Música

Lamar vs Drake: a desavença entre gigantes do hip-hop está mais violenta do que nunca

Desde os anos 90 que o mundo do hip-hop não assistia a uma disputa tão agressiva.
A disputa explodiu nas últimas semanas.

Vive-se, por estes dias, uma autêntica “guerra civil do rap”. É assim que as revistas “Billboard” e “Rolling Stone” descrevem a disputa visceral entre os rappers Drake e Kendrick Lamar. A relação tensa entre ambos dura há vários anos, mas o conflito escalou nas últimas semanas.

Se no início a troca de galhardetes refletia apenas uma profunda inimizade, o tom mudou e passou a incluir acusações sérias. Tudo se acentuou na última semana, com o lançamento, a 3 de maio, de “Family Matters”, na qual o canadiano ataca o rapper americano. Nem uma hora depois, Lamar puxa de “Meet the Grahams”, a “diss track” onde acusa o colega de profissão de ser um “pedófilo certificado”, ao passo que alega que o artista tem uma “filha secreta” que esconde dos fãs. O caos tomou conta do mundo da música.

Apesar da luta na lama, nenhum dos artistas derramou sangue no ringue, ao contrário do que aconteceu nos anos 90, na lendária disputa entre Tupac Shakur e Notorious B.I.G., que terminou com as mortes violentas de ambos. A desavença ainda não desceu a esse patamar, embora já tenham sido disparados tiros. Todavia, as autoridades não confirmaram se têm ou não relação com o beef”.

Um dos guarda-costas de Drake foi alvejado à porta da mansão do artista em Toronto, na madrugada de terça-feira, 7 de maio. Segundo o “The Guardian”, embora apresente ferimentos graves, o segurança não corre risco de vida.

Violência à parte, este é apenas o mais recente episódio de uma batalha épica feita à base de letras pontiagudas e batidas violentas. Curiosamente, a desavença entre os dois gigantes hip-hop começou com uma amizade.

O rastilho

A disputa entre Drake e Kendrick Lamar foi desencadeada (intencionalmente ou não) por J Cole, rapper de 39 anos que, entretanto, já se retratou por ter sido responsável pelo atear da chama. Em outubro de 2023, Drake lançou “For All The Dogs”. O oitavo álbum do artista canadiano conta com o tema “First Person Shooter”, feito em colaboração com J. Cole. Num dos versos, o último sugere que ele, Drake e Kendrick são os “três grandes” da cena atual do hip-hop.

“Adoro quando discutem quem é o MC que faz as rimas mais difíceis [os versos mais duros] / É K. Dot [Kendrick]? É Aubrey [Drake]? Nós somos os três grandes, criámos a nossa própria liga.”

O tema chegou ao topo da tabela de singles nos EUA imediatamente após o lançamento, tornando-se na 13.ª canção de Drake e na primeira de Cole a atingir o número um. A conquista elevou Drake ao patamar de Michael Jackson, o artista masculino que conquistou mais singles a solo ao longo da carreira.

Kendrick, o único do trio com um prémio Pulitzer no palmarés, não gostou de ter sido colocado no mesmo saco e respondeu à letra no álbum “We Don’t Trust You”, criado em colaboração com Metro Boomin’ e lançado em março.

Num dos versos não creditados (mas atribuído a Lamar) do tema “Like That” refere que “não existem três grandes, apenas um — e sou eu”. A afirmação poderia parecer uma simples divergência de opinião carregada de arrogância, contudo, o facto de integrar o álbum feito com o antigo produtor de Drake não foi inocente. Boomin’ colaborou com o artista no álbum “What A Time To Be Alive”, de 2015, mas a relação entre ambos azedou entretanto.

De mentor a concorrente

Em 2011, Drake lançou “Take Care”, um dos álbuns mais aclamados da sua carreira. Kendrick era ainda um novato promissor e o canadiano convidou-o a participar em “Buried Alive”. Lamar retribuiu o favor no ano seguinte, em “Good Kid, M.A.A.D. City”: o canadiano colaborou em “Poetic Justice”, um dos singles do disco.

A “amizade” não vingou. Em 2013, o norte-americano de 36 anos deixou claro que pretendia ultrapassar o mentor. Num dos versos de “Control”, enquanto convidado de Big Sean, deixou um aviso à nova geração de rappers (nomeando especificamente Drake, J Cole, Meek Mill, Mac Miller, Pusha T): “Tenho amor por todos vocês, mas vou tentar aniquilar-vos”.

Questionado pela “Billboard” sobre a indireta, Drake respondeu que não tinha nada a dizer: “Parece-me uma afirmação ambiciosa. Só isso. [Lamar] não está a dar cabo de mim em nenhuma plataforma. Quando esse dia chegar, se chegar, podemos revisitar o assunto”.

Daí em diante, a relação entre ambos pautou-se pela troca de picardias mais ou menos ácidas. Isto até à intromissão de J Cole — que não gostou de ter sido despromovido por Lamar.

