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De Almeirim ao Carnegie Hall: Cristina Branco emocionou os nova-iorquinos a cantar Amália

Dias depois do concerto marcante, lançou o novo disco "Mulheres de Abril”, uma homenagem a José Afonso e às lutas que ainda não acabaram.

Quando fez 18 anos, Cristina Branco recebeu um presente que não parecia mais do que um gesto de carinho do avô, mas que mudou a sua vida por completo: um disco de vinil da Amália Rodrigues, “Rara e Inédita”. O álbum mostrava a fadista longe do seu registo original e isso abriu-lhe um novo mundo. “Apaixonei-me pela voz dela. Foi a voz da Amália que se sobrepôs a tudo o resto”, conta à NiT.

Nessa altura, Cristina era estudante de Comunicação Social, apaixonada por livros e pelo jornalismo de investigação. “A música nem sequer era uma coisa secundária”, lembra. Apesar de cantar desde sempre, nunca imaginou que essa pudesse ser a sua profissão.

Hoje, aos 52 anos, Cristina Branco foi uma das artistas que subiu ao palco do famoso Carnegie Hall, em Nova Iorque, a 11 de outubro. Atuou ao lado de Raquel Tavares, Ricardo Ribeiro e da Orquestra Sinfónica, num concerto que homenageou Amália Rodrigues e que quase esgotou a sala.

O espetáculo recriou a lendária atuação de Amália em 1952 e devolveu a sua música ao palco nova-iorquino. “Foi absolutamente fascinante”, diz. “É mais do que a sala — é a acústica, é a energia, é saber que estás a pisar o mesmo palco onde estiveram os The Beatles, o Frank Sinatra, toda a gente que admiro.”

Cristina não cantou fado, mas sim canções do repertório americano, como Amália fizera décadas antes. “Senti que era um ciclo que se fechava. O disco da Amália que mudou a minha vida começa precisamente com ela a cantar essas músicas. E, de repente, sou eu quem as canta, no mesmo palco. Há coisas que parecem escritas nas estrelas.

O público, recorda, foi generoso e emotivo. “A sala não estava totalmente esgotada, mas estava cheia e com muitos portugueses. Acho que nunca tive um concerto em que houvesse tantos portugueses na plateia. Foi comovente cantar em português, naquele lugar mítico, para pessoas que falam a minha língua e percebem o que estou a dizer.”

Menos de duas semanas depois, Cristina lançou o seu novo álbum, “Mulheres de Abril”, editado a 24 de outubro, uma homenagem a José Afonso, mas também uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade. “Este disco nasce como uma continuação do ‘Abril’, que lancei em 2007 e que também era uma homenagem ao Zeca”, explica. Na altura, ficaram várias canções de fora. Quando as voltou a ouvir, percebeu que muitas falavam de mulheres em diferentes contextos. “A partir daí, fez todo o sentido chamar-lhe ‘Mulheres de Abril’ e dar-lhe um contexto mais social e político.”

A escolha das faixas foi cuidadosa. Cristina e o produtor, Ricardo Dias, selecionaram cerca de 20 músicas e refinaram a lista. “Eu insisti em cantar ‘Canção da Paciência’ e ele queria pôr ‘Bárbara Escrava’. No fim, o que era para ser um EP transformou-se num álbum.”

As canções abordam temas como a guerra, o trabalho, o feminismo, a submissão e a desigualdade. “Este disco é uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade, sobre como a subjugação feminina é intemporal. Andamos três passos para a frente e dois para trás. É triste perceber que, apesar de toda a evolução, ainda há tanto por mudar.”

Ainda assim, o álbum não fala apenas sobre mulheres. “O Zeca, ao contrário do Chico Buarque, que tem o universo feminino muito presente, não falava da mulher como figura central. E, no entanto, ela está lá, omnipresente. Ele descreve a condição humana, e isso é belíssimo. O que quis fazer foi revisitar essas canções e trazê-las para um contexto de hoje.”

Para Cristina, o processo foi também uma viagem interior. Quando gravou “Abril”, mergulhou na obra de Zeca Afonso, releu textos, procurou imagens e ouviu tudo novamente. Sabia que precisava de se envolver por completo. Queria ser ela própria, não uma cópia.

É uma abordagem que definiu ao longo da carreira. Em quase três décadas e 18 discos depois, a maioria com temas originais, habituou-se a trabalhar a partir de ideias centrais. “Eu parto de uma ideia — o amor, o tempo, a alegria — e construo um universo em torno disso. Escrevo textos à volta do tema e peço a autores em quem confio que escrevam a partir dessa base. Esse é o meu momento criativo.”

Curiosamente, tudo começou num momento de fragilidade. Estava a terminar o curso e ficou muito doente. Quando começou a recuperar, uma amiga convidou-a para ir a uma casa de fados, convite que inicialmente recusou, mas acabou por aceitar. “Foi uma revelação. Parecia que já conhecia aquilo de outro mundo”, recorda.

Nessa noite, sentiu uma mudança. Quando chegou a casa, disse aos pais que queria ser cantora. Tinha 22 anos quando subiu a um palco pela primeira vez, também numa casa de fados. “Não sabia nenhum fado, cantei uma canção dos Madredeus, uma imitação barata da Teresa Salgueiro”, conta entre risos. “Mas cantei. E não senti vergonha. Foi instintivo.”

Pouco depois, foi chamada para cantar num programa de televisão no Porto e recebeu outro convite inesperado para atuar nos Países Baixos num concerto do 25 de Abril, num espaço onde já tinham passado Carlos Paredes e Zeca Afonso. “Achei que era uma aventura. Preparei um repertório em dois meses, e fui. Foi o início de tudo.”

Para Cristina Branco, a música é uma forma de pensamento. “O problema do mundo é que as pessoas deixaram de pensar. Vivemos demasiado no imediato. A música, a arte, servem para isso: para abanar consciências.”

Depois de cantar Amália no Carnegie Hall e lançar “Mulheres de Abril”, continua a querer usar a liberdade e a consciência na sua música: “O facto de ter uma voz é, neste momento, uma grande oportunidade e temos de a usar. Não nos podemos manter calados porque é uma possibilidade que muito pouca gente tem. Sei que a tenho de usar para fazer o bem.”

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