Foi numa noite entre amigos que Paulo Jacob recebeu o convite para se juntar aos 5ª Punkada. Tinha ouvido falar deste grupo de cinco músicos com paralisia cerebral em 1997, através de Victor Torpedo, amigo e músico dos Tédio Boys.
“Lembro-me de num concerto ele me ter dito que tinham tocado com uma banda de rock fantástica, pessoal em cadeira de rodas, a tocar blues e funk. ‘Uma coisa avassaladora’”, recorda Paulo. No entanto, ao convite, respondeu imediatamente com um redondo não. Acabaria por ceder e ir assistir a um ensaio “apenas por curiosidade”. Ao fim de duas músicas, estava convencido. “Quando começaram a tocar, o meu mundo virou-se de pernas para o ar.”
Hoje é o orgulhoso musicoterapeuta da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC) mas, mais do que isso, é o homem que todos os dias ajuda os cinco elementos dos 5ª Punkada a fazerem aquilo de que mais gostam: música. E ao fim de 29 anos de existência, agora têm ainda mais motivos para sorrir.
Com o primeiro disco editado há três meses, preparam vários concertos em festivais de verão — vão estar no Impulso, em junho, e no Bons Sons, em agosto — e viram o seu primeiro videoclipe, “Blues da Quinta”, ser nomeado para os Play Awards. Uma fase excitante de uma longa história que começou em 1993.
Na linha da frente do grupo está sempre Fausto Sousa, o quinquagenário vocalista e único membro da formação original dos 5ª Punkada. Foi com o seu sonho que o projeto arrancou. Apaixonado pelos sons do heavy metal, sempre quis ser vocalista, estrela da música.
O objetivo só se pôde concretizar graças ao trabalho e vontade de Francisco Sousa, pioneiro da musicoterapia no País e que decidiu pôr em prática as vontades dos utentes da APCC. “O objetivo era o de que eles pudessem usufruir dos benefícios de fazer música em grupo. Quando as coisas são bem feitas e as pessoas se metem nelas por paixão, só podem nascer coisas boas”, nota Paulo Jacob, que hoje mantém vivo o projeto.
“Queremos promover o controlo e a autodeterminação, sobretudo pela falta de oportunidades que a sociedade dá a estas pessoas”, diz. “Os 5ª Punkada acabaram por ser um escape, um palco recheado de coisas boas, onde conseguem mostrar tudo o que podem fazer se lhes for dada essa oportunidade. Mostram capacidade, eficiência, e não o outro lado da incapacidade.” Para Jacob, os 5ª Punkada são como “qualquer outra banda” que faz o que todas fazem: música.
A vida do grupo ficou marcada por um momento trágico. Num concerto na Guarda, Francisco Sousa estava no palco a tocar rodeado pelos restantes membros, quando sofreu um ataque cardíaco. Acabaria por morrer.
“A banda assistiu a tudo, sem saber muito bem o que se estava a passar. Foi complicado”, nota Paulo Jacob. “A perseverança e a paixão pela música ajudaram a fazer o luto e a prestar homenagem ao Francisco.”
Entre várias mudanças no elenco ao longo dos anos, os 5ª Punkada são hoje compostos por Fausto, claro, como vocalista e responsável pelo sound beam — um instrumento que permite transformar o movimento em som —, Fátima Pinho nas teclas, Miguel Duarte na bateria e Jorge Maleiro na guitarra.
Jacob, de 45 anos, é o quinto elemento, desde esse marcante ensaio em 2001 em que aceitou juntar-se à equipa. Até então, tinha feito um pouco de tudo. Formado em música mas sem ambição de dar aulas, chegou a ter a sua banda, a trabalhar na Rádio Universidade de Coimbra e acabou a fazer um pouco de tudo. “Até fui carteiro”, recorda.
“Quando me fizeram o primeiro convite e disse que não, demorei alguns minutos a absorver a ideia. Não estava à espera do desafio, nunca tinha trabalhado com pessoas com deficiência, não era o meu mundo”, conta. “Mas depois pensei e percebi que estava a ser um bocadinho idiota se nem sequer fosse pelo menos assistir a um ensaio.”
A música convenceu-o e começou por ajudar a banda a criar temas e a ensaiar. O trabalho deu frutos e acabou por ser convidado pela APCC para trabalhar com os restantes utentes. Hoje é também musicoterapeuta e saltita entre a área da educação e da saúde. “A musicoterapia faz intervenção a nível da saúde e usa a música como meio facilitador para atingir objetivos não-musicais”, esclarece. “Eu acabo por ter uma função multitarefas.”
