Entre março e abril deste ano, Dino D’Santiago fechou-se numa casa em Sintra, rodeou-se de amigos músicos e construiu o seu novo álbum. Chama-se “Badiu” e foi lançado esta sexta-feira, 26 de novembro. Na visão do artista natural de Quarteira, é o último capítulo de uma trilogia que começou com o disco “Mundu Nôbu” e que continuou com “Kriola”.
Nos últimos anos, e desde o lançamento de “Mundu Nôbu”, em 2018, Dino D’Santiago iniciou uma nova fase do seu percurso. Pegou na tradição da música cabo-verdiana e fundiu-a com as sonoridades eletrónicas globais, profetizou uma “Nova Lisboa” e tornou-se um ícone cada vez mais internacional.
À NiT, explica que produziu o seu novo trabalho naquele período da primavera porque tinha sido pai há dois meses — era uma altura em que tinha mais algum tempo para se dedicar à composição, um contraste com todos os meses que se seguiram.
“Foi mesmo uma decisão de família. Alugámos uma casa, ficámos quatro semanas, com produtores, amigos, escritores, criativos que foram chegando e acrescentando à narrativa. E foi mesmo estilo: vamos ser livres, sem preconceitos, só criar. Se sair um disco, um EP, um filme, o que quer que seja, vamos respeitar”, explica Dino D’Santiago à NiT.
Tristany, Slow J, Toty Sa’Med, Charlie Beats, Nayela, Kalaf, Sir Scratch, Loreta KBA, Nosa Apollo, Djodje Almeida e Kady foram alguns dos muitos músicos que passaram por ali. No total resultaram 37 canções, mas Dino D’Santiago selecionou apenas 12 — que considerava que edificavam melhor o conceito do álbum.
O músico quis honrar a origem da família, os “badius” da ilha de Santiago, em Cabo Verde. Eram pessoas escravizadas pelos portugueses que tinham vindo da atual Gâmbia, Senegal ou Guiné-Bissau. Em Cabo Verde, muitos deles refugiaram-se nas montanhas no interior da ilha e foram sempre vistos como marginais. Foram apelidados de “badius” — “vadios”, em português com sotaque do norte — pelos colonizadores. Ao longo do século XX reconciliaram-se com a palavra e passaram a usá-la, assumindo-a como um símbolo de resistência.
“A história foi trágica e agora estamos à procura de um final feliz. Mas não nos deram um início. E esse resgate do princípio, aquelas pessoas que os portugueses tiraram do continente africano, foram retiradas das suas famílias, foram escravizadas — e elas tinham sonhos. No fundo, este ‘Badiu’ é honrar esses sonhos. Tem todo um simbolismo e uma carga histórica. Vamos precisar de muitos anos para trabalhar sobre ele em vários debates.”
Esse olhar sobre o legado está presente ao longo do disco. Dos três projetos, é aquele em que se sente mais a angústia e dor dos povos escravizados e respetivos herdeiros. Mas também há uma grande solidariedade. Dino canta sobre a misoginia e homofobia que observa na sociedade. Esta mensagem tanto está refletida nas letras como nos instrumentais.
“O batuque e o funaná foram censurados por mais de 400 anos e perceber que hoje viajo pelo mundo a interpretar esses ritmos, com salas esgotadíssimas para receberem e dançarem ao som desses ritmos, que um dia foram considerados demoníacos… Ou todos nós somos demónios hoje [risos], ou então essas crenças estavam muito erradas — e ficaram escritas. Há relatórios da corte portuguesa e do Estado Novo, de proibição severa, com punições gravíssimas, com castigos, prisões, mortes, enfim. Tudo porque as práticas destes ritmos aproximavam a essência africana dos ocidentais. Este disco é um grito. Não do Ipiranga como os brasileiros deram na sua independência, mas um grito crioulo de quem acredita numa nação crioula e regeneradora.”
