Tudo aconteceu em novembro de 2018. Filipa Faria, uma das concorrentes da edição da altura de “The Voice Portugal”, concurso musical da RTP1, começou a sentir aquilo que parecia ser um ataque cardíaco. “Os meus olhos estavam demasiado abertos, as pálpebras estavam completamente coladas para cima, sentia que me estavam a tirar o coração para fora… Não consegui dormir, não consegui comer nesses dois dias, perdi quatro quilos”, explica à NiT.
Tratava-se, na verdade, de um forte ataque de ansiedade. A experiência foi determinante e levou a que, algumas semanas depois, Filipa Faria escrevesse a sua primeira letra. O resultado chega dois anos e meio depois: é a nova música da banda Times of Trouble (da qual Filipa é vocalista e letrista), “Change”, que foi apresentada ao público a 9 de maio.
Natural de Braga, Filipa Faria, que hoje tem 31 anos, sempre viu na música a sua maior paixão. No “The Voice Portugal”, não teve uma participação muito duradoura. Na prova cega apresentou o tema “You and I”, de Lady Gaga, que a levou a ficar na equipa de Anselmo Ralph. E na primeira batalha defrontou aquela que viria a ser uma das finalistas, Vânia Dilac. Filipa Faria ficou pelo caminho, após interpretar “(You Make Me Feel Like) A Natural Woman”, canção popularizada por Aretha Franklin.
Na altura, a bracarense equilibrava a música com o trabalho que tinha no talho da família. O talho era da mãe, mas, depois de ser diagnosticada com artrite reumatóide, Filipa assumiu o controlo do negócio durante três anos. Não era aquilo que a fazia feliz, mas era uma maior fonte de rendimento do que os trabalhos de marketing que fazia antes. Foi precisamente por estar insatisfeita com a vida profissional que começou a ter aulas de canto e, depois, decidiu inscrever-se em “The Voice Portugal”, onde já se apresentou como alguém que queria mudar de vida.
Dois dias antes da batalha, aconteceu o inesperado ataque de ansiedade. “O público, quando vê, aquilo parece tudo no mesmo dia, mas é gravado em dois momentos diferentes. O primeiro dia é o guarda-roupa e depois filmamos aquilo que é uma entrada quase de combate, etc., e depois a batalha é gravada noutro dia. E foi mais ou menos a meio e no fim do primeiro dia de gravações que me comecei a sentir mal. Fiz as gravações todas e, no fim, deviam ser umas duas da manhã e já não estava mesmo nada bem.”
Pensava, lá está, que estava a ter um ataque cardíaco. “Porque eu nunca tinha tido ansiedade nem depressão nem nunca me tinha acontecido nada do género… Curiosamente, um colega concorrente que estava no mesmo apartamento do que eu sofre de ansiedade regular, e ele é que me disse: tu estás a ter um ataque de ansiedade.”
Ligaram para o SNS24, Filipa explicou os sintomas que tinha a uma enfermeira e recebeu de imediato a recomendação para se dirigir às urgências de um hospital. “Esse meu colega acompanhou-me… e, atenção, ele conheceu-me nesses dias, nem me conhecia antes de lado nenhum, mas percebeu realmente que podia ser um ataque de ansiedade e como ele estava mais familiarizado e é um coração doce levou-me às urgências e confirmou-se que era um ataque de ansiedade. Queriam passar-me antidepressivos, mas na altura recusei… Mas de manhã cedo fui à farmácia, a chorar, porque estava mesmo desesperada, a pedir que me dessem qualquer coisa que me ajudasse a acalmar.”
Curiosamente, no dia a seguir, o da batalha, já se estava a sentir bem. “Quando fiz a batalha, já não estava com ataque nenhum.” Olhando em retrospetiva, Filipa diz que o que a levou a desenvolver o ataque terá sido a vida agitada com que estava a lidar durante aquelas semanas.
“Na altura tinha o meu negócio e estava a equilibrar com a minha participação no programa. O que fazia é que, nos dias em que tinha de ir a Lisboa gravar, a minha funcionária não fazia folgas e, eu mal viesse para cima, mandava-a de folga. E era um talho que estava aberto todos os dias da semana, domingos inclusive, das oito da manhã às oito da noite. Acho que foi um aglomerar de situações em que eu vinha para Braga e estava sempre a trabalhar. Depois ia para baixo, para Lisboa gravar, e nem tinha dias de descanso. Isso tudo, com algum nervosismo de gravar a batalha, acho que foi isso que fez com que acontecesse. O que é curioso, porque eu sabia, tinha 100 por cento de certeza, que não ia passar. Porque não há comparação entre mim e a Vânia, tinha a certeza absoluta de que ela ia passar.”
