Música

Carminho: “Estou a aproximar-me cada vez mais da minha própria linguagem”

A fadista lança esta sexta-feira o seu novo álbum, “Portuguesa”, onde canta fados clássicos mas também canções originais.
Foto de Fernando Tomaz

Chegou o sexto álbum de Carminho. “Portuguesa” foi editado esta sexta-feira, 3 de março, e reúne fados tradicionais e canções originais. Ao todo, são 14 composições — algumas com letra e música sua, outras provenientes de outros autores, tanto clássicos como contemporâneos. 

Usa poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen, David Mourão-Ferreira ou Manuel Alegre, mas também música e versos de Marcelo Camelo, Luísa Sobral, Joana Espadinha e Rita Vian, entre outros. O trabalho abre com o single já conhecido, “O quarto (fado Pagem)”, em que Carminho pegou numa melodia do emblemático Alfredo Marceneiro para lhe acrescentar uma letra sua.

Em conversa com a NiT, a cantora de 38 anos destaca que é um disco focado na “prática do fado” — gravado com os seus músicos em simultâneo, tal como se se tratasse de um concerto registado ao vivo. Carminho procurou continuar a construir o seu repertório recorrendo aos ensinamentos dos antigos mas também a colaborações frescas com músicos do agora. Leia a entrevista sobre “Portuguesa”.

De que forma é que procurou abordar este disco quando o começou a construir? Foi logo com ideias pensadas ou ele acabou por se construir de forma mais orgânica, à medida que o processo criativo foi acontecendo?
É mais essa ideia da continuidade. Porque os discos vão-se seguindo uns aos outros de uma forma natural. O processo de procura de repertório, de crescimento enquanto artista, é muito orgânico e suave. Porque tudo isto assenta — e não excluo totalmente o disco do Tom Jobim desta regra — numa prática do fado. A minha raiz e a linguagem que recebi, por herança, e por ter tanta presença na minha infância e adolescência, com a minha mãe e tudo mais… É uma linguagem que vive da prática. Porque aprendemos a cantar nas casas de fado ou nas casas de amigos que cantam e tocam. Este disco foi, mais uma vez, praticar e abordar esta temática da busca da poesia portuguesa, da busca pelas melodias, de cada fado e a forma como cada um se pode encaixar ou não. Porque, como sabes, o fado tradicional tem esta particularidade interessante de ter as melodias e as letras de forma independente. 

É comum trocar o instrumental ou a letra.
Isso acontece no primeiro tema do disco, “O quarto (fado Pagem)”, que foi composto pelo [Alfredo] Marceneiro e no qual coloquei uma letra que escrevi. Essa conjugação é talvez a grande prova de que o fado é uma língua viva em constante mutação. Consegues juntar duas gerações, pessoas que nunca se conheceram, a partilhar a composição de um tema. Isso faz com que haja uma passagem de testemunho transversal ao tempo. E a prática passa por ouvir os antigos, perceber o que eles fizeram e tentar fazer uma ação crítica sobre o repertório. Não é preciso compor e escrever. Eu componho e escrevo alguns destes temas mas não acho que seja uma condição sine qua non para se construir o próprio repertório. Obviamente, o acesso a toda uma história do fado que está disponível aos artistas e faz parte da própria cultura revisitarmos e revermos o que já foi feito… Mas é importante haver uma atitude crítica. É como se dissessem: agora faz o teu repertório, faz o teu caminho, porque isso é que faz viver o fado. Foi essa “conversa” que tive com o Marceneiro, daí ele abrir o disco, também como uma homenagem à influência que ele teve em mim e no fado.

Para uma fadista como a Carminho, que tem bastante experiência, até pelo facto de ter crescido nesse ambiente — como estava a dizer, com essa herança —, ainda há muito para se descobrir quando se revisita essa história do fado e todos estes nomes que construíram o género?
Cada vez há mais. Porque quanto mais conheces, mais amas e mais te espantas com a riqueza das possibilidades do fado. É uma linguagem muito emocional que vive da performance ao vivo e isso pressupõe muita improvisação. Porque nunca estás da mesma forma, as palavras são sempre ditas de maneira diferente. Para dizeres as palavras com a intenção que elas merecem, tens que fazer pequenos improvisos àquilo que já existia e ao que já estava criado por outro artista. Só no facto de cantares várias vezes o mesmo fado, com os mesmos músicos e as mesmas palavras, e ele nunca ser o mesmo, já traz uma riqueza que não se consegue medir. Portanto, imagina o que são depois estas combinações entre novas palavras, com as melodias antigas… Mesmo sem sair do espetro mais tradicional, a linguagem do fado é muito rica, dinâmica e com muito potencial de pesquisa, exploração e interpretação. 

