Legendary Tigerman é um dos músicos mais prolíficos do País. Entre o blues, o punk e o rock’n’roll, multiplica-se em projetos originais e de maior ou menor sucesso. Mas há certezas que, aos 50 anos e já com três décadas de carreira, nunca mudaram para Paulo Furtado. Como o trabalho que faz em estúdio e depois a adrenalina que sente em palco. É ali, entre plateias cheias, gente a suar e a dançar que o rock vive a sua essência. Este ano, a pandemia é, portanto, quase uma provocação existencial para um rocker. Como fazer rock nestes tempos estranhos que vivemos?
Esta terça-feira, 27 de outubro, a NiT falou com o músico português no auditório de pedra dos jardins da Gulbenkian, em Lisboa, sobre a pandemia, a nova baterista da banda e os projetos que tiveram de ser repensados para este estranho ano que vivemos.
Como tem sido a vida de Legendary Tigerman durante a pandemia?
Um misto de sentimentos, como para a maior parte de nós. Na primeira fase fiquei a meio de um disco, não compus mais canções mas o disco tem continuado a andar. É um disco que tem muito a ver com participações e contacto pessoal. Por razões óbvias, algumas partes ficaram em stand-by.
A pandemia deu para ter novas ideias?
Confesso que não foi algo que me inspirasse muito criativamente. Optei por estudar coisas que queria estudar há uma série de tempo e para readaptar o estúdio em casa. Estava a retirar coisas e acabei por fazer o contrário: tornei-o mais autónomo. No verão houve uma reabertura para alguns concertos, entrou a Catarina [Antunes]. Tinha posto um anúncio num jornal à procura de uma baterista e este processo também tinha sido interrompido. A Catarina entrou finalmente, Infelizmente não tivemos muitos concertos mas os que tivemos foram muito fixes. Tinha também uma tour europeia que foi cancelada. Os projetos de teatro ficaram concentrados agora em setembro e outubro.
São vários.
Sim, já estreou o “Última Hora” no Teatro Nacional Dona Maria II e o próximo é o “Estro/Watts”, no Rivoli, e depois com o teatromosca, o “Ned Kelly”. Foi uma pequena aberta que espero que se prolongue. As pessoas, com todos os cuidados, continuam a ir ao teatro, o que é uma boa notícia.
Como surgiu a ideia de música para teatro?
Foi surgindo. A primeira vez foi há muitos anos, quando ainda morava em Coimbra, numa peça do Carlos Curto, “Oceanos Invisíveis”. Tornou-se uma coisa inspiradora para mim. Quando fazes música para teatro a influência que consegues ter é maior. No cinema os projetos costumam chegar já numa fase mais adiantada, já está quase tudo decidido.
Voltando ao anúncio. Porquê a opção de anunciar num jornal e dando preferência a bateristas mulheres?
Sempre curti bateristas mulheres e acho que é preciso fazer alguma força para contrariar os números. O anúncio foi por me parecer uma forma democrática de escolher alguém. Gosto da coisa old school, de audições, de saber quem anda por aí a tocar. Desta vez recebi alguns 50 vídeos, incluindo de homens, mas é curioso que as cinco mais interessantes eram todas mulheres. Escolhemos a Catarina, mas pelo menos com duas ou três delas estou convencido que a dada altura farei alguma colaboração musical, porque me faz sentido.
Legendar Tigerman começa como one-man show e evoluiu ao longo dos anos, com mais colaborações até chegar a banda. Porquê este caminho?
Foi natural.
Com Wraygunn também houve essa passagem, de frontman para estar um pouco mais atrás no palco.
Enquanto havia Wraygunn e Tigerman havia um espaço da minha vida que estava preenchido. Tigerman cresceu quando lhe dei um pouco mais espaço. Depois com o desaparecimento de Wraygunn havia aqui um lado punk e rock’n’roll que de repente deixou de estar tão presente na minha vida e tive que o procurar. Por outro lado, Tigerman é um projeto sempre em movimento. No próximo disco há músicas em que não vai haver guitarra. Estou a trabalhar mais com sintetizadores modulares. Para mim não resulta aquela coisa de ir repetindo fórmulas. É sempre um caminho de descoberta e procura.
