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O padre português apaixonado por livros que vê em “Harry Potter” uma ligação a Cristo

Samuel Camacho, de 29 anos, usa o TikTok para chegar aos jovens. Os vídeos também o ajudaram a melhorar as missas.
Criou a conta no início de 2024.

Quando Samuel Camacho disse aos pais que queria ir para um seminário para se tornar padre, as reações não foram as esperadas. A mãe chorou e “ficou muito triste”, mas também compreenderam e sabiam que era isso que o faria feliz. “Eles também estão na comunidade cristã e percebem o porquê de eu ter dedicado a minha vida a seguir este percurso”, conta à NiT.

A religião é uma das paixões da sua vida, mas não é a única: também a literatura ocupa uma grande parte do seu coração — e tudo começou quando estava prestes a concluir o curso de teologia, antes de apresentar a tese.

“Estava cansado de ler tanta coisa de teologia e precisava de algo completamente diferente”, recorda o booktoker (uma junção entre book e tiktoker) de 29 anos. Em 2019, entrou numa loja da FNAC e deparou-se com um livro que imediatamente lhe chamou a atenção: “Aniquilação”, do francês Michel Houellebecq. “Peguei nele porque a capa dizia que era o melhor escritor contemporâneo e, de facto, é mesmo”, garante.

A história observa as convulsões da sociedade, os altos e baixos da condição humana, e perscruta o mistério do sentido da vida a partir de uma perspetiva tão sombria quanto humanista. “Ele não tem nada a ver com o catolicismo, e, na verdade, até o critica. Mas, graças a Houellebecq, também descobri esta análise da realidade. Ele é muito cru a apresentar a natureza humana”, descreve Samuel.

Ler obras que discutem e contrariam as suas crenças não é algo que o perturbe. Muito pelo contrário. “É uma mais-valia porque é sempre bom entrar em diálogo com aqueles que estão contra a fé. A dada altura, como padres, estamos a falar com uma versão do mundo que está só na nossa cabeça, e que não corresponde àquilo que é verdade. Só com estes trabalhos é que conseguimos perceber melhor as angústias que afetam tantos homens e mulheres.”

Durante os cerca de sete anos que esteve no seminário (entre 2012 e 2019) considera que perdeu o contacto com o mundo que o rodeia. Acredita que o mesmo acontece com muitos outros dos colegas. Ele, contudo, conseguiu voltar à Terra.

“Quando estamos no curso durante muito tempo, acabamos por perder o sentido de realidade. As leituras também foram boas por isso. Ajudaram-me a abrir os olhos novamente para o sofrimento das pessoas e as suas vidas que muitas vezes não têm sentido”, reflete o natural de Faro.

@samuel_chapter

Eram 2:28 da manhã quando consegui terminar, passei uma noite sem dormir mas valeu a pena. Uma leitura que pareceia uma montanha de emoções, marcante e inesquecível: 5 estrelas. Obrigado @Maria Francisca Gama @PenguinLivros #fyp #booktok #booktokpt

♬ som original – samuel_chapter

Também acredita que os livros — e as redes sociais — podem ser uma arma essencial para chegar aos mais novos. Através deles, consegue perceber “aquilo que os jovens anseiam e as perguntas que colocam”. E considera que é sua responsabilidade dar-lhes respostas e ajudá-los a “encontrar o caminho certo”.

A pertença à comunidade BookTok (publicou o primeiro vídeo em janeiro deste ano) tem sido um enorme desafio. Falar para uma câmara não lhe é natural, e estranha ouvir a sua própria voz quando chega a altura de editar os vídeos. Isto, contudo, é uma ajuda para as missas. “Comecei a ter uma perceção diferente de quem sou, e percebi que tenho de trabalhar na forma como me dirijo aos outros”, assume.

No início, estava nervoso por mergulhar naquele mundo, mas até agora não se arrepende. Pelo caminho, tem feito aquilo que sempre quis: “ajudar as outras pessoas com as suas inquietações”. “Estou em sintonia com os jovens”, explica.

Na sua conta vai encontrar alguns dos seus livros favoritos (lê cerca de seis por mês) e muitas das opiniões de Samuel. Dentro da literatura, tem dois géneros de eleição: ficção e fantasia. Afinal, gosta de perceber como os escritores imaginam o mundo no futuro ou universos completamente diferentes.

É um grande fã de “Dune”, de Frank Herbert. Também tem uma preferência pela saga “Harry Potter”. “Muitas vezes é incompreendida e posta de lado pela Igreja, e não percebo porquê. Para mim, é mais fácil falar dessa história e fazer a ligação a Jesus Cristo, do que com o ‘Senhor dos Anéis’, por exemplo”, aponta. Através das aventuras do feiticeiro, consegue abrir portas a diálogos com a geração mais nova.

O amor pela fé

A vida de padre surgiu por mero acaso, mas, ao mesmo tempo, é algo que sempre fez sentido — especialmente quando Samuel Camacho olha para o seu passado. “Todas as minhas opções que me traziam mais felicidade contemplavam eu estar integrado numa comunidade maior e entregar a minha vida para trazer felicidade aos outros”, recorda.

Começou a questionar a sua própria fé quando estava no secundário, onde tirou Línguas e Humanidades. Havia algo dentro dele que não queria “parar de investigar quem era e no que acreditava”. Todas essas perguntas levaram a novas interrogações e, no fim, à entrega.

“É verdade que tinha muitas dúvidas de fé, e que essas não eram totalmente respondidas. Mas eu contemplava nessas questões um mistério diferente e uma continuidade de que todas se relacionavam. Quanto mais a questionei, mais razões tive para me entregar”, realça.

Enquanto concluía o 12.º ano, já estava integrado num seminário. Tinha pensado em várias opções, como o jornalismo, fotografia, vídeo ou ciências políticas. “Inevitavelmente, apaixonei-me mais por esta vida”, conclui.

Carregue na galeria e conheça algumas das obras mais aguardadas de 2024.

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