José Pinhal. Para alguns, o nome é sinónimo de velho conhecido. Para outros, uma incógnita total. Muitos só se depararam com o fenómeno depois do destaque dado no “The Guardian”, mais uma etapa na aventura improvável do cantor popular de Santa Cruz do Bispo.
Pelo caminho, os (poucos) temas gravados pelo artista animaram festas mais ou menos públicas e deram até origem a uma banda de tributo, os José Pinhal Post Mortem Experience. Um caminho que demorou mais de duas décadas a ser trilhado e que foi lançado por Paulo Cunha Martins e um par de cassetes com as quais esbarrou por acaso.
Aos 41 anos, o portuense viveu sempre rodeado de música. Tocou em bandas desde a adolescência e é hoje um ávido colecionador de música portuguesa, onde cabem muitas bizarrias e raridades, entre as mais de cinco centenas de discos. À NiT, o DJ do coletivo Pérola Negra recorda como tudo começou, num pequeno apartamento na Travessa da Fontinha, a poucos metros da casa onde cresceu.
“Eu morava em Santa Catarina e o meu irmão comprou um apartamento a uns metros de distância. Era uma casa que tinha sido transformada em escritório”, recorda. A casa curiosa tinha algumas particularidades, interruptores fora das divisões, posters de artistas nacionais, contratos rasgados no chão e cassetes abandonadas.
Era, segundo Paulo, o escritório do agente Cipriano Costa, que chegou a trabalhar com nomes com Herman José ou Ana Bola. “Havia muita coisa deixada para trás. A casa estava num estado total de desmazelo, do género ‘fiquem lá com isso, deitem fora, façam o que quiserem’”, conta. A maioria das cassetes havia desaparecido, à exceção de alguns exemplares. Achou piada à fotografia, ouviu e deparou-se com um tipo que “cantava de forma curiosa”.
“Na altura não tinha noção, nem sequer era coisa que me cativasse muito a atenção. Tinha piada partilhá-lo com as pessoas. Bastava terem um carro com leitor de cassetes que havia logo potencial de partilha. Nunca houve um plano ou outra intenção. Era mais na onda do ‘olha lá como é que este tipo canta’.”
A reação que Paulo teve — e que hoje a maioria tem quando ouve Pinhal pela primeira vez — foi-a observando naqueles com quem partilhava a descoberta. “Alguns achavam foleiro, outros riam-se, mas havia um grupo de pessoas que memorizava as letras”, conta sobre o cantor misterioso. “Tudo o que sabíamos era o que estava atrás das cassetes: Santa Cruz do Bispo; e um tal de José Guimarães, o arranjista.”

O puzzle começou a montar-se. “Nos 80, ganhava-se dinheiro a tocar ao vivo e quando a originalidade do artista era pouca — o que acontecia na maioria dos casos —, a editora comprava direitos de interpretação de temas de outros artistas, para que os seus próprios artistas pudessem cantá-los. Faziam versões, editavam, ganhavam notoriedade e lançavam-se a tocá-los ao vivo”, explica Paulo, que procurou a origem de cada um dos temas dos dois volumes que descobriu de Pinhal.
“No caso dele, só dois dos temas é que não consegui encontrar originais. Não são versões. O mais conhecido é a ‘Tu És a Que Eu Quero’. Não a encontrei em lado nenhum. E o mesmo aconteceu com o primeiro tema do Volume 2, ‘A Vida Dura Muito Pouco’.” Os restantes são quase todos “versões de temas de um espanhol chamado Chiquetete”.
A história que começou em 2001 não arrancou para uma ascensão gloriosa. Foi, aliás, uma transição lenta que passou por “um hiato” entre 2004 e 2009, até à digitalização. “Passava as músicas numa ou noutra festa mais idiota mas não passou disso. A digitalização dos temas foi decisivo, porque foram passando de mão para mão. Ouviu-se em Coimbra, em Lisboa. As pessoas começaram a ouvir José Pinhal e a dar-lhe espaço para respirar.”
