“Não é um disco country. É pior do que isso”, atirou selvaticamente o crítico do “The Washington Post”, após várias audições do álbum do momento: nada mais nada menos do que “Cowboy Carter”, de Beyoncé. O trabalho está no centro de uma polémica, fruto da incursão da artista num mundo que lhe pareceria tão distante: o da música country.
O disco, editado a 29 de março, tem dividido as opiniões dos críticos e sobretudo do fiel público do género musical. A controvérsia começou logo a 11 de fevereiro deste ano, quando Bey lançou “Texas Hold ‘Em”, o primeiro single oficial do projeto. Uma fã pediu à rádio country KYKC para passar o tema. O pedido foi prontamente recusado. “Não tocamos Beyoncé aqui. Somos uma estação de country”, frisou o locutor.
Esta afirmação foi suficiente para criar uma tempestade nas redes sociais, especialmente no X (antigo Twitter). Vários apoiantes da artista manifestaram-se e afirmaram que este tema se inseria, de facto, naquele género musical.
Roger Harris, o diretor da KYKC, viu-se obrigado a defender a posição da rádio. “Ela não é uma artista de country, mas parece que agora quer ser e nós apoiamo-la totalmente”, escreveu em comunicado.
A mensagem foi bem recebida por uns e criticada por muitos outros. A imagem habitualmente associada ao género tem alguma culpa: cresceu como vários tipos de música tocada no interior americano e rapidamente ganhou a alcunha de hillbilly music, ou música de campónios. Com o passar dos anos, afunilou no estilo que todos reconhecemos, ganhou respeitabilidade e também o novo nome. Ainda assim, é quase sempre associada à comunidade branca.
Aliás, dentro da própria indústria, os executivos fecharam regularmente as portas a todos os artistas negros que tentavam formar uma carreira dentro do género. Uma atitude surpreendente porque na génese do género estão artistas negros como DeFord Bailey.
Dolly Parton, ícone country, deu a sua opinião. “Sou uma grande fã da Beyoncé e estou muito entusiasmada por ela estar a fazer um álbum neste estilo”, escreveu no Instagram. “Muitas pessoas não sabem que ela é uma rapariga country. Ela nasceu e cresceu no Texas. Acho que nós pertencemos onde quisermos e onde somos bem-sucedidos. O ‘Texas Hold ‘Em’ foi número um em várias tabelas do mundo. Quem consegue discordar?”, disse à Knox News.
Depois deste apoio, ficámos a saber que Bey interpretou uma cover de “Jolene”, o maior hit da carreira de Parton, em “Cowboy Carter”. Também este tema voltou a gerar discussões devido à mudança drástica da performer à letra original.
“Ela não fez apenas uma versão do tema. Ela reescreveu-o e, pelo caminho, esqueceu-se completamente da mensagem da balada”, escreveu a “Forbes”. Mais uma vez, as opiniões dividiam-se entre aqueles que adoraram esta reinterpretação e aqueles que a odiaram.
“Adoro a versão da Beyoncé porque ela não está a suplicar à Jolene para que não fique com o homem dela. Ela está a avisá-la e a ameaçá-la. A minha miúda é assim”, escreveu uma fã. “Estava muito entusiasmada para ouvir o cover — adoro a Beyoncé e amo a canção — mas não sei como me sinto. Acho que não funciona quando tiramos a dor inerente ao tema. Se não te sentes ameaçada por ela, porque é que não páras de cantar o seu nome?”, questionou outra utilizadora no X.
Enquanto algumas artistas a defenderam, outras não perderam a oportunidade para a atacar. Uma delas foi Azealia Banks, sempre sem papas na língua. Em vários stories acusou a mulher de Jay-Z de estar a “fazer um cosplay de mulher branca” e sugeriu que a artista está a usar a relevância que tem para “eliminar outros cantores negros de country que estão a trabalhar há muito tempo para terem o seu próprio lugar dentro do género, mas que infelizmente não têm o dinheiro necessário para enviarem presentes aos grandes executivos da indústria”.
Apesar das palavras duras, a rapper tocou num ponto importante: embora estas vozes sejam muitas vezes silenciadas, o cenário do country em Nashville tem dado palco a muitos artistas afroamericanos nos últimos anos.
“Atualmente, há uma mente mais aberta a novos talentos do que de rejeição como acontecia no passado”, diz Bob Harris, apresentador do programa “Country Show” da BBC Radio 2, ao “Telegraph”. “Este género tem uma reputação de ser apenas para pessoas do sul, muito fechada e pouco fixe. Agora estamos a olhar para um novo paradigma.”
Acredita que todos os percalços encontrados pelo caminho ajudaram a indústria a evoluir e a chegar ao estado mais inclusivo em que se encontra nos dias que correm. “É o género em mais rápida ascensão atualmente e é mais relevante do que nunca”, salienta.
Esta explosão de popularidade só é possível graças a nomes fortes na indústria. “Cowboy Carter” nasceu “de uma experiência que tive há muitos anos em que não me senti bem-vinda”. “E era muito claro que, realmente, não era”, explicou Bey numa publicação do Instagram. “Por causa desse momento, mergulhei na rica história deste estilo e estudei o arquivo que existia.”
De acordo com Alice Randall, compositora e professora do género em Nashville, o álbum é “puramente country”. Percebe, contudo, as opiniões contra a performer. Afinal, o passado do género “continua a ser marcado pelo racismo”. “Quando eu cheguei cá, as pessoas chamavam-me a N word como se nada fosse. Lembro-me de estar com um compositor que eu adorava e que respeitava. Ele ficou a uns metros de mim, mas falou alto o suficiente para eu o ouvir. ‘Estou neste ramo há muito tempo, não tenho de competir com pretas de Harvard’, afirmou.”
Alice também aplaude Beyoncé pelo caminho que está a trilhar e acredita que o disco vai abrir muitas portas para a futura geração de artistas negros que queiram vingar dentro deste género musical. “Pessoas que historicamente não iriam adorar o álbum estão completamente viciados”, aponta.