Dezembro arranca e abre a contagem: durante quantos dias vamos conseguir sobreviver sem ouvir um dos hinos improváveis desta época? Reza a lenda do ciberespaço que o Whamageddon começou em 2010. É uma espécie de jogo do ai, aguenta, aguenta.
O objetivo é sobreviver de 1 de dezembro até ao dia de Natal sem ouvir a música “Last Christmas”, dos Wham!. Se não conseguir evitar escutar a canção — o que será difícil, sobretudo se frequentar superfícies comerciais — assim que a ouvir deve postar nas redes sociais #Whamageddon. Quando o fizer, passará a ser considerado na página oficial deste juízo final como uma vítima da terrível ameaça do último Natal.
Se o número de dias até ser atingido por esta batida é variável para o comum dos mortais, é exato como um relógio suíço para mim — zero. Não preciso de contar os dias, porque se o fizesse, não fazia outra coisa. Três meia volta, seja qual for o dia do calendário ou a sua distância ao Natal, não resisto a dar airplay a uma das minhas playlists favoritas no Spotify — a Xmas OST. O nome não engana.
Brega me confesso, sou fã de Christmas songs. Ou para ser completamente honesta: de melodias duvidosas com letras repetitivas ad nauseam e refrões orelhudos. Não sou masoquista (ou, pelo menos, a minha analista garante que não). Sou viciada em covers e, na espiral dessa adição demoníaca, descobri que se há canções que asseguram trips constantes (e ressacas duríssimas) são essas.
Uma das que me enviaram diretamente para uma dessas espirais infernais do vício foi “Last Christmas”. Tudo começou no início do ano, no já longínquo janeiro. Nesse mês, a canção atingiu pela primeira vez o top de singles do Reino Unido — só demorou 36 anos a liderar esta tabela. Sim, mais de três décadas e meia após ter sido lançada, em 1984. Claro que, entretanto, sempre fez parte de quase todas as listas da onda média desta época. Dela existem umas 10 mil versões (número calculado sem qualquer rigor científico ou outro), umas péssimas, outras más, algumas razoáveis, umas quantas boazinhas e outras francamente melhores que a original.
Toda a gente que é toda gente (ou que pretende vir a sê-lo) no mundo da música já gravou a sua interpretação de “Last Christmas”: Taylor Swift, Ariana Grande, Rita Ora, Gwen Stefani, Whigfield (sim, essa mesmo, a do infame “Sarturday Night”), Meghan Trainor, James TW, Kelly Clarkson, David Fonseca — e dezenas, para não escrever centenas, de outros.
Além do potencial comercial da melodia, afinal o que atrai tantas almas para este hit? Numa palavra: tudo. A começar pelo génio de George Michael (autor de algumas das melhores canções pop de sempre). Diz que a compôs numa hora, no seu quarto de infância, em casa dos pais — estava a meio de um jantar com o amigo Andrew Ridgeley (o outro elemento dos Wham!), a ideia surgiu e subiu ao primeiro andar para escrever.
Como o próprio sempre afirmou, também nunca a considerei uma canção natalícia. Ou, pelo menos, não terá sido escrita com essa intenção — embora o videoclipe filmado parcialmente numa estância de ski na Suíça tenha ajudado à mística. Já o palavreado, de natalino tem pouco. A menos que sejam como eu, devotos apreciadores de uma certa dose quotidiana de spleen (durante as festividades em particular). E, para esses, a lírica é todo um programa. O tema é óbvio para o comuns dos mortais: uma criatura introvertida apaixona-se pela personalidade mais extrovertida e radiante da festa de Natal, claro está.
“Dei-te o coração mas no dia seguinte puseste-o de lado”, ouve-se logo a abrir. A oferta não era um presente, mas a promessa de uma relação futura. A rejeição foi, por isso, mais dolorosa. Nada que um jantar bem regado num chalé nos Alpes não resolva. Parece que se tornou uma canção desta época por causa da repetição sistemática da palavra Christmas. E não só. Muitas vezes o que parece é — pelo menos no tal vídeo tão ou mais famoso que a melodia. (Graças ao nosso acesso abrupto à televisão por cabo e ao fascínio consequente provocado por uma MTV que ainda gatinhava e estava longe de se tornar num canal 24/7 non-stop-de-reality-shows. Na altura ainda se dedicavam a passar música. Mas voltemos ao vídeo.)
Filmado originalmente em 35mm, foi remasterizado em qualidade 4K (a versão, lançada em 2019, está disponível no YouTube e deu novo élan ao revivalismo dos anos 80). Os clichês da quadra estão lá todos: muita neve, vermelho em todo o lado (dos teleféricos, às roupas aos lábios), pinheiros com grinaldas douradas, muitos convivas à mesa, risos por tudo e por nada — mais aquele irritante brilho que encandeia da jóia (ou seja, do coração) que se ofertou.
