Música

Atrasos, dívidas e uma festa deixada a meio: o fiasco da Semana Académica de Lisboa

Previam-se 45 mil espectadores por dia. Não estiveram mais de cinco mil. O evento foi cancelado — e para trás ficou um rasto de dívidas.

O cartaz de cinco dias, dividido em dois fins de semana, fazia prever uma das maiores semanas académicas de Lisboa. De Kamala a Profjam de D’ZRT a D.A.M.A, os nomes perfilavam-se e, naturalmente, todos quiseram fazer parte desta festa. Todos menos o público, cuja ausência levou ao cancelamento da Semana Académica de Lisboa (SAL) ao fim de apenas dois dias.

No dia do arranque, na sexta-feira, 23 de setembro, já havia quem esperasse junto às portas do recinto no Parque Tejo. Na pequena praça reservada às food trucks, a expetativa era que tudo começasse a funcionar pelas 17 horas. Porém, só quatro horas depois, começariam a receber os primeiros clientes — um atraso que nunca foi explicado.

Junto à entrada, aguardavam ainda os camiões da cerveja, que se recusavam a fazer a entrega prevista por falta de pagamento. “Disseram que só entregavam a cerveja se fosse feito o pagamento que estava em falta. E lá ficaram até que ele acontecesse”, revela à NiT uma fonte ligada ao evento.

Nos meses de preparação da festa, os parceiros foram aliciados com a perspetiva de um cartaz com nomes fortes e que trariam milhares até ao Parque Tejo. “Havia uma expectativa de que pudessem estar presentes um mínimo de 45 mil pessoas por dia.” A festa foi preparada em consonância com essa ilusão. Por isso mesmo, foi montada uma praça com 20 food trucks, abriu-se espaço para as respetivas associações académicas e foi até instalado um sistema de pagamento cashless.

Para surpresa de quase todos os envolvidos, o segundo dia, domingo, 24, ficou marcado pelo cancelamento de última hora das atuações de Bispo e Papillon. A SAL não ofereceu qualquer justificação. Nas redes sociais, os artistas alegavam incumprimentos contratuais. Mas o pior anúncio — e o mais surpreendente — aconteceria na terça-feira, 26.

Em comunicado, a SAL anunciava, com 48 horas de antecedência, que os últimos três dias do evento seriam adiados para maio. “Na base desta decisão está a adesão do público verificada no último fim de semana e também a que estava prevista para os últimos dias do evento”, podia ler-se.

Sem números oficiais — a NiT tentou contactar o promotor do evento, sem sucesso —, ficam-se as estimativas dadas por quem esteve no local e que garante que o número de visitantes não ultrapassou os três a quatro mil no primeiro dia. O segundo terá sido ainda pior, num número que não deveria chegar sequer aos dois mil.

Os diversos intervenientes e parceiros iam recebendo as informações a conta-gotas, normalmente através de conhecidos e colegas a trabalhar no evento. Do lado do promotor, as respostas eram cada vez mais escassas. O cancelamento foi o momento em que se aperceberam de que “havia algo de muito errado a acontecer”.

À frente de todo o processo está a empresa Comitiva de Mordomias, que terá sido contratada pela Associação Académica de Lisboa para organizar o evento. “A Comitiva de Mordomias contratou serviços a toda a gente. Disseram-nos que os estudantes os tinham contratado para procederem à organização. Foi ali que percebemos que era mais um festival do que uma festa académica”, conta à NiT a GrupoPIE, a empresa responsável pelo sistema cashless do evento.

Em representação da empresa promotora estaria Nazir e Nafize Madatali, CEO e diretores da CapitalZone, uma consultora que se anuncia como “conhecedora do mercado nacional, espanhol e PALOP” e que oferece serviços ligados à internacionalização de empresas, vistos gold e acesso a financiamentos e incentivos financeiros. Os dois nomes que se repetem ao longo da última semana louca que envolveu a Semana Académica de Lisboa.

Artistas sem cachê

No primeiro dia de festa, todos os quatro artistas escalados subiram ao palco. O mesmo não se pode dizer do segundo dia, que deveria ter recebido as atuações de Bispo e Papillon, que acabariam por cancelar os espetáculos.

“No dia anterior, o Kamala fez o soundcheck mas disse que não atuava sem receber o pagamento”, revela uma fonte conhecedora do processo. O valor acabaria por ser pago, mas o salvamento de última hora não se repetiu no dia seguinte.

Os problemas surgiram meses antes, por altura do agendamento dos artistas. Foram feitos pedidos de redução do valor pago no momento da adjudicação — ao qual alguns artistas acederam —, mas nem assim os valores foram pagos atempadamente. Num dos casos, o valor inicial só foi pago dois meses depois, sabe a NiT.

Chegados ao dia dos espetáculos, os ânimos mantiveram-se serenos, apesar de os cachês ainda não terem sido pagos. “Nesta indústria é normal o prazo não ser cumprido. Muitas vezes os comprovativos são enviados no próprio dia”, refere à NiT outra fonte ligada ao agendamento dos artistas convidados.

Como seria de esperar, os atrasos na abertura de portas e o número reduzido de espectadores começou a gerar alguma inquietação. Alguns dos cachês dos artistas terão então começado a ser pagos diretamente através das contas pessoais dos promotores. “Sentimos que algo estava errado”, conta uma fonte à NiT. “Quando chegaram os ultimatos, vieram as desculpas.”

