Chama-se Beatriz Pessoa e nos últimos anos temo-la ouvido em muitos lados, em diferentes sonoridades e contextos. Abriu para Jamie Cullum no EDP Cool Jazz, cantou um tema composto por Mallu Magalhães no Festival da Canção de 2018, colaborou com Cristina Branco, DJ Glue ou Teresinha Landeiro (quer enquanto intérprete, quer como compositora) e está prestes a lançar o seu primeiro álbum. Tem apenas 24 anos e é uma das finalistas da edição deste ano do concurso New Talent, organizado pela NiT, pela Media Capital Digital e pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que tem como objetivo premiar jovens talentos de várias áreas.
Beatriz Pessoa cresceu em Lisboa, num ambiente muito artístico. O pai é o encenador e dramaturgo Carlos J. Pessoa, que dirige a companhia Teatro da Garagem; a mãe é Paula Lopes Cardoso, designer responsável pelo gabinete gráfico do Centro Cultural de Belém (CCB).
Beatriz sempre se lembra de cantar em casa e de ser incentivada para apreciar e experimentar diversas artes. Pintava em casa, escrevia, ia a muitos espetáculos e passava tempo nos ensaios do pai, além de conviver com os amigos da família, muitos deles do meio artístico. Quando era miúda, recorda à NiT, imaginava-se a ser cabeleireira, veterinária, professora ou jornalista, mas também pensava em ser bailarina ou atriz. Não havia algo muito definido.
Em casa, conta que sempre se ouviu muita música de diferentes géneros. “Os meus pais têm ambos gostos muito ecléticos. Sempre vivi com a minha mãe, ela ouvia desde música clássica a pop não tão comercial, como Fiona Apple ou Jeff Buckley, depois também ouvia muito jazz, música instrumental, Frank Sinatra ou Ella Fitzgerald… a minha mãe é super eclética e tem um gosto musical que acho incrível. Quando era mesmo miúda gostava muito de ouvir as coisas que ela ouvia, e lembro-me que adorava um disco que havia lá em casa, com músicas do Vitorino e de vários compositores portugueses direcionados para a infância. Também gostava muito do ‘Fungagá da Bicharada’. E depois quando comecei a ser mais teen passei por uma fase altamente pop, dos dez aos 13 anos. Ouvia Beyoncé e Britney Spears e esses clássicos todos, que ainda são músicas que me influenciam e que ainda oiço, sou super fã da Beyoncé. E depois houve uma reviravolta quando comecei a estudar jazz, então diria que dos meus 14 aos 18 quase só ouvia jazz [risos]. Fui uma adolescente um bocadinho diferente. E lembro-me de isso ser uma questão, de ir sair com as minhas amigas e não fazer ideia do que estava a acontecer na discoteca porque eu só ouvia jazz.”
Num verão em que não tinha nada para fazer nem ninguém com quem ficar, a mãe, Paula Lopes Cardoso, decidiu inscrevê-la na Lisbon Jazz Summer School, escola de verão dedicada ao jazz e programada pelo CCB. Beatriz tinha 13 anos.
“Fui assim meio contrariada mas depois adorei aquilo, fiz amigos para a vida. O que foi uma atração gigante no jazz foi a questão criativa, dos solos e dessa liberdade musical, e depois acho que foram os intérpretes que descobri com o jazz, não posso deixar de mencionar o Chet Baker. Eu acho que o ‘Chet Baker Sings’ foi o disco que mais ouvi na vida. Eram nomes que já soavam em casa mas se calhar nunca me tinha debruçado tanto sobre eles. E tem muito a ver também com a questão das letras, porque sempre dei muito valor à escrita e à palavra. E eram letras que, se calhar até podem ser consideradas antiquadas, mas falam do amor de uma maneira muito mais poética. Acho que isso me atraiu na altura, comparando com as músicas pop e aquela vertente mais da sexualização da coisa, acho que me apelou o romantismo da canção.”
Um ano depois, começava a estudar no Hot Clube de Portugal. Foi lá que aprendeu a cantar (teve aulas com Joana Espadinha, por exemplo), a experimentar alguns instrumentos (nomeadamente, o piano) e a praticar em jam sessions, que depois se transpunham para outros locais ligados ao circuito do jazz, como o Café Tati, no Cais do Sodré. Os primeiros concertos que deu foram através da escola e foram essas atuações que a levaram a querer fazer da música a sua vida.
“Na verdade só considerei trabalhar na música profissionalmente quando comecei a fazer concertos através do Hot Clube. Eles tinham um programa muito giro em que havia empresas de eventos, hotéis, etc., que pagavam em material para a escola — amplificadores, pianos, fosse o que fosse — e em contrapartida os alunos iam dar concertos nesses sítios. E eu fui convidada várias vezes pela escola, comecei a tocar ao vivo, tinha uns 15 anos. Antes disso só tinha feito recitais nas escolas de música onde andava, não era uma coisa profissional, era para os pais. E ali sentia-me muito confortável e era um espaço seguro, apesar da adrenalina que era e do nervosismo de tocar para desconhecidos, e mesmo da preparação dos ensaios e de tudo ser mais profissional. Era um sítio onde me sentia muito bem e me sentia muito eu, onde sentia uma liberdade criativa gigante, lembro-me de ir beber um café com um amigo meu e dizer: eu acho que quero ser cantora. Foi aí que se fez o clique que era o que eu queria fazer e era o que me fazia feliz.”
