Ao quarto dia, os Red Hot Chili Peppers subiram ao palco e, numa homenagem à atuação de Jimi Hendrix no Woodstock de 69, tocaram a sua versão de “Fire”. A multidão cansada, desidratada e irada levou o tema à letra.
Um jornalista da “Rolling Stone”, que havia escapado por minutos para enviar uma peça para a redação, relata o cenário que encontrou no regresso ao palco. “Vi um grupo de miúdos a tentar capotar um atrelado. Acabaram por conseguir, a custo de uma perna partida. Vi uma arrepiante e silenciosa fila de polícias de choque; cheirei suficiente gás pimenta para que os meus olhos começassem a lacrimejar. Havia fogo por todo o lado, gritos distantes a virem de todas as direções; parecia o fim de qualquer coisa.”
O cenário relata o ambiente final do Woodstock de 1999, o festival de quatro dias que pretendia celebrar os 30 anos do evento mítico, mas que acabou por se tornar numa tragédia. O exato oposto daquilo que deveria ter sido e que foi a edição de 1969.
Duas décadas depois, parece fácil fazer a conta de somar e perceber que o festival tinha tudo para correr mal. E é essa análise que o novo documentário da HBO procura fazer. Realizado por Garret Price, “Woodstock 99: Peace, Love and Rage” é uma espécie de resumo do festival que faz parecer o Fyre uma brincadeira de crianças.
“Teria sido muito fácil contar esta história e estruturá-la como uma comédia, gozar com tudo todas aquelas coisas típicas do final dos anos 90 — a forma como as pessoas se vestiam, a música que ouviam. Mas a realidade é que à medida que aquele fim de semana se foi desenrolando, parecia muito mais um filme de terror”, explica o criador do documentário que estreou a 24 de julho na HBO.
Em 1999, reinava na rádio nu-metal, género que foi praticamente apagado das páginas da história. Nas cabeças, traziam-se bonés dos New York Yankees virados ao contrário — um look que Fred Durst, vocalista dos Limp Bizkit, tornou célebre —, nos ouvidos, carregava-se o som de um rock agressivo, o hino de uma geração de homens brancos cheios de testosterona e raiva.
No cartaz, uma espécie de compilação que facilmente caberia nas suas playlists: de Limp Biskit a Korn, Kid Rock, Metallica, The Offspring, Godsmack, Everlast. Ao seu lado, claros outsiders que haveriam de perder protagonismo perante a plateia sedenta de decibéis. Nomes como Elvis Costello, Jewel, Wyclef Jean, James Brown, Jamiroquai, The Roots e Sheryl Crow ficaram esquecidos.

A organização fez de tudo para replicar o clima de paz e amor. Infelizmente, não havia nada que pudessem fazer. A escolha do local recaiu numa antiga base militar — muitos sublinham a ironia de fazer uma homenagem ao Woodstock de 69 num local como este — no estado de Nova Iorque. Esperavam-se perto de 200 mil pessoas, mas o mercado negro foi inundado de pulseiras falsas, de tal forma que se tornou impossível verificá-las à entrada. Estima-se que tenham entrado muito mais do que o número estimado de espectadores.
Era o evento de uma geração num novo contexto. Desta vez, o espetáculo seria integralmente coberto pela MTV dos seus tempos áureos. Só que ao invés de uma homenagem a Woodstock, assistiu-se a uma parada de tudo o que de mau representava essa geração.
“Quando passas a vida em concertos, desenvolves uma espécie de sexto sentido”, explica Moby no documentário, ele que fez parte do alinhamento do festival. “Consigo adivinhar a metros de distância qual é a energia do local. E mal saí do autocarro, disse: ‘Alguma coisa não está bem aqui’.” E tinha razão.
Embora não tenha sido cancelado, os quatro dias de Woodstock 99 arrastaram-se penosamente até um culminar desastroso, entre feridos, violações, incêndios e motins.
Um plano desastroso
Estávamos nos anos 90, muito longe do ambiente de 69. O novo Woodstock foi desenhado para ser uma máquina de dinheiro: bilhetes acima dos 150€, um valor altíssimo para a época; garrafas de água a mais de 4€ e fatias de pizza acima dos 7€.
Esse foi, desde logo, um dos grandes problemas. É que na base aérea, tudo era feito de alcatrão ou cimento. Com temperaturas a rondarem os 37ºC, o ambiente rapidamente se tornou insuportável. Pior: o festival com 220 mil pessoas representava o terceiro maior aglomerado de pessoas em todo o estado.
As fontes de água gratuitas estavam longe de conseguir matar a sede de tantos milhares de pessoas. Quem não teve que ser assistido por insolação ou desidratação — registaram-se mais de 700 casos, que obrigaram a intervenção médica — resistiu sem dinheiro no bolso e uma enorme raiva contida.
Entretanto, as enormes barreiras montadas para evitar a entrada de pessoas sem bilhete mostrou-se um fracasso. Não porque pudessem ser ultrapassadas, mas porque muitas pulseiras contrafeitas se mostraram capazes de enganar muitos dos seguranças.