Podemos esperar novidades de Wraygunn?
Sim, temos falado um bocadinho, não há nada oficial mas temos pelo menos a vontade de fazer uma despedida em condições da banda.
Calculo que este tenha sido dos maiores períodos da sua vida sem atuar ao vivo.
Sim. Não me lembro de outra altura em que estive três meses em casa em Lisboa sem ir a outros lados. Foi estranho, houve momentos em que foi agradável, em que deu para descansar, mas também houve momentos angustiantes, porque nos vimos forçados a parar.
Como artista como vê esta fase de pandemia?
É desinspirador. Não vejo nada de interessante nesta fase em que temos de ficar em casa. Por um lado, acho que ainda não absorvi tudo e não me apetece escrever sobre isto; por outro lado, a vida social, o lado dos concertos, foi cortado de uma forma muito agressiva. E honestamente também não tenho visto muita arte em tempos de quarentena que seja mesmo muito boa. Estou ansioso para que acabe.
Mesmo de forma indireta, há o risco de a pandemia se intrometer por isso no novo álbum?
Acho que foi também por isso que parei de trabalhar em novas canções. O disco continua a andar, há arranjos, montagem, mas como lidas com tudo? A nossa vida não vai continuar como se não tivesse acontecido nada quando isto acabar — e se eventualmente acabar. Esta semana foi a primeira vez em mais de um mês que ouvi as canções todas que já tinha. É uma experiência rara, de teres músicas preparadas há um ano e não teres lançado ainda nada.
Como vê isso?
Por um lado, agrada. Por outro, já há vontade de lançar. Mas esta audição fez-me pensar que estava tudo a ir na direção certa. Se fosse escrever agora se calhar saiam coisas mais contemplativas e menos rock’n’roll. O meu mindset tem de ser um bocadinho à parte do que está a acontecer.
Como assim?
Tem de ser a pensar na esperança de que um dia vamos estar todos num sítio cheio, com toda a gente a suar e a ouvir música e a dançar. Neste momento não me faz sentido escrever coisas para isto, para as pessoas ficarem calmas, para ouvir em casa. A minha necessidade é a oposta. Por causa disto, por estar a processar tudo isto — e se calhar por de repente fazeres-me essa pergunta para eu acabar de tornar este processamento um bocadinho mais real —, acho que o que tenho de fazer é compor para um mundo que tínhamos antes, na esperança de que volte e estarmos num espectáculo de rock’n’roll. Suor, multidões, abraços, agora são coisas totalmente atípicas e impensáveis nas nossas vidas”.
Esta fase mudou o que tem andado a ouvir?
Não muito. Nunca fui de ouvir rock em casa, é mais a guiar ou quando vou a concertos. Em casa quando estou a compor tenho longos períodos em que ouço pouca música. E às vezes até ouço coisas mais tranquilas por natureza. Talvez tenha descoberto mais coisas, houve mais amigos a recomendar mais coisas.
Entre Tédio Boys, Wraygunn e Legendary Tigerman sempre teve esse lado rock ao vivo a abrir. Teme que isto acabe por interferir na forma como pensa a sua música?
Acho que é impensável que não afete de alguma maneira. Os últimos concertos, especialmente com a banda, têm sido incríveis. Mas também descobri uma nova vibe em palco, com o [João] Cabrita, um namoro musical que não existia. Estarmos a fazer espetáculos os dois para pessoas sentadas, a pensar os sets de forma diferente, com menos coisas a abrir, porque também sentes que não é isso que as pessoas querem. Também não te apetece criar cenas de tensão, sabes.
Como assim?
