Passou toda a infância e juventude em Portugal, onde começou a escrever as primeiras letras e a fazer improvisos de rimas entre amigos, mas só quando se mudou para Angola, por volta de 2011, é que Eva Rapdiva conseguiu construir uma carreira profissional na música.
Lançou em 2014 o álbum de estreia, “Rainha Ginga do Rap”, a que deu seguimento com “Eva”, em 2017 — que referencia não só o próprio nome, mas o da avó, cujo nome herdou. Eva Rapdiva tornou-se uma artista enorme em Angola, onde atua muito regularmente, desde festivais de estádio a discotecas. Conquistou vários prémios e ganhou fãs dedicados.
Em Portugal, nunca teve o mesmo reconhecimento — e aborda isso numa conversa que teve com a NiT este sábado, 25 de junho, nos bastidores do Palco Yorn, do Rock in Rio Lisboa. O concerto da rapper estava integrado na programação com curadoria da associação Chelas é o Sítio, do qual Sam The Kid é um dos membros fundadores. Leia a entrevista.
Como foi o concerto para si?
Foi bom. Estava um bocado insegura, confesso, porque venho de muitos concertos, no fim de semana passado fiz seis em Angola e têm esgotado, mas é num outro país, outra realidade. Então estava preocupada porque sei que o festival tem muitos palcos, muita oferta, e fiquei naquela de “será que o pessoal vem para ver?” Mas veio para ver, foi uma coisa interessante, bonita e intensa. Gostei muito.
É sempre um desafio porque se trata de um palco que fica a meio caminho entre várias coisas.
Exatamente, é tipo um palco de passagem. Então temos que fazer com que as pessoas parem um bocado e façam uma pausa a ouvir-me. Algumas pessoas pararam e foi bom.
Mudou alguma coisa no concerto por causa disso?
Mudei muita coisa. Normalmente aproveito os concertos que sei que vou ter público que não conhece o meu trabalho para cantar músicas que nos concertos onde as pessoas conhecem o meu trabalho não são as que tocam mais. No meu alinhamento em Angola, por exemplo, pus várias músicas que não toquei aqui hoje, e vice-versa. Então aproveito estes concertos para apresentar aquelas músicas de que gosto muito mas, porque não são singles nem têm videoclips e tudo mais, ficam ali no meio do álbum e muita gente não as conhece. Então aproveito esses momentos para mim, porque são aquelas músicas de que gosto mais.
Sei que cresceu em Portugal e eventualmente mudou-se para Angola, onde construiu uma carreira na música. É lá, sobretudo, que dá concertos e onde faz vida. Isso tem a ver com haver um circuito muito maior de espetáculos, ou está mais presente em Angola por outras circunstâncias da vida?
Gostava muito de ter uma carreira em Portugal igual à que tenho em Angola. Mas sinto que em Portugal existem barreiras que não existem em Angola. Por exemplo, eu sou portuguesa, alfacinha de gema, mas cá sou tida como rapper angolana. Não sei porquê, visto que na minha biografia diz que sou portuguesa. Essa é uma barreira que tenho cá. Depois, ainda acredito que na música portuguesa falte espaço para mulheres, de um modo geral. No hip hop, então, pior ainda. Sendo mulher, acho que também é uma barreira.
Essa barreira existe mais em Portugal do que em Angola?
Por incrível que pareça, porque Portugal é um país que no que toca à questão da igualdade de género está mais avançado do que Angola, no mercado musical temos mais espaço para mulheres em Angola. No mercado musical, a questão da igualdade de género está mais deficitária em Portugal. Isso também é uma coisa que faz com que tenha mais facilidade em Angola. Mas também não estou insatisfeita com isso: ser uma grande artista num país é muito bom e sou uma grande artista em Angola. Dizem que sou a maior rapper de Angola, dizem que sou a maior rapper do continente africano, estou muito satisfeita com isso. Mas gostava de ter mais espaço em Portugal porque é um país com o qual me identifico, desde o hino nacional à cultura e sociedade. Mas infelizmente isso ainda não aconteceu, quem sabe um dia.
Hoje em dia vem a Portugal sobretudo por questões de trabalho, quando tem concertos, por exemplo?
Não, na verdade vivo em Portugal e vou todos os fins de semana para Angola para fazer concertos. Estou também a dar continuidade aos meus estudos, na área da Ciência Política, e tenho que estar aqui para ir à faculdade. Vou para Angola na quinta-feira à noite, volto todos os domingos à noite e segunda-feira de manhã chego a Lisboa e vou direta para a faculdade. É essa a rotina que estou a fazer. É muito puxado, quatro dias em Portugal e três em Angola todas as semanas — menos este fim de semana que estou no Rock in Rio. Mas a gente aguenta e gosto, acho que é da forma que sou mais feliz. Porque sou mesmo muito angolana e muito portuguesa.
