“Deus na Escuridão” é o título do novo livro de Valter Hugo Mãe que chegou esta quinta-feira, 18 de janeiro, às livrarias portuguesas. Mais uma vez, a espiritualidade é uma temática abordada na obra do escritor.
A história principal, contudo, gira à volta da relação entre dois irmãos: Pouquinho e Felicíssimo. Estes são nomes que, tal como o autor explica à NiT, são bastante caracterizadores dos seus papéis na narrativa.
“Este livro explora a ideia de que amar é sempre um sentimento que se exerce na escuridão. Uma aposta sem garantia que se pode tornar absoluta. A dúvida está em saber se os irmãos podem amar como as mães que, por sua vez, amam como Deus. Passada na ilha da Madeira, esta é a história de dois irmãos e da necessidade de cuidar de alguém. Delicado e profundo, Deus na escuridão é um manifesto de lealdade e resiliência”, lê-se na sinopse.
A obra foi publicada pela Porto Editora e já pode ser adquirida online e nos locais físicos. Tem 272 páginas e custa 18,85€ — embora esteja atualmente com descontos em diferentes sites, como a Wook e a Fnac. Pode, então, ser comprada por 16,97€.
A NiT esteve à conversa com o autor que, em 2007, venceu o Prémio Saramago com “O Remorso de Baltazar Serapião”. Leia a entrevista.
Como surgiu a ideia para este novo livro?
Ele começa com a impressão, com um certo encanto, que me causou conhecer uma senhora madeirense, a senhora Luísa Reis Abreu, que é mãe de grandes amigos meus, e que eu, ao ouvir falar, não só encontrei uma expressão, um português absolutamente paralelo ao português que eu falo e que me é comum, mas encontrei também uma mundividência de fé, de rigor na maneira de acreditar em alguma coisa, que verdadeiramente me fascinou.
Eu tenho a impressão que a senhora Luísa terá sido a pessoa que conheci que exerceu a fé de uma forma mais limpa, mais genuína, sem nunca questionar, sem nunca duvidar. E pronto, com o tempo, de facto, eu fui entendendo que o encontro com esta senhora e as viagens que pude fazer à Ilha da Madeira iam tornando inevitável imaginar um livro e levaram-me a acreditar que haveria um bom livro para ser escrito em redor daquela linguagem e sobretudo em redor daquela energia.
Quando o Valter fala em fé, refere-se a Deus ou num sentido mais abrangente da palavra?
Sim, é uma fé em Deus, mas que resulta numa espécie de ética de conduta humana que eu diria irrepreensível. Ou seja, é um compromisso com um sistema de convicções éticas e morais que verdadeiramente se vê aplicado. A maioria das vezes as pessoas acreditam em coisas e fazem outras coisas que poderão ser, inclusive, opostas. A senhora Luísa era uma pessoa que não trazia queixume, trazia uma espécie de gratidão imediata, uma gratidão inata a todas as coisas — o simples facto de poder existir e estar com os outros.
Além da inspiração da senhora Luísa, houve alguma experiência pessoal que tenha influenciado esta história?
Passa muito pela minha relação com as ilhas. Este livro fecha um ciclo de tramas passadas em ilhas e isso tem a ver com a minha obsessão com a questão da solidão, com a questão do isolamento. Eu fui sempre bastante assustado pela solidão. Este livro procura um pouco responder a esta minha obsessão.
Esta não foi a primeira vez que um trabalho seu esteve ligado à Madeira.
Já escrevi várias coisas sobre a Madeira, escrevi várias crónicas, contei vários episódios, e esta é a segunda ficção inteira sobre a Madeira. Tenho também “As mais belas coisas do mundo”, que eu ambientei no Curral das Freiras, e que é um conto breve, inclusive ilustrado para os mais novos.
Porquê a Madeira?
Aconteceu, é curioso que eu achava, mais do que achar, havia-me proposto escrever sobre os Açores. A primeira vez que viajei aos Açores, fiquei de tal maneira deslumbrado e impressionado com o que aquilo é. Mas a vida tem outras deslocações. E a Ilha da Madeira entrou na minha vida, tornou-se muito mais frequente. É verdade que eu fui sempre muito mais convidado para ir à Ilha da Madeira. A Feira do Livro do Funchal convida-me com muita frequência. Enfim, aconteceu e aconteceu que com essas deslocações, com essas oportunidades, eu fui fazendo amigos e conhecendo pessoas madeirenses que vivem no continente, com quem eu fui estabelecendo uma amizade mais estreita. E por isso, a Ilha tornou-se muito presente
Pode-me falar sobre as duas personagens principais, o Poquinho e o Felicíssimo?