“Feliz Natal. Embrulhei e enviei-to, com uma nota que dizia ‘amo-te’. Escrevi exatamente o que sentia”, diz a música. O desgosto da rejeição é profundo mas a batida é ligeirinha e convida a levantar o pé do chão e a gingar a anca. Afinal, tudo aconteceu no ano passado, não foi? Se nunca ouviu a música e aguentou até aqui, então instale-se. O melhor está para vir: a substância aditiva de uma cover. Falo, claro está, da letra. Não se deixe enganar pelos arranjos levezinhos (e apalhaçados) do original e da maioria das versões.
Ignorem a rima fácil — que também abunda. A repetição obsessiva do gave it away, gave it way, gave it away, martela-nos o cérebro e percebemos do se trata afinal. Pior que uma nega só o desprezo; o hoje sim (no barulho das luzes) mas amanhã (na lucidez) já não. Quem recusa não aceita. Quem recebe e descarta — ou passa a outro e não ao mesmo — é porque chega à conclusão que afinal aquilo não presta. Aquilo é aquele presente que até cobiçamos mas que nunca quisemos. É Natal, ninguém leva a mal.
O gancho retorcido (como todos os feitios irresistíveis no limite do suportável) que nos agarra está dissimulado na lírica. Atentem nas frases afiadas como a catana de um samurai. “Sei como fui tolo. Mas se me beijasses agora, voltaria a deixar-me enganar.” Ora, se 365 dias não chegaram para esquecer, no jantar de Natal é que vai ser. Claro. Está-se mesmo a ver. Tudo num chalé rodeado de neve gélida e a ferver de calor humano. Na voz de George Michael até acredito que sim, que nada possa acontecer. Mas na voz de David Fonseca, tenho sérias dúvidas. A versão do cantor português é uma das melhores, senão a melhor que já ouvi até hoje. E creiam: já ouvi muitas.
Com o piano em fundo, de guitarra na mão e a esticar o charme do timbre até ao limite do razoável, Fonseca faz com mestria singular aquilo que arrepia qualquer viciado em covers: apropria-se da canção. A melodia está lá e não foi mastigada ao ponto de se tornar irreconhecível, bem pelo contrário. Hélas, nem ecos da batida frenética do original, outro ponto a favor. A estrela da prestação, é, no entanto, a melancolia mal contida pelos diques da entoação (e dicção) de Fonseca. E, a letra claro está, fornece-lhe toda a matéria-prima de que precisa.
“Fui picado uma vez, fiquei duas vezes mais tímido. Mantenho-me à distância, mas ainda me chamas à atenção.” Introvertidos do mundo, uni-vos. Se o George até conseguia disfarçar a timidez, o David nem tenta. E ainda bem. Ficamos com a sensação de que se conhece bem, sabe como é e (já) aceitou que não vai mudar. Ainda bem para ele. E para nós, que o ouvimos. E que faz o Fonseca com o diamante já polido que compõem as estrofes de “Last Christmas”? Lapida uma nova faceta que lhe dá uma refração de luz singular.
“Uma sala cheia, amigos de olhos cansados. Escondo-me de ti e da tua alma de gelo.” Quem nunca se sentiu assim, que atire o primeiro cubo de água em estado sólido. Soul of ice. Uma substância que, em teoria poderá liquidificar. Se atingir a temperatura certa — o que nunca acontece. É um coração gélido que não derrete, nem numa sala aquecida com (demasiado) calor humano.
Rodeado de neve, Fonseca observa a vibração. Na voz dele, soul of ice passa a solar vibes, uma versão que soa muito mais cortante (apesar de parecer menos incisiva). “I’m hiding from you and your solar vibes.” A estrela que chega e toma conta da sala (e ofusca todos os introvertidos). A tua vibração é claramente solar e eu estou num buraco escuro lunar. Adeus frio, olá calor. Agora sim, estamos em pleno espírito natalício. Para os introvertidos, pelo menos. Tanta brasa só (nos) arrefece. Estamos preparadíssimos. Venham daí essa Consoada e o almoço do dia de Natal.
Ah, e esqueçam o “Sozinho em Casa”. Dediquem-se à rom-com com o mesmo nome (“Last Christmas”, pois claro), onde a canção desempenha um papel importante. Já vi, não é incrível — mas vou poupar-vos aos spoilers. Estreou em 2019 nos cinemas e é protagonizada por Emily Clarke e Henry Golding (Emma Thomson, que também faz uma perninha, colaborou na escrita do argumento). Em menos de nada chegou à Netflix, onde tem sido um slow burner mas ao que tudo indica sairá este ano do catálogo da plataforma de streaming. Se a querem ver, apressem-se.
Dezembro começou há três dias mas façam como eu — anunciem já o #Whamageddon. Este Natal pode não ser o primeiro em que ouvem a balada delicodoce dos Wham!, mas garanto-vos: será o último que a escutam como se fosse apenas uma lamechice pegada.