ideia — e se escreves deves seguir as tuas paixões. Estava à procura na minha mente e lembrei-me do meu primeiro amor literário, o Sherlock Holmes. Então pensei: será que consigo fazer algo como aquilo? Comecei a pensar sobre o que adorava no detetive britânico. Adorava a sua enorme inteligência, claro, mas também comecei a pensar sobre aquilo de que não gostava. Talvez a sua arrogância… Ele é tão certo do seu génio. Então comecei a pensar em criar um Sherlock Holmes mais moderno, que em vez de arrogância tinha muitas dúvidas sobre si próprio. E talvez tivesse depressões como, infelizmente, eu próprio também experienciei. Depois pensei em juntar dois opostos da sociedade — especialmente agora, quando a igualdade está a crescer. Sabes que escrevi um livro sobre o Zlatan Ibrahimovic?
Claro que sim, uma biografia publicada em 2011.
Esse foi um encontro estranho mas muito bom. Sou daquilo que poderias descrever como de classe alta, e ele é do gueto — como ele próprio diz. Mas algo interessante aconteceu quando nos conhecemos. De alguma forma conseguia ver-me nele e entender coisas sobre mim, ao ver uma pessoa que era o meu oposto. Por isso pensei em juntar duas pessoas que são de diferentes partes da Suécia. Criei esta rapariga, Micaela Vargas, que é forte — porque tem de o ser. E o Rekke também é forte de muitas formas, mas tem aquela perspicácia. Talvez porque tenha tido esse privilégio. Tinha isto na minha mente e um dia quando andava em tour — a promover o último livro dos “Millennium” — um jornalista perguntou-me: o que vai fazer agora? E respondi: tenho uma ideia sobre um Sherlock Holmes moderno e duas pessoas de diferentes classes sociais. Isso foi publicado e de repente tínhamos ofertas de uns 20 países [risos]. Aí percebi que tinha de o escrever. Senti-me um batoteiro: tinha vendido algo que não existia, era só uma ideia [risos].
Depois disso, como é que desenvolveu a ideia?
Tinha de pensar, encontrar uma história e as personagens. O grande desafio foi escrever sobre uma jovem mulher imigrante, dos subúrbios. Por isso fui aos subúrbios, falei com raparigas como ela e depois tentei mesmo entrar no seu estado de espírito, pôr-me no seu lugar. E comecei a escrever. Fui jornalista, por isso o que faço quando escrevo é pesquisar. Escrevo e pesquiso. Pensei que não deveria colocá-los na atualidade, devia voltar atrás, porque acho que é difícil compreender o que estamos a viver neste momento. Pensei que era melhor voltar atrás. Escolhi 2003. Foi quando os EUA foram para a guerra, decidiram torturar os seus suspeitos e achei que era uma boa época para a narrativa do meu livro. Pesquisei sobre tortura, sobre aqueles tempos.
Quais diria que são as características mais diferenciadoras de “Obscuritas”, por comparação com os seus trabalhos anteriores?
Bem, sempre estive interessado na inteligência — a astúcia da Lisbeth Salander —, e tentar descrevê-la. Mas a maior diferença é que pude criar personagens por mim próprio. Escrevi esses livros “Millennium” e tinha escrito outros mas, considerava que eram personagens demasiado fortes ou muito estáveis. Queria muito escrever personagens mais instáveis. Adorei escrever sobre o Rekke, que passou por fases muito difíceis. Pensei que seriam personagens mais frágeis e atribuladas — isso deu-me imensa liberdade.

O maior desafio foi criar a personagem da Micaela?
Sim, sem dúvida nenhuma, e criar o universo do livro. É um desafio fazeres com que as tuas personagens ganhem vida. E quando os juntei, o Rekke e a Micaela, pensei que algo estava a acontecer. Conseguia vê-los. Claro que foi um desafio porque é o meu primeiro livro em muito tempo baseado em personagens que criei. Já conseguia ouvir os críticos: “Foi fácil escrever ‘Millennium’ ou ‘I Am Zlatan’, mas ele agora está consigo próprio e podes ver que não consegue fazê-lo”. Estava com receio [risos].