Este livro usa dois irmãos para, de algum modo, meditar ou estudar acerca do amor, do extremo do exercício amoroso e o que poderá ser o amor das mães. Ainda que se trate de uma história substancialmente passada entre dois irmãos, na verdade, o que se quer é entender que talvez todos nós, os capazes de amar alguém, devêssemos cobiçar o amor que é típico das mães.
No livro diz-se algo como que o amor das mães é o único que poderá ser comparável ao amor de Deus. E por isso, estes dois irmãos acabam por estabelecer uma relação de cuidado entre um e outro que extrapola, digamos assim, e adquire uma dimensão, eu diria, sublime e por vezes até divina, como se o Felicíssimo, o irmão mais velho, por necessidade de salvar a vida ao irmão mais novo precisasse de estar na vida dele como uma espécie de mãe, o que é o mesmo que dizer que precisa de estar como uma espécie de Deus na vida do irmão.
Estas duas personagens têm nomes bastante peculiares. Estes têm algum significado especial ou acabam por ter um papel na própria narrativa?
Os nomes caracterizam as personagens de algum modo. O Pouquinho nasce em 1981 com uma fisicalidade, digamos assim, diferente. Sabe-se que ele não crescerá muito, que será débil e que provavelmente terá uma certa vocação para morrer. E o Felicíssimo, que em 1981 é mais velho 10 anos, aflito com a possibilidade de o irmão morrer
declara que nenhuma dificuldade vai retirar-lhe a possibilidade ou o direito de se sentir feliz pelo nascimento do irmão.
O Pouquinho acaba por ficar conhecido como Pouquinho porque se espera dele uma pessoa pequena, E o Felicíssimo é conhecido por Felicíssimo porque, independentemente do sofrimento, ele reclama o direito de ser feliz por ter um irmão.
É por causa do estado de saúde do Pouquinho que o Felicíssimo é tão protetor do irmão?
Sim, é exatamente por causa da saúde débil do Pouquinho que o Felicíssimo se transforma numa mãe e eventualmente num Deus ou numa espécie de figura que não é verdadeiramente terrestre, que é como eu acho que todos nós concebemos as nossas mães
Porquê esta comparação entre Deus e as mães?
Eu julgo que não há nada que ofereça mais milagre ao mundo do que a ideia de um corpo se multiplicar. Nada do que está nas mãos da humanidade é mais parecido com um milagre do que o corpo de uma mulher que se multiplica gerando o corpo de um filho.
O título “Deus na Escuridão” sugere uma exploração profunda e um bocado reflexiva. Pode-me explicar o significado por trás do título e como reflete a essência do livro?
De algum modo, quem ama, ama sempre na escuridão. Ama sem garantia. Amar é ficar à mercê da pessoa amada e por isso caminhamos num sentido que é sempre inseguro, que é sempre instável. De algum modo é como se amar nos colocasse numa certa escuridão.
Existem temas recorrentes ou elementos que os leitores podem reconhecer dos seus outros trabalhos?
Este livro fecha um ciclo que chamei Irmãos, Ilhas e Ausências e por isso há uma ideia que eu tenho vindo a perseguir de definir relações de fraternidade distintas e, ao mesmo tempo, solidões intensas de ilhéus distintos. Julgo que é um livro que eventualmente reincide em algumas das minhas fixações ou das minhas vontades mais fortes e que tem a ver com alguma ideia de espiritualidade.
Normalmente os meus livros contêm uma espiritualidade que não é religiosa. Normalmente escrevo sobre uma espiritualidade das pessoas da humanidade, mas neste livro
eu regresso à espiritualidade num contexto que tem mais a ver com uma religião definida ou com uma convicção mais definida e que passa obviamente pelo cristianismo,, a grande espiritualidade dominante no nosso País.
Aqui a espiritualidade já não é vista de uma forma mais global, mas mais focada no cristianismo.
Sim, é um retrato dos cristãos.
E acha que esse retrato vai ser bem recebido pelos cristãos?
Espero que sim. Eu também tenho um pouco a sensação de que os cristãos contemporâneos são pouco convictos e muitas das vezes pouco informados, mas pronto, as pessoas acreditam à medida das suas forças e exercem a sua espiritualidade como quiserem. No fundo, a espiritualidade como se vê nos meus livros tem de ser um espaço de profunda liberdade, e é muito isso em que eu acredito.
Que tipo de reação espera provocar nos leitores com “Deus na Escuridão”?
Eu espero que as pessoas gostem do livro. Para mim é um livro de luz. É um livro profundamente benigno que não deixa de contar uma tragédia, como é o meu costume. Espero que se possam encantar com esta história tanto quanto em me encantei.
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