Sim, há inúmeras variações e camadas que se podem ir adicionando e diferenças que se podem identificar. Já explicou a questão da prática do fado e de como isso levou à construção do disco, mas agora que o disco está feito, como é que olha para ele face aos trabalhos anteriores? E porquê “Portuguesa” para o definir?
Face aos trabalhos anteriores não consigo ter uma relação muito justa, porque gosto sempre mais do último [risos]. E gosto deles todos por inteiro, é uma relação meio maternal. Cada um deles foi o meu melhor à data com aquilo que sabia, podia e com as condições que tive. E é um orgulho enorme ter feito esse tipo de compromisso e entrega em todos eles. Isso consigo sentir. Não há nenhum que me cause desgostos. Mas sem dúvida que me estou a aproximar cada vez mais da minha própria linguagem, daquilo que gosto de fazer e daquilo que é a minha identidade pessoal. Porque estou mais experiente, seja lá o que isso queira dizer, vou conhecendo mais pormenores sobre mim e vou sendo mais exigente nessa busca, e porque estou mais crítica em relação ao que apresento a mim mesma e às pessoas. Não é assim tão simples ter um rasgo de inspiração, ter uma letra e gravá-la. Aliás, quase todas ficam pelo caminho. Porque as canções também têm de vencer, mais do que o próprio autor.

Têm que valer por si próprias.
Claro, e nesse sentido também posso responder à segunda pergunta. É uma atitude bastante pessoal de olhar para a poesia, para a língua, para a identidade e a música portuguesa. Para a mulher portuguesa. Para mim mesma, que o sou. É uma atitude pessoal de olhar para essas particularidades que são, algumas delas, bastante próprias e únicas. E olhar para elas e ver como é que me coloco, onde é que me posiciono, que contributo é que quero dar à linguagem do fado… Quem é que eu sou na comunidade fadista? É uma pergunta. Não é que eu queira que os outros respondam a isso por mim. Essa resposta não virá… Ninguém muda o fado. O fado vai mudando e vai-se transformando. Claro que, com a prestação de cada um dos artistas, mas é numa atitude global de massas e de um só organismo que vai mudando. Porque tem muito de popular, de cultura enraizada nas comunidades que o praticam. Portanto há resistências que fazem com que ele tenha sempre uma forma bastante própria. Se eu quiser pôr mais braços e pernas ao fado, não o consigo… Porque há uma resistência bastante importante que o torna um ser individual.

Mas também há, como noutros géneros musicais e movimentos culturais, diversas correntes.
Claro. O fado está um bocadinho engavetado porque não tem assim muitos agentes, não tem muitos participantes… Apesar de sermos muitos, somos poucos em relação ao jazz, ao blues ou a outra identidade musical. Nesse sentido é uma gaveta onde todos cabem. Só que tem muitos compartimentos. E há correntes e escolas, como costumamos dizer. Basta pensar que a Amália, a Beatriz da Conceição e a Maria Teresa de Noronha são três escolas distintas. Pode-se ir beber a todas, mas há diferenças basilares na atitude, na escolha de repertório… E isso é muito rico.

Estava a falar desse diálogo com o Alfredo Marceneiro e o facto de ter ido buscar poemas aos grandes escritores portugueses, mas ao mesmo tempo trabalhou com músicos de agora, que escreveram e compuseram para este disco, como a Luísa Sobral, a Rita Vian, a Joana Espadinha, o Marcelo Camelo. Como foi trabalhar com pessoas tão diferentes, tendo em conta que vários deles não têm esta ligação direta ao fado?
Sabes que vejo o fado como um instrumento e uso-o para comunicar. Nesse sentido, não sinto necessidade de algumas vezes ter composições que não são do fado… Esses artistas não têm que ter a linguagem do fado para fazer composições. 

Tal como a Sophia de Mello Breyner não escreveu aquele poema para ser um fado.
Exatamente, as coisas transformam-se. E o universo do fado é bastante mais alargado do que os fados tradicionais. Vai até às marchas populares, às canções de revista, que o enriqueceram muito. Acho que são realmente as canções que vencem e o que aconteceu aqui foi, independentemente de eu admirar extraordinariamente todos eles, senti que estas canções me tocaram particularmente, num lugar até irracional e intuitivo. Muitas delas pela própria palavra, a forma como todos eles abordam a língua portuguesa. São formas bastante distintas mas muito particulares de escrever o português e de dizer o que sentem nesta nossa língua. Foi realmente fantástico receber estes temas. Houve muitas hesitações, porque até existiam mais temas gravados que depois não entraram, e essa luta entre que temas é que vão ganhar… Foi sempre muito vivido pela minha relação íntima com cada um deles. Com cada fado e não necessariamente com o artista. Algumas das canções vinham prontas, completamente fechadas… O Marcelo é um compositor superior, que ultrapassa as barreiras daquilo que é a sua terra-natal, ele é muito intuitivo e generoso. E aquela canção tornou-se quase um fado, uma coisa mestiça entre Portugal e Brasil, uma união muito transatlântica que me fez unir ainda mais ao Brasil e sentir que estava a cantar um fado. Foi uma experiência quase metafísica bastante marcante.