Volvidas duas semanas, Cole lançou um álbum surpresa, “Might Delete Later”. O nome já aludia ao que viria a acontecer. Na faixa “7 Minute Drill” — que removeu dos serviços de streaming uma semana após a ter classificado como a “mais rúcula e idiota” que já fez — descreveu o mais recente disco de Kendrick como “trágico”. Acrescentou que respeitava o músico, mas não hesitaria em destruí-lo se os insultos continuassem.

Dias depois, quando subiu ao palco do Dreamville Festival, na Carolina do Norte, acabou por se retratar. Elogiou a discografia de Kendrick e prometeu manter-se afastado caso este respondesse.

Já Drake, o principal visado por Lamar, disparou — literalmente — à altura do novato a quem havia dado a mão. Aconselhou-o a fazer flexões em “Push Ups” para ver se crescia e deixava de ser anão. Uma tirada que alude aos 1,65 metros de Kendrick.

Criticou também as incursões do colega norte-americano no mundo da pop, insinuando que teria sido forçado pela editora a colaborar com artistas como os Marron 5, SZA, Future ou The Weeknd. Taylor Swift — que destronou o êxito de Drake e J Cole no top dos singles uma semana depois — com “Cruel Summer”, também foi nomeada.

Em “Taylor Made Freestyle”, Drake sugeriu que Lamar era “demasiado covarde” para lançar a resposta na mesma semana de “The Tortured Poets Department”, o 11.º álbum de estúdio da cantora. O tema, com versos gerados por IA de Snoop Dogg e Tupac Shakur, foi partilhado no Instagram Reels. Contudo, acabou por ser retirado quando os herdeiros do malogrado artista ameaçaram acusar Drake por violação dos direitos de autor.

A resposta de Lamar surgiria dali a 11 dias. Ao longo dos seis minutos de “Euphoria” acusa Drake de “não ter apontado alto o suficiente” para o atingir. Descreve o canadiano como “mestre na arte da manipulação e mentiroso compulsivo”, insinuando que é “um péssimo pai”. E não poupou o aspeto físico do antigo “mentor”, dizendo que “finge ser negro”, já terá feito várias cirurgias plásticas — incluindo uma BBL (Brazilian Butt Lift, procedimento também conhecido como aumento de glúteos) e que toma Ozempic.

As mulheres e os filhos

Quando o conflito parecia ter atingido o pico, os dois rappers publicaram vários temas de resposta mútua ao longo de 72 horas, entre sexta-feira e sábado, 3 e 4 de maio. Publicadas sucessivamente por ambos, as faixas “6:16 in LA”, “Family Matters”, “Meet the Grahams” e “The Heart Part 6”, incluem acusações graves de pedofilia, violência doméstica e abandono parental.

Drake acusa Kendrick de bater na mulher, Whitney Alford, enquanto o americano revela que o concorrente tem “uma filha secreta com 11 anos” e já se envolveu com raparigas menores de idade. Embora os temas do canadiano já tenham mais rotação e audições, os disparos de Kendrick parecem ter sido mais certeiros. E acabaram por consolidar os rumores sobre a conduta imprópria do artista natural de Toronto no que toca a relacionamentos íntimos que já circulavam há muito.

O próprio admitiu ter enviado mensagens de texto a Millie Bobby Brown quando a atriz era menor de idade. A amizade entre ambos começou em 2018. Na altura, Brown tinha apenas 14 anos e Drake 31, sublinharam vários órgãos de comunicação social quando a protagonista de “Stranger Things” se referiu ao rapper numa entrevista.

Embora não seja propriamente uma novidade nas letras do rap, muitos críticos têm frisado que o conteúdo misógino das acusações é “alarmante” e devem ser investigadas pelas autoridades.

Como em qualquer disputa digna desse nome, cada fã defende o seu favorito — e não admite a derrota. Abadia de Nels, crítico do “The Guardian”, aponta outro vencedor: o Universal Music Group (UMG), conglomerado discográfico sob a égide do qual os temas dos artistas têm sido lançados.

Os insultos e as acusações trocadas por ambos não precisam ser “reais” para gerarem lucros, destaca. “Sabemos que rappers rivais cultivam relações com a verdade semelhantes às das empresas de tabaco e petróleo: dissimulam, exageram e fabricam factos”, escreve Nels.

Atualmente, Drake é uma estrela pop global comparável a Prince ou Michael Jackson em termos de popularidade e vendas de discos, acrescenta. Por isso, o “beef”, [a troca agressiva de galhardetes] com Lamar gerou milhões de comentários, gostos, visualizações e uma atenção mediática sem precedentes.

Ao contrário do que aconteceu nas rixas entre os gangsta rappers dos anos 90, que envolveram mortes violentas, “esta luta de boxe verbal é um ótimo entretenimento” para as massas, conclui Nels. Com um grande senão: as acusações mais bombásticas ou sujas dificilmente serão esquecidas, seja pelos fãs ou detratores. E o impacto que terão nas carreiras de ambos a longo prazo é difícil prever.

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