Livros

“As oportunidades para mulheres e homens na literatura portuguesa são desiguais”

A NiT entrevistou Helena Magalhães, a responsável pela nova Aurora Editora, que só vai lançar livros escritos por mulheres.
Helena Magalhães tem a curadoria da editora.

A Aurora Editora é a nova chancela do grupo Infinito Particular — o objetivo é apenas editar obras de autoras femininas, da literatura portuguesa e internacional, que muitas vezes não têm tanto destaque ou oportunidades no meio.

O projeto nasce pelas mãos da fundadora do clube de leitura e livraria digital Book Gang, Helena Magalhães, que já colaborava com o Infinito Particular. A também autora será a responsável pela curadoria editorial da Aurora.

A ideia passa por apostar em novas autoras portuguesas, mas também traduzir obras de escritoras estrangeiras. O primeiro lançamento vai acontecer em fevereiro. Trata-se de “Os Melhores Anos”, o primeiro livro de Kiley Reid. A história centra-se numa babysitter negra que é acusada de ter sequestrado uma criança branca — apesar de ela não ter cometido qualquer crime.

Leia a entrevista da NiT com Helena Magalhães.

Quando e como é que a literatura passou a ser uma parte importante da sua vida?
Desde muito nova. Não me consigo lembrar de um momento antes dos livros e depois dos livros. Porque sempre foram uma parte muito importante da minha identidade. Eu gaguejava muito quando era criança e via na leitura um grande escape porque as palavras não eram complicadas no papel. Aos doze anos comecei a ler em voz alta no quarto para controlar a dicção, então a literatura sempre teve um grande impacto na forma como me via a mim própria porque sempre tinha feito parte de mim. Nunca pensei nela como nada mais do que um hobby, escrever livros era algo tão longínquo, algo como sonhar-se em ser astronauta. Mas a escrita, que ocupou uma parte fundamental da minha adolescência, acabou por voltar para mim.

Quando e porque é que criou o Book Gang?
Criei o Book Gang em janeiro de 2019 como forma de encontrar leitores, incentivar a leitura e divertir-me com aquilo que mais gostava de fazer — falar de livros. O meu livro “Raparigas como Nós” iria ser publicado em junho desse ano e, consciente da dificuldade que seria comunicá-lo, queria fazer algo de diferente nas redes sociais que me permitisse aproximar de potenciais leitoras. Lancei o Book Gang em janeiro com o livro “A Grande Solidão”, de Kristin Hannah, que iria sair nesse mês, numa espécie de clube do livro onde incentivei quem quisesse a ler comigo e a falarmos sobre ele. 

Correu bem?
De forma inesperada, o livro tornou-se viral e, mês após mês, mais leitoras se foram juntando ao clube e, subitamente, as escolhas do Book Gang já tinham impacto nas vendas. Na altura trabalhava como jornalista e o próximo passo lógico seria tentar monetizar o projeto para que me permitisse dedicar a ele a full-time. Acabei por abrir a livraria do Book Gang no final desse ano como um teste para perceber se as pessoas queriam e podiam apoiar a curadoria, comprando os livros a mim, e, a meio de 2020, em plena pandemia e sem saber muito bem se isto fazia sentido, avancei para a subscrição mensal que teve uma adesão impressionante, não obstante todas as incertezas que estávamos a viver. 

Atualmente, em que moldes trabalha o Book Gang?
Neste momento o Book Gang é uma curadoria literária com uma subscrição mensal assente em novidades femininas publicadas em Portugal que tem por objetivo criar novas leitoras, incentivar a leitura e torná-la um hábito rotineiro na vida das pessoas, na medida em que, quem quer, recebe todos os meses a sua caixa com as melhores novidades contemporâneas publicadas em cada mês. O Book Gang não é um concorrente das livrarias, antes uma alavanca para a venda de livros que me deixa muito orgulhosa e motivada, mas também um pouco nervosa pela responsabilidade. As escolhas do Book Gang já têm um grande impacto nas vendas nacionais, ganham várias edições, tornam-se sucessos de venda num país onde a tiragem média ronda somente os 1500 exemplares e, longa vida aos livros, continuam a ter procura ao longo do tempo porque, todos os meses, há mais e mais pessoas a descobrir o Book Gang e a ler os livros que lemos no passado.

Como nasceu a Aurora Editora?
No ano passado, a Cultura Editora fez-me a proposta de trabalharmos em conjunto numa chancela feminina moderna para descobrir e publicar exatamente o tipo de livros que já gosto de trazer para o Book Gang. Falo de literatura contemporânea, que incentiva a leitura, que tem o potencial de criar novos leitores e, neste caso, que abrisse as portas às novas vozes femininas, uma vez que esse tem sido sempre o meu objetivo. Fiquei muito entusiasmada por perceber que a Cultura estava alinhada com as minhas ideias, que confiavam na minha visão e este era o timing certo para uma editora como a Aurora nascer em Portugal.