Depois, quando chegou o momento de ir para a faculdade, decidiu ingressar na Escola Superior de Música de Lisboa, onde viria a ter a cantora Maria João como professora, que lhe abriu os horizontes, começando a ouvir outras coisas, e a descobrir a própria voz (num sentido literal e não só).
Em 2015, fez um Erasmus em Paris, a capital francesa, conhecida pela oferta cultural e pela ligação ao jazz. “Comecei mesmo a escrever e a querer ser compositora, a querer ter o meu projeto de música original, quando fiz o Erasmus em Paris. Foi a primeira vez que estava a morar sozinha, num país e numa cidade diferente, e acho que esse impulso de independência me deu imensa vontade para compor e então lembro-me muito bem de estar no quarto que lá tinha alugado e de um dia estar debruçada sobre o piano e a começar a escrever, fossem melodias, fossem poemas e decidir: é isto que quero fazer. Quando voltar para Lisboa quero formar uma banda e tocar as minhas coisas porque é isto que está a fazer sentido. E depois nunca deixou de fazer sentido.”
Compôs, compôs, e quando regressou a Lisboa reencontrou-se com pessoas como João Hasselberg (contrabaixo), João Lopes Pereira (bateria) e Margarida Campelo (teclas e voz) para formar uma banda que tocasse e desenvolvesse as suas canções, baseadas no universo do jazz mas já escapando por outras sonoridades mais pop. No ano seguinte, chegava o seu primeiro EP, “Insects”. Dois anos depois, era a vez de outro EP, “II”, cantado entre o inglês e o português.
Foi nesse mesmo ano que teve a oportunidade de ser a intérprete de “Eu Te Amo”, tema composto por um ícone da sua juventude, Mallu Magalhães, para a edição de 2018 do Festival da Canção. “O Festival da Canção foi um [momento marcante], não propriamente por ser o Festival da Canção, mas por ter tido oportunidade de trabalhar com uma cantora e compositora que admiro imenso, a Mallu Magalhães, que é uma influência. Oiço-a desde que tenho 13 ou 15 anos. Foi um marco nesse sentido, de ter sido uma parceria com uma cantora que eu admiro e que é uma influência para mim. Depois, outro grande momento [nesses anos] foi o concerto de abertura para o Jamie Cullum no EDP Cool Jazz. Não só por ser esse concerto, mas também por ser o primeiro grande festival onde toquei, com o maior número de público.”
No outono do ano passado, Beatriz Pessoa fez uma viagem que viria a mudar a sua carreira e vida artística. Já tinha composições feitas para aquele que seria o primeiro álbum e tirou uns meses para viajar. “Confesso que estava um bocado saturada de estar em Lisboa e tinha muita vontade de sair e ir viajar sozinha, que era algo que sempre quis fazer. Então fiz duas viagens. Nova Iorque porque é uma cidade que me fascina, já lá tinha estado no ano anterior, e é uma cidade com uma oferta cultural gigante, de todas as áreas, e é uma cidade muito jazzística e tinha vontade de me reeducar no jazz, que era uma coisa da qual tinha afastada há um ou dois anos, desde que tinha começado a compor. E o Rio de Janeiro era uma cidade que sempre me cativou, pela oferta cultural também, e fui para ficar lá um mês.”
A experiência no Rio de Janeiro, no Brasil, acabaria por ser fulcral para o disco que aí vem. “Quando cheguei lá, completamente sozinha, comecei a ir a todo o lado e a conhecer pessoas e a falar e as coisas foram acontecendo até que chegou a uma semana antes de ter o voo marcado. Não fazia sentido nenhum ir embora e cortar ali as pernas quando estava tudo a fluir, acabei por conhecer lá uma banda incrível, de músicos super talentosos que estavam muito interessados no meu trabalho e que queriam tocar comigo. Depois apareceu a oportunidade de gravar um disco durante um mês com um valor super fixe. Então é isso, as coisas vão acontecendo, depois arranjei lá vários concertos e comecei também a dar aulas lá e acabei por ficar lá cinco meses. Não foi nada planeado, foi tudo muito fluido e na minha opinião é a melhor maneira, quando não é planeado e acontece.”
Assim, o álbum foi inteiramente gravado no Brasil com esta banda de músicos locais, e as composições também foram afinadas e adaptadas — “Primaveras”, assim se chama o disco que irá sair em janeiro, tem uma estética próxima do Brasil e é um disco muito marcado pelas vivências de Beatriz Pessoa naquela cidade e ambiente. “E as próprias canções já tinham uma influência brasileira porque tem a ver com as coisas que eu oiço, e depois claro que tocar com músicos brasileiros e tudo deu um toque e uma sonoridade que é de lá. Acho que o disco está muito tocado pelo Brasil, tanto que há músicas em que canto com sotaque brasileiro.”