E acrescenta: “Mas sempre fui muito positiva e achava que as pessoas que tinham ansiedade e depressão eram pessoas que também se deixavam cair… era ignorância minha mesmo, achava que era algo controlável. E nunca achei que me acontecesse, e agora tenho um respeito totalmente diferente por pessoas que passam por isto”.
Filipa Faria, que nunca mais teve um ataque de ansiedade, fechou o talho em dezembro de 2018, depois do incidente. Em janeiro, começou a escrever a sua primeira letra, influenciada pelo ataque e centrada na ansiedade, na depressão e noutros temas relacionados.
“Foi a primeira música de sempre que escrevi. Foi libertador, eu nunca tinha escrito, nunca me tinha dedicado a isso. Em dezembro fechei o talho e já tinha mais tempo para me dedicar àquilo de que gosto, a música. Foi quase um atirar tudo para trás.”
Os Times of Trouble — que também são compostos por Vítor Azevedo, Marco Silva, Nelson Silva e Nuno Veloso — já tinham contactado Filipa Faria, após terem visto a sua batalha em “The Voice Portugal”. Os músicos eram da zona de Santo Tirso, Vila Nova de Famalicão e do Porto.
“Já andavam à procura de uma vocalista há muito tempo, tinham feito alguns castings mas não tinham corrido bem. Eu agradeci muito, mas disse que trabalhava todos os dias da semana, não tinha tempo. Entretanto fechei o talho, mas curiosamente nunca mais me lembrei deles. Depois voltaram a contactar-me, em fevereiro ou março, e reuni com eles e gostei muito da vibe, e começámos a trabalhar.”
Filipa Faria escreveu mais letras, que deram origem a outras canções do grupo. Entretanto foram trabalhando na música que servisse esta letra — e só agora a lançaram.
“Neste momento achei que seria apropriado lançá-la, porque estamos a passar uma fase com que nunca ninguém sonhou, e há muita gente a ter esses problemas, de ansiedade e depressão. Porque estamos muito tempo em casa fechados. E agora podemos sair de casa, mas há sempre medo de se sair em exagero, etc.”
A cantora descreve o processo como “terapêutico”. “Agora, tenho muito medo de me dar algo do género novamente. Estou muito mais sensível para pessoas que têm esse tipo de problemas, porque, efetivamente, é algo que não há maneira de contornar, é impossível. Por muito positiva e otimista que seja, é impossível. E a música foi mesmo uma maneira de deitar cá para fora tudo o que na altura sentia. E trabalhar sobre ela foi mesmo libertador, muito bom.”
Neste momento, a banda está a trabalhar em novas músicas, que pretendem lançar de forma espaçada. “Estamos a trabalhar em várias músicas, mas nós não somos conhecidos, não somos ninguém. Então não faz muito sentido lançar um álbum ou um EP porque ninguém vai ligar a isso [risos]. Faz mais sentido irmos lançando singles e agora queremos é ter trabalho, arranjar concertos, em que sítio for, queremos é tocar. Mesmo para perceber como funcionamos como banda em palco. Porque nós já ensaiamos há dois anos mas não sabemos como somos em palco, porque em 2019 estivemos a trabalhar nas músicas, em 2020 tínhamos concertos marcados e em março houve o confinamento e foi tudo cancelado. E, pronto, agora vamos apontando para as estrelas, mas devagarinho.”
Desde que fechou o talho, Filipa voltou a trabalhar na área do marketing e do design gráfico como freelancer. Além disso, foi mãe em novembro do ano passado. Olhando para trás, diz que participar no programa foi uma das “melhores experiências” que já teve, mesmo apesar daquele incidente.
“Teve a ver com o programa, mas não teve. Teve a ver com estas deslocações todas e a minha gestão de tempo e capacidade física de fazer tudo. O programa foi espetacular, foi muito giro, guardo vários amigos dessa edição.”
Um deles, claro, é David Dias, da banda We Find You, que foi o colega que foi com Filipa ao hospital e que já tinha sofrido de problemas de ansiedade. Estava na equipa de Marisa Liz e já colaborou com Bárbara Tinoco numa canção.
Se Filipa Faria voltava ao “The Voice”? “Voltava. Se calhar não agora [risos], mas daqui a uns aninhos. Pela experiência em si, valeu a pena. Mais que não seja, porque conheci o outro lado, atrás das câmaras. Convivi com músicos, não só os mentores, mas mesmo os que estão em palco e que são fenomenais. E a minha auto-estima… eu saí de lá muito mais confiante, apesar de ter perdido. Senti-me super poderosa a cantar na batalha, sabendo que ia sair, mas eu não queria saber [risos]. Adorei a experiência.”