O que antes eram cenas fixes, um certo medo, o perigo, o rock’n’roll, que são coisas que mexem contigo num concerto, de repente não fazem sentido e também queres absorver alguma da energia das pessoas e tentar dar uma energia fixe de volta. O que é facto é que os concertos foram bonitos, com músicas e versões que não tocava há muito ou que normalmente não faria. Se não fosse o que está a acontecer não teria sido possível. Agora, é como tudo: há coisas em que faz sentido adaptar-me, noutras tem sentido lutar contra isso.
O que é que ainda há de Paulo Furtado que nunca mudou desde os primeiros tempos dos Tédio Boys?
Muita coisa. Os Tédio Boys existiram dez anos e de repente levaram cinco gajos de Coimbra aos EUA para fazer tournés, conhecer o Joey Ramone, o Jello Biafra, referências para nós, o modo como tudo isso aconteceu foi a enviar cassetes para todo o lado, a tentar sem meios, sem manager e de repente as coisas a acontecer. Essa logística do it yourself ainda acontece e ainda bem. Gosto desse lado independente de ditar para onde vou.
Foi marcante.
Num dia estás a tocar para mil pessoas, no outro estás num buraco a tocar para um buraco que nem sei o nome. Isso foi importante: percebes logo que não vai ser sempre bom e crias uma capa que é importante que tenhas na música. Musicalmente também foi aí que me relacionei como músico a sério com os blues. Na última tour andámos muito pelo sul e contactei guitarristas generosos, que me ensinaram muito. Todos nós trouxemos influências dessas mas acho que as minhas foram as que se afastaram mais do que fazíamos. Esse contacto direto ajudou mais tarde a levar-me a criar Wraygunn e Tigerman. De repente tens uma afinação aberta e não estás a pensar em acordes, é mais empírico e imediato. Muito do que sou e faço ainda é reflexo de aprendizagens desse tempo.
Porquê os diferentes projetos?
É um processo de necessidades artísticas, é como ter de fazer cinema ou fotografia. Acho que não é acaso andar a fazer mais música para cinema ou teatro, em que não sou epicentro de nada. Sou uma peça como o guarda-roupa ou a cenografia que está ali para servir outra visão. O facto de me descentrar ajuda a desbloquear outros modos de composição. Sinto-me mais livre no que componho. É fome de fazer coisas diferentes e cada uma me dar um gosto especial.
Ainda se recorda do momento em que percebeu que o futuro seria a música?
Acho que levou um bocadinho de tempo. Mas muito antes de Tédio Boys estava a ver o “Era Uma Vez no Oeste” e a pensar que a música era tão personagem quanto os atores. Foi um pensar ‘isto é algo que gostaria de fazer’.
Começou mais por bandas-sonoras do que rock’n’roll.
Na altura estava mais convencido que seria artista plástico e não músico. E acho que a minha grande mais valia na música é não olhar para ela como um músico. Para um filme ou teatro se calhar um músico pensava nas notas e eu penso primeiro em timbres, sensações, texturas, penso em como poderia ajudar o objeto artístico. Há coisas que componho que não têm a ver com notas mas com camadas, coisas que têm mais a ver com a pintura.
Continua a explorar a fotografia e a pintura?
A fotografia sim, mesmo não tendo feito nada de muito especial com isso, tirando um pequeno livrinho relacionado com a minha primeira curta, o “Amor Quântico”. Mas desenhar e pintar é algo que só faço de férias. E é das coisas que me tranquiliza mais.
Há algum filme cuja banda-sonora gostasse de ter sido o Paulo Furtado a fazer?
Há bandas-sonoras que gostava de ter feito, que é diferente [risos]. O “Dead Man”, do Jarmusch, tem uma banda-sonora incrível. Gostava de a ter feito, mas não de ter sido eu fazer porque não fazia melhor trabalho do que o Neil Young. Mas, modéstia à parte, às vezes vejo algumas séries e penso que podia fazer melhor”.
Ainda se fala muito da internacionalização da música portuguesa. Curiosamente no seu caso parece que são fronteiras que não se colocam?