Além de cantar sobre as dores dos antepassados, evocou, por exemplo, a perda recente da avó — que participa no álbum, no tema “Txuputi” — para canalizar essa raiva para a criatividade. “Essa angústia e dor também serviram como veículos de força. Conseguir canalizar e transformar isso em canções, sem nenhum complexo de inferioridade em relação ao que é que vão pensar, de falar sobre os meus problemas. É para desconstruir e mostrar que todos temos direito a todo o tipo de emoções. Todos temos o direito de errar várias vezes até acertarmos, o número de vezes que forem precisas. E sentir-me vulnerável nessa caminhada tem sido o meu símbolo de força e quero materializar isso cada vez mais.”
“Badiu” é ainda, por outro lado, a prolongação temática das três faixas que saíram com a edição em vinil de “Kriola”. “Essas três faixas já tinham uma narrativa minha interna, um processo muito pessoal, que transportei para a construção do ‘Badiu’. Alguém que se liberta das suas amarras, religiosas, de projeções sociais que as pessoas tinham sobre mim e decidi, de uma vez por todas, investir num processo terapêutico e de saúde mental com acompanhamento psicólogo semanal, para resgatar aquela que era a minha essência e não o reflexo do que as pessoas esperavam de mim. Aquilo estava a causar-me ansiedade. E este disco é muito intenso por isso.”
Quanto à trilogia, Dino D’Santiago olha para “Badiu” como o hastear de uma bandeira — para depois a conseguir repousar e permitir-se ser livre, sem pesos nas costas e sem uma herança que tenha de carregar constantemente.
“Como me sinto em constante mutação e absorção do que me rodeia, o mundo está sempre a transformar-se. Não sei quem vou ser amanhã. Daí nunca me querer prender a uma fórmula. Quero estar em constante diálogo com o que me rodeia. Sinto que fechei aqui um ciclo porque o ‘Mundu Nôbu’ abre toda uma narrativa, um caminho, uma busca e um resgate das nossas matrizes rítmicas, e quis trabalhá-las usando a contemporaneidade. O ‘Kriola’ já é a emancipação dessa nação crioula fruto da mistura, onde brancos e pretos formamos uma geração de ouro e sentimos orgulho nisso. Acredito nessa Lisboa crioula como um epicentro de toda uma nova narrativa para a humanidade.”
E acrescenta: “No ‘Badiu’, em que já conseguimos confirmar que juntos somos bem melhores, vamos olhar para a história. O nosso sucesso não pode fazer com que se esqueça o sangue derramado daqueles que sonharam primeiro do que nós. Mas foi-lhes proibido, as suas vidas foram-lhes retiradas. Os navios corsários que tentaram invadir a cidade velha foram para o fundo dos oceanos, depois de abatidos, cheios de pessoas escravizadas, como se fossem mercadorias. E quando as pessoas pensam numa caça ao tesouro, é para ir buscar o ouro. Não pensam no resgate àquelas almas que ficaram no fundo do oceano. Quero fechar esse ciclo de ter que estar sempre a resgatar as minhas raízes para me focar em ser somente o Dino D’Santiago e viver o privilégio de ser somente eu. Nessa liberdade de só ser, não ter de carregar mais prefixos e sufixos da minha história. Este álbum é fazer o meu luto para seguir o meu caminho.”
Quanto a todas as canções que sobraram e não conseguiram entrar no alinhamento do álbum, Dino D’Santiago diz que os fãs provavelmente vão poder ouvi-las no futuro. “Há temas que ficaram de fora que acho que são mais fortes do que alguns que estão neste disco, só que não estavam a contar a jornada do ‘Badiu’. E tinha de honrar o propósito. Houve uma canção que ofereci à Lura, vai ser o novo single dela, e há outros em que já vi ali um novo caminho. Wow, isto é o futuro. Senti mesmo ali uma cena orgânica, uma cena punk, forte, e elevar esses ritmos — do funaná e batuque — com essa característica, senti uma força gigante.”
O músico vai apresentar “Badiu” a 2 de abril no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Os bilhetes estão à venda por 20€.