E no caso dos outros compositores?
A Luísa Sobral é uma escritora de canções nata, parece que nasceu e começou a saber fazer canções mesmo antes de saber falar [risos]. E isso é muito giro porque soam sempre a Luísa e é um elogio que lhe faço, sinto que tem uma identidade mesmo numa linguagem mais alargada. A Joana, com quem já tenho trabalhado muito porque fazemos muitos encontros, trabalhamos as canções e as palavras… E a Rita Vian é mais nova, mais recente, fez um EP extraordinário de estreia. Não foi indiferente a ninguém. Ela tem uma força, na dicção, na composição e na escrita, sobretudo, que é desconcertante. Então desafiei-a a fazer uma canção. Ela talvez viesse com mais uma parte, mas ainda vinha escrever, mas às tantas dissemos: já está boa, é perfeita assim, não precisamos do equilíbrio total de uma canção standard, já dissemos o que havia para dizer. Ficou muito curtinha, era para ser com piano, depois tirámos durante o processo do arranjo de vozes… Foi uma das gravações mais desafiantes do disco todo. Apesar de ter gravado com os músicos, ao vivo, numa sala comum — e nessa vertigem que é gravar em simultâneo e ter de ficar com um take inteiro…

É a tal questão da prática e da performance.
Exatamente, e que assume também as pequenas texturas da falha, as pequenas hesitações… Mas também te deparas com silêncios que nunca acontecem quando estás em estúdio isolado, porque quando há um silêncio vais preenchê-lo [risos]. Essa vertigem também causa emoção. Com a Rita foi assim, mas somos duas vozes. Tivemos de fixar bem cada uma das partes que iríamos cantar, tivemos que conjugar isso tudo numa atitude de canto que permitisse que a harmonia ficasse salvaguardada, porque não tínhamos instrumento… E que também houvesse aquela química entre as vozes que, quando se fundem, sente-se assim uma perfeição do coro. E isso obriga-nos a uma atitude de retração da nossa própria performance, para que o outro também fique confortável. Num coro nenhuma voz é mais importante do que outra e todas são uma voz.

São cedências para se atingir um resultado final.
E essa atitude também foi muito simbólica nesta gravação. Foi muito importante por isso mesmo. Tem essa atitude de generosidade e humildade de parte a parte, mas sobretudo dela. Numa canção tens a tendência para equilibrar, separar as partes, dividir bem o poema para que cada um tenha a sua prestação. E ao ouvir o “Simplesmente Ser” percebes a atitude de humildade e generosidade de uma mulher em relação a outra, numa performance que é das duas mas naquele desequilíbrio se torna perfeito.

E suponho que também seja graças à riqueza destas colaborações que não sinta vontade ou necessidade de ter, como o Alfredo Marceneiro, tanta autoria sua em todo o processo.
Exatamente. Não sinto necessidade de ter de ser eu a escrever ou a compor os fados que canto, porque de repente sou posta diante de “As Fontes”, da Sophia de Mello Breyner, e tudo cai por terra. Quando existe poesia, ela supera tudo. E diz aquilo que sentimos de uma maneira muito mais perfeita e acertada do que nós mesmos — sou eu a falar sobre mim, mas é no que acredito. Contudo, esta colaboração também é importante para o trabalho. Colaborar, desafiar, olhares renovados também trazem novas perspetivas… O que sinto é que, e o disco trata isso, é que é na constante prática e que ao não desistires de praticar, no meio disso surge uma fenda, uma brecha que pode ser dada à experimentação. E pode ser esse o lugar para fazer algumas experiências e tentativas que não têm pretensão nenhuma de mudança do género, mas que têm uma pretensão enorme de contribuírem para a minha própria felicidade. É nessa ideia de sentir que a linguagem do fado é o meu instrumento de comunicação… Sinto-me livre e totalmente disponível a fazê-lo. Mas faço-o com uma atitude de dentro da prática do fado. É esse o prazer maior. Nesses limites que me são impostos pela linguagem, quase como se fosse um jogo em que tivesses regras rigorosas e isso ainda te desse mais prazer em jogar, porque essas regras te desafiam e colocam-te uma exigência e impõem-te uma crítica sobre aquilo que vais escolher e fazer. Não te podes esquecer nunca dos que lá estiveram, o que é que eles fizeram, procurar na história algumas respostas… E fazer esta dança da prática do fado. A Amália foi super criticada com as canções do Alain Oulman, hoje em dia são clássicos.

É a tal questão da língua viva.
É uma língua viva e tem de ter o seu tempo de maturação. A única coisa que sinto é que todos eles foram realmente sérios nas escolhas e na forma como foram críticos àquilo que traziam para jogar. E essa seriedade, exigência e essa crítica de olhar para a coisa com respeito… É uma condição para me sentir realizada, orgulhosa e com que consigo defender aquilo que apresento.

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