O nome da banda remete para o universo punk, não da música em si, mas na atitude, na vontade de afrontar o sistema instalado e quebrar as regras. Querem provar que podem fazer tudo aquilo que querem e que tantas vezes lhes dizem que não podem fazer.
Foi dessa forma que em 2005 subiram a um dos palcos da Queima das Fitas de Coimbra para um concerto, não sem antes lhes ser negada a subida ao palco principal. “Fiz a proposta à comissão de organização, que me perguntou diretamente se conseguia dar garantias de conseguir pôr lá três a quatro mil pessoas [a ver o concerto]. Perguntei-lhes se também colocavam essa questão aos Xutos & Pontapés. Vim-me embora.”
Voltou a tentar, desta vez junto da Rádio Universidade de Coimbra, que tinha o seu próprio palco no evento. A resposta foi imediatamente afirmativa. De lá para cá, já tocaram em palcos que são a inveja de muitas outras bandas. Passaram pela Casa da Música, pela Feira de São Mateus e até num encontro europeu da juventude onde tiveram perto de 10 mil pessoas na plateia. “Só não fazemos aniversários e funerais (risos)”, brinca Jacob.
Em dezembro, no culminar de uma pandemia que interrompeu ensaios e isolou ainda mais os membros da banda, surgiu a oportunidade de editar um disco. Isto porque gravados, já a banda tinha dois, um nos anos 90 e outro em 2005, pela mão do próprio Paulo Jacob.
Com o financiamento de um programa do estado, puderam finalmente começar a sondar editoras que pudessem ajudar a tornar o sonho uma realidade. “Tivemos outras oportunidades, mas não queríamos que a banda fosse publicitada como uma banda de pessoas com deficiência”, conta. “Não queríamos ser um freak show. Queríamos que as coisas vingassem pela força que a música tem e pela experiência que os 5ª Punkada proporcionam, seja ela uma experiência musical mas também humana, de reflexão sobre a condição humana.”
A leiriense Omnichord Records chegou-se à frente com o pacote completo que Jacob tinha idealizado: além de um disco, queria produzir um documentário e ainda dar um concerto de apresentação do “Somos Punks ou Não?”. Assim foi.
Em três dias, os temas foram gravados, com a ajuda de Surma e de Victor Torpedo, numa espécie de círculo que se completou. “Foi o Victor que me falou pela primeira vez na banda.”
Dos seus instrumentos saem temas jazz e rock, blues e funk. “Tocamos o que nos apetece tocar, não estamos aprisionados a um determinado estilo, embora há quem pense que sim, até por causa do nome”, sublinha.
“São pessoas mais felizes. A música só traz felicidade, não julga”
Entre os três dias de ensaios semanais e os concertos, os membros da banda provam que nenhuma debilidade é impeditiva da felicidade. A música é hoje um elemento decisivo nessa equação. “São pessoas mais felizes. A música só traz felicidade, não julga”, explica.
“O Fausto, antes de entrar nos 5ª Punkada e de ter esta oportunidade dada pelo Francisco Sousa, teve que ouvir muita gente a dizer: ‘Fausto, tu não tens voz para ser vocalista.’, ‘Fausto, tu nunca vais ser vocalista’, ‘Fausto, desiste dessa ideia’”, recorda Jacob. “Neste meio de contrariedades, de negas, acabou por se deparar com alguém que lhe disse, ‘Ai gostas? Então vamos a isso.’”
Essa iniciativa permitiu que Fausto pudesse não só concretizar o sonho improvável de ser vocalista, mas sobretudo de fazer o que mais gosta durante mais de duas décadas — e não pretende ficar-se por aqui. “Não quero com isto dizer que os que lhe disseram que não o podia fazer que foram desumanos. Mas quem somos nós para negar o que quer que seja a alguém?”, frisa.
Sobre a música em si, Jacob é pragmático. “Há pessoas que dizem que o Fausto tem a melhor voz do mundo. Outros dizem que não a suportam. Mas isso é uma coisa ambígua, é normal na música e é assim em tudo na vida”, diz. “Uma coisa eu posso dizer: talvez seja mais fácil imitar um Freddie Mercury do que imitar um Fausto Sousa a cantar.”