“Primaveras” é um título que a artista associa à ideia de mudança, de renascer, do “florir” das coisas. “Os textos e as composições falam muito de relações, sejam amorosas, de família ou entre amigos, que acabam e começam, e ver sempre esse lado mais difícil da vida de uma perspetiva positiva. Há aquela frase que é: o Natal é quando um homem quiser. E eu gosto de transformar para: a primavera é quando alguém quiser. É um bocado essa a minha ideia. Que as coisas podem renascer e que essa ideia de morte e de luto pode ser vista de uma forma sempre bonita, e com carinho, e de cuidado com alguém que amamos mas que já não está, ou que está, mas de uma maneira diferente. Acho que as primaveras são essas.”
Além disso, Beatriz Pessoa diz que sempre gostou visualmente de flores, da natureza, e desse tipo de elementos ligados à natureza. Atualmente, a cantora e compositora trabalha com a agência Fado in a Box (depois de já ter passado pela Arruada) e este álbum vai contar com a distribuição da Sony Music Portugal.
Em novembro, entre os dias 11 e 25, vai haver os Serões de Primavera — serão uma espécie de antecipação e pré-lançamento do álbum, com uma série de concertos e conversas que vão decorrer em Lisboa e Porto. As convidadas são Sara Tavares e Beatriz Gosta, no caso da capital portuguesa (no Teatro Maria Matos); e Clara Não e Lena d’Água, no Auditório CCOP, no Porto. Os bilhetes estão disponíveis online.
“A ideia é transferir essa ideia de mudança, de renovação de ideias, e vão ser quatro concertos-conversas todos com convidadas diferentes. Cada serão tem um tema e são temáticas que acho importante falarmos: uma primavera sobre o racismo em Portugal, uma primavera sobre a sexualidade sem tabus, uma primavera sobre o feminismo e uma primavera sobre a carreira da mulher artista. São temáticas com as quais me identifico e acho que é importante falar delas. Eu não vou entrevistar ninguém, mas queria dar espaço a pessoas que sabem mais do que eu sobre os assuntos e vou fazer concertos com os temas dos EP anteriores, alguns do disco e outros sobre a temática de cada serão, e depois há uma conversa com a convidada. Que é uma conversa descontraída mas com o objetivo de pôr as coisas em cima da mesa e de falar naturalmente sobre esses assuntos e aprender com pessoas que sabem mais.”
Antes da pandemia, o disco era para ter sido lançado em junho, e a ideia era tanto apresentá-lo e promovê-lo em Portugal como no Brasil. As atuações foram canceladas, mas Beatriz Pessoa quer lançar “Primaveras” no Brasil assim que seja possível. “Tenho muita vontade de voltar ao Rio, já tenho muitas saudades.”
A sua ideia era dividir-se entre temporadas em Portugal no Brasil, mas a situação agora é incerta. “Eu sou uma pessoa muito ligada aos amigos e à família e acho que nenhuma cidade para mim é como Lisboa. Mas o Rio de Janeiro foi a primeira cidade que me tocou nesse sentido e antes da Covid-19 a minha ideia talvez fosse organizar a minha vida para passar lá uma temporada e depois uma temporada cá. Agora com isto mudou tudo um bocadinho, portanto aprendi a não planear tanto o futuro. Por isso nem sequer consigo pensar se essa ideia das temporadas será uma realidade, o mundo está do avesso.”
Caso vença o concurso New Talent, pretende usar o prémio de 10 mil euros para fazer as cópias físicas do seu primeiro disco. “É uma coisa que tem grandes custos, até agora toda a produção do disco foi assegurada por mim, portanto seria para cobrir os custos do lançamento do disco, tem tudo um custo gigante e sem dar concertos ou haver venda de merchandise torna-se completamente impossível de cobrir. E depois quero investir em material para continuar a fazer as minhas produções aqui em casa. Investir num microfone bom, em material de estúdio que possa ter em casa para continuar a trabalhar na minha música.”
E na música de outras pessoas. Além de criar as próprias canções, Beatriz Pessoa tem trabalhado para outros artistas — escrevendo letras ou instrumentais. Alguns deles foram Cristina Branco, Teresinha Landeiro ou o espanhol José Carra.
“Isto agora com a Covid está tudo parado, é complicado, mas gosto muito de trabalhar com outros artistas. Gosto muito de escrever para mim e para os outros, também porque se calhar passei grande parte do meu crescimento académico a cantar coisas de outros compositores, então agora estou numa fase em que tenho mais vontade de ser eu a escrever. Mas isto dá muitas voltas e acho que a valência de ser compositora é muito importante, especialmente porque dá abertura a outros trabalhos, e enquanto freelancer e artista é sempre fixe ter outras valências, mas também estou disponível para ser só intérprete e cantar coisas de outros compositores e fazer parcerias. Tudo para mim é interessante e válido desde que eu goste da pessoa e do projeto em si.”