Pense para lá do século passado, do milénio passado, do tempo antes de Cristo. Se tivesse que se recordar de um escritor de cada uma das épocas, o mais provável é que desse brainstorming saia um nome masculino.
Não somos nós que o dizemos. Um estudo de 2011 revelava que na literatura britânica e americana, 78 por cento das críticas literárias eram escritas por homens. A mesma organização concluiu, em 2017, que apenas duas das 15 maiores revistas literárias haviam publicado mais mulheres do que homens.
Se essa é a realidade no século XXI, maior seria a disparidade há mais de quatro mil anos. É, porém, nessa época remota que encontramos a primeira autora conhecida de obras escritas — mesmo assim, no feminino, autora.
As obras perdidas no tempo e na história estão assinadas por Enheduanna, uma escritora e poetisa, mas também princesa e sacerdotisa. Viveu algures entre 2300 e 2200 AC, na antiga Mesopotâmia, hoje território iraquiano.
Filha do rei e conquistador Sargão I, tornou-se numa líder religiosa, sacerdotisa do tempo ao Deus da Lua. Além de ter assistido ao nascer de um dos grandes impérios da história, conquistou o direito de ser reconhecida como a primeira autora cujas obras estavam devidamente assinadas e reconhecidas.
As suas obras usavam a escrita cuneiforme, inventada pelos sumérios, e normalmente impressa na argila com a ajuda de um pequeno pau triangular. Hoje, conservam-se pelo menos três poemas em honra à deusa Innana, dois a Nanna e 42 hinos usados nos templos de então.
É graças aos registos de Enheduanna que hoje se conhecem, por exemplo, os mitos destes deuses mais de quatro mil anos depois. O registo da autoria é também digno de nota, até porque à época, não só eram habitualmente anónimos, como eram vulgarmente atribuídos a homens.
Gravados em blocos de argila que depois eram cozidos ou secos ao sol, os seus escritos resistiram graças a sucessivas cópias feitas séculos mais tarde, cerca de 1800 AC. Além da poesia, os registos históricos revelam outros segredos da vida de Enheduanna, sobretudo o facto de, nas suas obras, introduzir elementos autobiográficos.
Fala, por exemplo, na sua luta contra Lugalanne, um usurpador do seu posto como sacerdotisa. Abordava também as dificuldades criativas no momento de finalizar as obras. Mas não só. Muitos dos seus elogios aos deuses — então figuras celestiais — descrevem medidas e movimentos que são, para muitos, algumas das primeiras observações científicas de astronomia. Também por isso, o seu nome batizou uma das crateras de Mercúrio.