O promotor terá inclusivamente confirmado que “não tinha dinheiro” e que o “main sponsor tinha abandonado o projeto”. “Disseram que iam tentar arranjar um novo patrocinador, mas quem é que ia chegar-se à frente com cachês de um milhão e meio? Depois começaram a comprar tempo, até que deixaram de responder e de atender os telefones.”

Sem solução à vista, alguns artistas viram-se forçados a cancelar o espetáculo. Não terão recebido mais qualquer informação por parte do promotor, nem quanto ao cancelamento, nem quanto ao anúncio que acabaria por ser feito de forma independente. Agora, o caso deverá avançar para tribunal, já que os contratos prevêem que o valor seja pago na íntegra, por cancelamento fora do período admissível — e por inexistência de uma justa causa.

Food trucks sem respostas — e sem dinheiro

A confusão era generalizada no dia de arranque. “Só havia uma única pessoa a coordenar a montagem e instalação. Não é normal. Estava tudo sem controlo”, conta Thiago Santos, gerente do Las Pampenadas, uma das food trucks presentes no evento. “Devíamos ter começado a funcionar às 17 horas e só abriu às 21. Houve a confusão da Super Bock, que diziam que não entregavam a cerveja. E da organização ninguém nos disse nada.”

No dia seguinte, pelas oito da manhã, estava prevista uma vistoria à praça das food trucks que nunca aconteceu. Mais um presságio que indiciava o flop que se seguiria. “No primeiro dia tínhamos 300 empanadas. Foi tudo para o lixo”, recorda.

Em termos de vendas, foram “dois dias catastróficos”, confessa uma das pessoas ligadas ao evento. “Não aconteceu nada do que se esperava. Houve imenso desperdício e muito prejuízo.”

Mais uma vez, os dedos apontam-se aos promotores, sobretudo pela falta de transparência e falta de informação. “Não foram fornecidos quaisquer dados ou números atualizados da venda de bilhetes.” A última esperança residia nos “compradores de última hora”, mas o milagre não aconteceu. “Quiseram fazer um mega evento, com um mega cartaz, mas depois começaram todos a perceber que os artistas não tinham cachê. Havia imensas contas por pagar. Era tudo uma farsa.”

As respostas escasseavam e, como já ia acontecendo um pouco por todo o recinto, os telefones desligavam-se, nesse e nos dias que se seguiram. Com um sistema cashless em vigor, o dinheiro que as food trucks conseguiram fazer com os poucos visitantes nem sequer lhes passava pelas mãos. O pagamento, esse estava dependente de terceiros, que se “esquivavam a qualquer esclarecimento”.

Onde pára o dinheiro?

Uma das empresas contratadas pela Comitiva de Mordomias foi a Grupo PIE, especialistas nos sistemas cashless em grandes eventos. O sistema funcionaria de forma simples: os visitantes carregariam as pulseiras eletrónicas com dinheiro, que era então enviado para a conta da Grupo PIE; as compras eram registadas em cada food truck, numa informação que depois ficaria registada num relatório junto da empresa.

Esse dinheiro seria mais tarde enviado ao promotor do evento, em conjunto com o relatório das vendas, para que as receitas fossem devidamente distribuídas. Acontece que os valores nunca chegaram aos empresários responsáveis pelas food trucks.

Foi então que aconteceu algo inesperado. “O promotor pediu-nos para pagarmos a receita que iriam receber dos carregamentos de forma antecipada. Disseram que estavam a precisar. Estimaram 50 mil pessoas por dia e nós temos mais ou menos a ideia de quanto é que cada pessoa gasta em média por dia”, explica Isabel Esteves, responsável pela GrupoPIE. “Pagámos então antecipadamente o valor que as pessoas iriam carregar. Infelizmente, acreditamos neles. Nunca achámos que a venda de bilhetes não estaria de acordo com o esperado.”

O valor, garantem, está do lado do promotor, bem como toda a informação necessária para efetuar os pagamentos às food trucks. Documentos a que a NiT teve acesso revelam valores a rondar os 100 mil euros. O pagamento ainda não foi feito. O GrupoPIE também ainda não foi ressarcido pelos valores de contratação do seu serviço.

Novamente, a ausência de contactos e de respostas foi a regra. “Também nós fomos apanhados de surpresa pelo cancelamento. A partir do segundo dia (24) que nunca mais tivemos contacto com o promotor.

O primeiro passo para encontrar uma solução foi dado esta segunda-feira, 2 de outubro, numa reunião com o promotor. “Ficou esclarecido que é o promotor que tem que fazer o pagamento em falta às food trucks”, garante a representante do GrupoPIE, que ainda assim garante que há valores em dívida e que o caso será resolvido nos tribunais.

“Já explicámos que vamos avançar com um processo em tribunal”, garante. “Dizem que têm que pagar, mas que não sabem como o vão fazer, mas que será feito um plano de pagamentos, mas não foram avançadas quaisquer datas.”

A NiT tentou, sem sucesso, contactar diretamente os vários representantes da empresa promotora ao longo dos últimos dois dias.

ÚLTIMOS ARTIGOS DA NiT

AGENDA NiT