Os estudos em Ciência Política é por ser uma área em que se vê eventualmente a trabalhar? Porque é que decidiu investir nesta área neste momento?
Porque, em Angola, sempre me meti muito na política através da minha música e dos meus posicionamentos em entrevistas e nas redes sociais. Já tive muitos problemas. Já fui censurada, enfim, já aconteceu muita coisa. Até hoje sou censurada num canal de televisão, a ZAP, e fui censurada em muitos outros órgãos por causa das coisas que disse e defendi. Mas depois percebi que precisava de fazer um trabalho mais a fundo. E foi por isso que decidi estudar Ciência Política, para entender como é que através da política poderia fazer mais pelo país. Porque às vezes estamos a dar opiniões, mas não temos a noção do que realmente acontece na política — não só angolana, mas global. É isso que estou a buscar para que no futuro, talvez através de organizações internacionais, nacionais, estatais ou independentes, possa, através do ativismo político, consciencializar mais as pessoas e os próprios políticos, mas já com o conhecimento na matéria, para que o país possa melhorar. Foi por isso que decidi estudar — para poder estar mais preparada para defender as causas que tenho estado a defender.
Sente que esse aprofundamento do conhecimento também se vai refletir na sua música?
Acredito que sim. Não foi por causa da música, porque gosto que seja uma cena mais orgânica — aquilo que tu vives é o que estás a fazer. Acho que o rap é um estilo musical para um analfabeto, para uma pessoa letrada, para uma pessoa comum. Não é preciso ninguém ir estudar para fazer rap. Acho que o rap, acima de tudo, é um estilo musical de vivências e de as espelhar no rap. Mas acho que a academia acaba por ajudar sempre — o conhecimento ajuda-nos sempre em tudo o que a gente faz. Desde que acordamos até que vamos dormir, se tivermos conhecimento e estivermos lúcidos sobre o que acontece no mundo, acredito que podemos ser melhores em tudo o que fazemos.
E a Eva tem músicas sobre muitos temas, não só de intervenção política.
Exatamente. Canto muito sobre amor, se fores ouvir o meu último álbum, em 12 ou 13 músicas seis são sobre amor. Mas as pessoas nem têm essa noção às vezes.
Ou seja, é conotada com o ativismo político na música, também por causa da realidade angolana?
Sinto que sou muito conotada com isso, mas sou muito mais do que isso. Mas também sou isso e não me importo que me associem a isso. Há uma luta que temos de fazer e essa é uma luta que não tenho vergonha de abraçar. Pelo contrário, sinto-me muito orgulhosa com tudo o que já fiz em relação a isso.
Por isso é que também está a estudar para aprofundar o conhecimento nessa área.
Exatamente.
Está a trabalhar num novo álbum neste momento, ou ainda não?
Estou a trabalhar numa nova obra discográfica, sim, e vou lançar quando der. Estamos na era dos singles, não é? E é muito ingrato lançar álbuns porque as pessoas não ouvem álbuns. Ouvem singles e fica por aí. Se calhar, para fazer com que as pessoas oiçam as músicas todas, vou começar a lançar uma por uma, não sei, estou a pensar nisso. Não sou uma pessoa que tenha muita estratégia na forma como lanço as minhas coisas. Gosto de tudo muito orgânico, para mim a arte tem de ser uma coisa fluida, então estou a trabalhar num projeto discográfico, mas o formato em que ele vai sair, ou como é que ele vai sair, isso ainda não sei como vou fazer…
Sei que se deu a conhecer no movimento do rap em Portugal por volta de 2006, quando um freestyle seu na casa de Sam The Kid foi parar à Internet. Tantos anos depois, a Eva acaba de atuar num palco com curadoria do Sam The Kid e da associação Chelas é o Sítio. Como é que olha para isso?
Para mim é especial. O Sam The Kid é uma pessoa que admiro muito. Acho que é um dos expoentes máximos da música portuguesa — não só do rap. É um grande compositor, poeta, liricista, e ele abriu muitas portas para todos nós. Perceber que ele, além do que é na música, estar empenhado em fazer um projeto como a Chelas é o Sítio, e em fazer com que nós possamos ganhar espaço… Nós do hip hop, nós do bairro, nós da periferia. Para estarem em espaços como este que é o Rock in Rio. Que antigamente eram vedados a pessoas como nós. Acho que isso é brutal, revolucionário e é fazer história. É torná-lo ainda mais lenda do que aquilo que ele já é, com aquilo que faz na música, e sinto-me orgulhosa por ver o percurso dele. Sinto-me inspirada e honrada por poder estar aqui hoje, a celebrar este feito que é termos um palco Chelas é o Sítio, aqui a representar Chelas e não só, todos aqueles que precisam de ter uma voz, um espaço, um lugar de fala, e estão a ter através deste palco.
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