A explosão definitiva começa a dar-se com a ascensão do YouTube e com a partilha dos temas por Joaquim Gomes. “Ele foi um bocado um herói por acaso no meio disto tudo, porque encontrou uma forma de relançar o interesse através do público digital”, nota Paulo. A plataforma de vídeos tomava conta do mundo e, com ela, ajudava a propagar a palavra de José Pinhal, que lentamente angariou ainda mais fãs para o pequeno nicho.
É pelas caixas dos comentários no YouTube que se dá outro encontro fortuito e que abriu a porta para mais uma fase de descoberta. “No meio dos comentários vi o nome de uma tal de Marina Pinhal”, recorda. O apelido não podia ser coincidência — e não o foi, de facto. Entre os que descobriam o artista português estava a sua filha Marina, “fundamental na realização do documentário e para a reedição dos dois volumes em vinil”.

A descoberta trouxe também uma má notícia que, até então, os fãs desconheciam: José Pinhal tinha morrido em 1993, vítima de um acidente de viação no regresso a casa. O sonho de revisitar o artista em vida desmoronava-se — mas o mito ganhava força.
Trocaram várias mensagens e Paulo abriu-lhe as portas para o mundo digital dos fãs do pai, sobretudo o grupo de Facebook onde se pedia a reedição dos temas de Pinhal. “Ela começou a partilhar com alguma frequência e só mais tarde é que a conheci pessoalmente”, conta. “A reação da família foi natural, foi ótima. A Marina sentiu-se muito orgulhosa das pessoas que fizeram o possível com aquilo que tinham para fazer perdurar e manter viva a memória e música do pai.”
O fenómeno estava, por essa altura, fora do controlo. Paulo descobriu mais tarde que havia já uma banda de tributo que tocava temas de José Pinhal. E a entrada em cena da filha permitiu dar o grande passo: a reedição dos discos em vinil. Foi precisamente com o Volume I de José Pinhal que arrancou o Lusofonia Record Club, club de vinis portuense que edita edições especiais de discos de artistas lusófonos.
Olhando para trás, para aquela visita ao apartamento a poucos metros da casa de família, há já mais de vinte anos, Paulo mostra-se estupefacto. “Nunca me passou pela cabeça chegar aqui. É aliás o sentimento de todos os que conhecem um pouco sobre a história do José Pinhal. É uma coisa improvável”, nota, enquanto tece comparações com Rodriguez, o artista americano que fez sucesso na África do Sul em pleno apartheid e que foi redescoberto muitos anos depois graças ao documentário “Searching for Sugar Man”.
“Claro que é uma qualidade musical completamente diferente, mas não é por aí que se fazem julgamentos de valor sobre a paixão das pessoas. Aqui estamos a falar do José Pinhal, de uma celebração inocente das letras”, nota. “É música feliz para unir as pessoas, festejar o momento sem grandes consequências, sem mensagens fortes ou ramificações políticas. É música de festa.”
Sobre o fenómeno, destaca a singularidade de a música de Pinhal ter feito um caminho ímpar, entre meios, eras e públicos. “Surgiu numa altura em que a Internet estava a ganhar maturidade, apanhou um público a aprender como tudo funcionava. O José Pinhal foi híbrido, foi cassete, CD, ficheiro, passou pelo YouTube e hoje está disponível em vinil. Correu vários tipos de media, de consumo, de público. Isso enriqueceu o fenómeno.”
Mas seja qual for o veículo, o que distingue Pinhal é outra coisa bem distinta. “Acho que a música dele tocou num ponto muito interessante na cabeça das pessoas, nesse desejo de haver uma música de festa que fosse portuguesa, que tivesse algum humor, que não pedisse desculpa por existir”, conta. “Ele já existia. O que houve foi uma sequência de belos e felizes acidentes que nos trouxeram até aqui a este fenómeno.”