Colocam-se sempre. Uma coisa é conseguires fazer tours internacionais, como os Tédio Boys fizeram. Outra coisa é ter uma carreira internacional A primeira parte os Tédio Boys conseguiram, a segunda não. Curiosamente na semana passada almocei com a pessoa da editora responsável por nos editar lá, que estava cá por Lisboa, e ele estava-me a dizer o quão próximo estivemos de qualquer coisa. ‘Vocês estiveram antes de tudo, estavam a fazer rock’n’roll e garage antes de aparecerem os The Strokes. As editoras já estavam a ir aos concertos, como é que acabaram naquela altura!?’. São aquelas coisa que têm piada agora e que na vida dos Tédio Boys foi algo de viragem. Aqueles três anos e aquelas três tours iriam culminar em algo maior do que o que estava para trás mas não foi possível.
Em que ponto estamos nesse aspeto?
É um trabalho que felizmente cada vez mais músicos portugueses têm e querem, mas não é uma coisa fácil. Nunca houve um Governo que olhasse para a música portuguesa com essa preocupação em exportar. No ICA, com o cinema, vimos isso e tem dado frutos. Nem sequer o fado, que é uma coisa que só existe em Portugal. É uma cena tão única, e é como achares que a tua cena mais especial não possa agradar tanto ao mundo, como o tango ou o flamengo. Há uma falta de inteligência muito grande em relação ao que nós temos. Olhamos para França ou Canadá e há gabinetes que exportam os seus músicos. É embaraçoso, mas já fui exportado pelo gabinete francês, que o meu publisher é francês, e com resultados muito bons para mim. Consegui tournée e editora na Alemanha.
Ou seja, é possível.
É viável mas tem sido feito muito só à custa dos músicos. O Cristiano Ronaldo, por exemplo, é uma coisa super importante para nós e devíamos olhar para o caso dele, não como aquela coisa do ‘uau, ele é o melhor do mundo’, mas se pensarmos que num país tão pequeno saiu um gajo que, por trabalhar imenso, chegou ali, torna viável que exista todo um leque, que pode ir das artes ao desporto. Continuamente somos agraciados com mais portugueses que conseguem coisas muito difíceis, e é realmente muito difícil sem apoios fazeres as coisas acontecer a nível internacional, especialmente onde não há tradição Isso começou com Moonspell, houve Buraka Som Sistema. Mas estas coisas acontecem porque as pessoas fuçam muito e querem muito as coisas. ;as seria lucrativo para o País, cultural e financeiramente, investir na música portuguesa fora de portas.
Falta essa noção, de que se apostarmos na cultura ela não é necessariamente subsidio-dependente e pode ter retorno?
Falta. Continua a haver essa postura e esse discurso que é tão século passado, como se a cultura fosse um buraco negro que só suga dinheiro quando a cultura é tantas outras coisas. E era bom que neste momento de pandemia percebêssemos e valorizássemos o quanto precisamos dela para não enlouquecer, para crescer, para sermos melhores pessoas e olharmos para as coisas com outras ideias e outros pontos de vista. A cultura não é um entretenimento simples que não te faz pensar, é algo complexo que te torna melhor. Na pandemia percebemos o quanto faz falta. Infelizmente, de entre todos os ministérios o da Cultura é o que se tem mostrado menos capaz de criar soluções.
Voltando a Legendary Tigerman, há data prevista para o novo álbum?
Não. Mas no primeiro trimestre poderão começar a sair músicas. Não depende só de mim. Depende de coisas logísticas e do estado do mundo, que há coisas que se calhar já podiam sair amanhã. Mas gostava de editar o disco pensando na perspetiva de ter espectáculos ao vivo. Se tiver que pensar num mundo em que não há espectáculos ao vivo de maneira tradicional, terei que o fazer, mas não é algo que me agrade. Há aqui um tempo em que vou ter de aguardar para ver o que acontece.
Há assim alguma colaboração que tenha tentado fazer e que seria obrigatório fazer?
Há muitas mas não digo nomes. Digo quando conseguir a colaboração [risos].