Muitos dos jornalistas que por lá passaram criticaram as condições e acusam os promotores de terem poupado dinheiro em tudo o que podiam. A poupança, claro, revelou-se fatal assim que os milhares de pessoas chegaram ao recinto. Além de terem contratado poucos funcionários e seguranças, havia também pouquíssimas casas de banho portáteis e duches.
Num instante, as casas de banho transbordaram e tornaram-se inutilizadas. À sua volta formaram-se lagos de urina, que muitos tomaram por mera lama e onde se divertiram a mergulhar.
A raiva começou a crescer e acabaria por se mostrar incontrolável. Faltava apenas um rastilho — e esse veio do palco.
A violência
Vinte anos depois, Fred Durst e os seus Limp Bizkit são acusados de muita coisa: de terem arruinado os outfits de uma geração; de terem assassinado o rock; e neste caso de terem servido de rastilho para a violência desenfreada do Woodstock 99.
A acusação pode ate ser injusta, mas foi com a eletrizante “Break Stuff” que a multidão finalmente se sentiu livre para fazer o que lhes gritava Durst: partam coisas. E eles partiram.
Os mosh pits começaram a tornar-se cada vez mais violentos. A raiva virou-se para tudo o que estava à volta desta multidão de jovens brancos na casa dos 20: caixotes, barreiras, barracas dos patrocinadores. Tudo o que pudessem agarrar.
No centro do mosh pit, multiplicavam-se os feridos. Conta final de feridos do festival: 10 mil que necessitaram de tratamento médico.
A multidão só precisava de uma desculpa e não faltavam bandas prontas a dar-lhas. Um pequeno motim formou-se na plateia do espetáculo dos Insane Clown Posse, quando a banda decidiu atirar notas de 100 dólares para a multidão.
E durante o concerto de Fatboy Slim, uma carrinha chegou mesmo a rasgar pela plateia, o que obrigou a interromper o espetáculo durante pelo menos 10 minutos.
Ao longo da noite, os inocentes fugiram. Permaneceram os autores da violência, que continuaram a derrubar torres de som, enquanto agitavam bandeiras por cima das chamas. Gritava-se “USA, USA, USA!”.

Só terminaria com a intervenção demorada e dura da polícia de choque, que demorou várias horas até conseguir controlar a situação. Contagem final: Woodstock 99 resultou em três mortes.
As violações
“É um festival de tipos grandes”, comentaram algumas mulheres no meio da multidão. Acima das cabeças erguiam-se mulheres em top less, numa espécie de homenagem ao espírito livre e rebelde do Woodstock de 69. Só que o ambiente não era o mesmo — e rapidamente perceberiam isso.
Os cânticos começaram a surgir sempre quem grandes grupos de homens se cruzavam com mulheres: “Mostra as mamas, mostra as mamas!”. Muitas obedeciam.
Quando a multidão se libertou finalmente da raiva e partiu para a violência, teve uma espécie de epifania: Woodstock é um local sem lei. “As regras da sociedade não se aplicam aqui”, diz um dos agitadores no trailer do documentário.
Sem regras, sentiam que podiam fazer tudo e isso incluía não se limitar a pedir às mulheres que tirassem a roupa. Se tal fosse preciso, seriam eles próprios a fazê-lo. E fizeram.
De volta ao concerto de Limp Bizkit, terá sido na plateia que aconteceu uma das primeiras violações em grupo, relatadas por pessoas que assistiram ao incidente, mas que não resultou em qualquer acusação. Outra violação foi reportada no concerto de Korn.
“A certa altura vi uma rapariga, muito pequena, não tinha mais de 45 quilos, a surfar a multidão. Caiu ou foi puxada e ficou no círculo interior de um mosh pit”, revelou um voluntário do festival à “MTV”. “Estes homens, na casa dos 25 a 32, pareciam estar agarrá-la, percebia-se que ela estava a tentar libertar-se.”
Outro relato foi ainda mais gráfico e foi dado ao “The Washington Post” pela polícia. Uma mulher de 24 anos viu-se presa num mosh pit, onde foi violada, primeiro “com os dedos”, depois “com objetos” e finalmente “violada por um dos homens”. “Devido à densa multidão, ela sentiu que se gritasse por ajuda ou desse luta, poderia ser espancada”, foi escrito no relatório policial.
Ao todo, relatava o “The New York Times” à época, pelo menos quatro violações foram reportadas à polícia. Ninguém foi detido ou sequer formalmente acusado.