Mas, por outro lado, tinha mais liberdade e espaço criativo para escrever.
Sim, e isso foi maravilhoso, embora um pouco assustador.
Já explicou porque quis colocar a história em 2003. Recorreu às suas próprias memórias, desse contexto global, para escrever “Obscuritas”?
Sim, claro. Lembro-me daqueles dias — como agora — que não sabias bem o que estava a acontecer. Recordo-me quando os EUA começaram a guerra. Diziam que estavam a construir a democracia no Médio Oriente e talvez eu tenha acreditado nisso durante algum tempo. E quando disseram que o Saddam Hussein tinha armas químicas, talvez tenha acreditado nisso também. Lembro-me de viver nessa situação caótica e não compreender realmente o que estava a acontecer. Foi bom voltar atrás sabendo que tanta coisa daqueles anos estava arruinada. Aquela guerra tornou instável quase todo o Médio Oriente. A longo prazo criou a vaga de refugiados que estão a vir para a Europa. Isso levou à criação dos movimentos populistas de direita — foi o início do mundo ocidental a ir por caminhos errados.
Na Suécia, como é que esses acontecimentos influenciaram a população?
Os EUA tinham toda a nossa simpatia no início. Mas depois algo aconteceu — e tenho a memória de ver fotos dos prisioneiros que torturaram em Abu Ghraib. Muitos de nós ficámos chocados ao saber que os EUA estavam a torturar pessoas. Foi catastrófico para a imagem deles. Criou tanto ódio. Eles queriam lutar contra o terrorismo, mas o resultado foi provocar mais terrorismo. Na Suécia, ficámos cada vez mais críticos. Mas também, como noutros países, tornámo-nos mais divididos — foi o início da polarização. Entre os que sentiam empatia pelas pessoas no Médio Oriente e quem achava que eram simplesmente preguiçosos, malucos e estúpidos. Os refugiados começaram a vir. Muitos disseram que deveriam ser bem-vindos. Senti mesmo a sentir os movimentos populistas e racistas a começar nestes anos. E nós temos um partido assim — suponho que vocês também tenham — que se descrevem a si próprios como os Democratas Suecos. Eram muito pequenos, tinham um ou dois por cento dos votos. Agora têm mais de 20. Tanta coisa mudou.
Está tudo relacionado.
Sim, penso que sim.
“Obscuritas” é apenas o início desta saga? Como olha para esta história em termos gerais?
Bem, tenho muitas ideias, vou prosseguir com a narrativa. Eles vão ficar um pouco mais velhos, especialmente ela, e vamos avançar no tempo.Não quero que a Micaela seja apenas uma personagem que admira e aplaude o Rekke. Ela vai crescer, tornar-se igual e vão tentar resolver mistérios na Suécia. Mas nestes mistérios quero mostrar o mundo — tal como fiz neste. Começar com algo pequeno e depois talvez dizer algo sobre o que se está a passar à nossa volta — e fora da Suécia também. Estou neste momento a trabalhar na história e, como sempre, estou com dificuldades no primeiro capítulo [risos].
Vê-se a trabalhar nesta saga por muitos anos, com vários livros?
Sim, fiz um contrato para muitos livros, por isso tenho que o fazer. Mas quero fazê-lo, adoro esta personagem e estou muito feliz porque foi um sucesso instantâneo aqui na Suécia. Muitas pessoas vieram perguntar-me quando podem ler o próximo.
Obviamente, a saga “Millennium” teve um impacto muito grande por causa das adaptações ao ecrã. Também gostaria que esta sua história se tornasse num filme ou numa série?
Sim, aliás, não posso mencionar com quem, mas já assinámos um contrato. Para fazer um filme e uma série, pensamos nós. Foi extraordinário, porque desde muito cedo que havia muitas produtoras e plataformas de streaming interessadas. E é como funciona nos dias de hoje, em que estão todas à procura de conteúdo. Atualmente, vivemos num momento em que estamos numa posição priveligiada para ter uma boa ideia.