Porque é que é tão pertinente e importante haver hoje um projeto como este?
Porque não se fala muito nem se questiona o facto de termos uma indústria literária dominada maioritariamente por homens. As vozes dos homens são sempre tidas como mais relevantes. Foi assim nos últimos cem anos e continua a ser assim nos dias de hoje. Se um homem escreve sobre as suas experiências é arrojado, uma mulher está a chamar a atenção ou a dramatizar. Se um homem exige reconhecimento, tem audácia e caráter; uma mulher é arrogante ou ambiciosa. Sendo que, para as mulheres, a palavra ambiciosa tem sempre uma conotação pejorativa. O plano de português do ensino secundário continua a ser assente somente nos escritores homens. As oportunidades para mulheres e homens na literatura portuguesa, mesmo em 2022, são desiguais. Basta olhar para as prateleiras da literatura lusófona nas livrarias: são maioritariamente preenchidas por homens. Desta forma, a Aurora procura abrir um pouco mais o caminho às vozes femininas, quer internacionais, quer nacionais.

Daí a relevância de haver um projeto assim neste momento.
Claro. Neste momento havia um espaço enorme em Portugal para um projeto como este nascer. O mercado começa agora a aperceber-se de que não irá conseguir reverter a crise literária que se vive em Portugal se não se começar a apostar em novas vozes, novos autores que escrevam sobre os temas que a geração de hoje quer ler e que falem para os leitores de hoje. Somos o país da Europa com a menor taxa de leitura e isto é uma consequência de uma indústria estagnada que sinto que agora começa finalmente a acordar.

De que forma é que está a pensar fazer a curadoria da chancela? Que tipo de temas, livros e autoras quer trabalhar?
Esta curadoria vai focar-se essencialmente em livros que tenham impacto, que nos façam sentir, que fomentem o diálogo, que nos façam viver outras vidas, que sejam de alguma forma enriquecedores. Não procuro um género muito particular, procuro histórias. Quero descobrir livros que falem para a geração de hoje e autoras com boas histórias para contar. O livro “Os Melhores Anos”, que vamos publicar agora em fevereiro, é uma sátira que aborda o racismo e o feminismo que, quando li, senti que era bastante pertinente em Portugal nos tempos que vivemos. É um livro que nos faz questionar até os nossos próprios comportamentos e a forma como interpretamos estes temas. Foi o livro ideal para o nascimento da Aurora.

Há uma clara preocupação sua com a questão de as gerações mais novas lerem pouco. A Aurora vai focar-se mais no público jovem, tendo em conta esta problemática?
Não necessariamente. A Aurora vai focar-se em literatura contemporânea e em histórias que sejam ricas e que criem entusiasmo para a leitura. Há uma ideia até errada de que as gerações mais novas só querem ler literatura Young Adult quando, na verdade, os jovens de hoje são muito mais abertos, questionam muito mais o mundo que os rodeia e, nesse sentido, interessam-se por livros para lá do universo juvenil. O Book Gang tem sido uma grande aprendizagem para mim porque, por um lado, vejo leitores adultos a interessar-se e a divertirem-se com livros mais jovens e, por outro, os leitores jovens saem fora das suas zonas de conforto e também leem livros mais profundos e adultos. Acredito que a Aurora vai conseguir chegar a um público de leitores de várias idades.

Além de projetos como o Book Gang e a Aurora, que formas é que, enquanto sociedade, podemos e devemos adotar para promover a leitura em Portugal? O que falta?
Falta um apoio à cultura, acima de tudo. Em todas as suas áreas. Fala-se muito pouco de livros nos media, há cada vez menos espaço para livros e, neste momento, a grande luta é encontrar estratégias para levar os livros até às pessoas, fomentar o seu interesse, criar o hábito da leitura. Além disso, continuamos agarrados a um cânone que está longe de ser representativo dos tempos em que vivemos. Temos uma indústria muito envelhecida, falta de sangue novo e de novas formas de pensar que espelhem a geração de hoje. Portugal continua preso a um ideal literário de outros tempos e a uma literatura de minorias que já não reflete a sociedade de hoje e acaba por levar, em consequência, a que sejamos o país da Europa onde menos se lê. O Plano Nacional de Leitura, que deveria ser um recurso para pais e professores, é um reflexo da indústria antiquada e resistente à mudança. A grande maioria dos livros com o selo do PNL estão desfasados da realidade de hoje, não incentivam a leitura nem fazem sentido enquanto leituras complementares para os jovens. Se o objetivo é criar novos leitores, então o PNL é um fracasso. E isto deveria ser questionado, discutido e revisto.

Como referiu, a Helena também é autora. Está a trabalhar num novo livro?
Sim! Estou a meio do próximo livro e tenho outro já iniciado. Mas não sinto qualquer pressão em terminar nenhum dos dois. Gosto de escrever com calma, de me deixar embalar pelas minhas próprias histórias, de viver nelas até. Acho que nunca serei uma escritora que lança um livro por ano, mas também me sinto em paz com isso.

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