Magazino é um dos principais DJ portugueses dedicados à música eletrónica. Rosto da icónica Bloop Recordings, com uma carreira de quase 25 anos, costuma passar um terço do ano em hotéis, a viajar de país em país, sempre a espalhar house e techno pelas pistas de dança, seja no leste da Europa ou na América latina.
A última vez que passou música foi a 1 de dezembro do ano passado, em Viena, a capital austríaca. Magazino sentia-se, como descreve à NiT, “demasiado cansado e exausto” há alguns meses. “No dia 2 voltei e não me sentia nada bem. Pensava que era do jet lag, das viagens, hotéis, camas diferentes. Voltei na segunda-feira e na quinta ia tocar em Moscovo, na Rússia. Mas entrei no hospital na segunda-feira de manhã e já nem saí, fiquei logo lá.”
Foi diagnosticado com leucemia, um tipo de cancro que ataca a medula óssea. Inicialmente, pensava-se que podia tratar do problema apenas com quimioterapia, mas passado algum tempo percebeu-se que era mesmo necessário um transplante de medula.
“Estive ali dois ou três meses mais triste. Porque é que me aconteceu a mim? Mas depois houve uma fase em que percebi que isso não me ia levar a lado nenhum, que não me ajudava, e percebi que a única maneira de dar a volta à situação era com pensativo positivo, e tenho pensado mesmo assim, genuinamente.”
Esta conversa ao telefone que Magazino tem com a NiT é a mais longa que faz há bastante tempo. “Estou surpreendido porque estamos a falar há quase meia hora e está a correr bem, está a ser um bom teste.” Falamos no nono dia desde que Magazino acordou do coma. E ele garante que nunca esteve tão feliz por viver.
Da leucemia à Covid-19 — um período difícil marcado pelo otimismo
Magazino deu entrada no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa em junho. A ideia era ficar internado algumas semanas para fazer os necessários tratamentos de quimioterapia, enquanto se continuava a procurar um dador que fosse compatível para realizar o transplante.
Quando o surto de Covid-19 aconteceu no IPO, no final desse mês, o DJ foi um dos mais de 100 infetados. Teve de ser transferido para o Hospital de Santa Maria, onde estaria isolado, e os sintomas não tardaram em aparecer.
Começou a sentir falta de ar e a respiração pesada. “Depois nem me lembro, puseram-me oxigénio, meteram-me em coma, ligaram-me a um ventilador e fiquei ali. Entre o sexto e o oitavo dia de coma, os médicos não acreditavam que eu sobrevivesse, eu estava com febres altíssimas de 41 graus. Além da Covid e da leucemia, alojou-se o género de uma bactéria no meu corpo que supostamente entrou pelo cateter que eu tinha e provocou uma infeção gigante. Enfim, é um milagre eu estar vivo. Mas estou muito feliz e motivado por estar vivo. Não senti nada disto nem me lembro de nada disto, eu só me apercebi da gravidade da situação dois ou três dias depois de acordar do coma, quando os médicos vieram falar comigo.”
Magazino fez vários amigos nos diferentes hospitais por onde passou.
Magazino não se lembra de nada do coma — nem sequer dos dias antes, quando já estava bastante afetado pela Covid-19. “Fiquei um mês em coma e durante esse mês apareceu um dador compatível a 100 por cento. Disseram-me quando eu estava em coma, mas eu não me lembro de nada. A única coisa de que me lembro são ondas a bater com muita força na areia e um turbilhão gigante de cores à minha volta.” Como se fosse um sonho? “Sim, algo do género.”
Acordou há cerca de uma semana e meia com menos 21 quilos — passou de 71 para 50. Não conseguia falar, não conseguia andar e nem sequer se reconhecia — nas primeiras horas depois de acordar não sabia quem era. Os médicos explicaram-lhe que é algo que acontece a quem está tanto tempo em coma, que é comum.
Mostraram-lhe vídeos dele a passar música ou a dar entrevistas, mas Magazino, que ficou sem cabelo por causa da quimioterapia, não se reconhecia. “Foi um choque muito grande nessa noite, eles diziam que eu era uma pessoa com muito sucesso na minha área, mas eu não…” O episódio de como se voltou a lembrar é curioso.
“No dia seguinte acordei, voltaram a falar comigo, eu estava ainda muito baralhado e confuso, mas o que aconteceu? Na televisão do meu quarto estava sempre a passar um anúncio da MEO em que a protagonista é uma grande amiga minha. E eu apontei para a televisão e disse que era uma grande amiga minha. Eles começaram a perguntar: mas se é uma grande amiga, de onde é que a conheces? Começaram a puxar por aí. Ela acompanhou-me em várias tournées e depois fez-se luz, reconheci-a daí. Ela trabalhou comigo na Bloop Recordings, lembrei-me da Bloop e das tours e aí fez-se luz e percebi, ‘realmente é verdade, sou a pessoa que vocês têm mostrado nos vídeos’. Só um dia depois é que caí em mim e foi só por causa do anúncio da MEO. Tive a oportunidade de falar com essa pessoa, a Marie, há três dias, e ela ficou emocionada ao ouvir isto.”
Agora, Magazino tem passado os dias a fazer fisioterapia ou terapia ocupacional, a reaprender a fazer tarefas tão básicas como comer ou lavar os dentes. “A terapia serve para ganhar massa muscular, para voltar a andar, porque ainda não consigo e ainda vai durar talvez mais uma semana e meia.”
Apesar das dificuldades, o DJ está a recuperar bastante bem — e não tem dúvidas de que o otimismo é a sua grande força para vencer os problemas. Ainda testa positivo para a Covid-19 e por isso continua isolado no Hospital de Santa Maria, na ala de enfermaria (e não na unidade de cuidados intensivos onde tinha estado anteriormente). Aguarda pelo teste negativo para poder regressar ao IPO, continuar a quimioterapia e depois poder fazer o transplante.
“A cabeça manda e o corpo reage, e tenho de me manter positivo, tem sido esse o meu foco ao longo dos últimos meses, é nisso que tenho trabalhado. Eu pensava que ia ser só para a leucemia, mas acabou por ser também para a Covid. Como eu estava muito débil, derivado à quimioterapia, a Covid acabou por atuar em força. É uma grande sorte eu estar vivo. E isso só me motiva mais e me dá mais força para seguir em frente. Tenho vontade de acordar todos os dias para fazer fisioterapia, para poder trabalhar e recuperar. O dia de amanhã vai ser sempre melhor. E nestes nove dias desde que acordei do coma tenho sentido um passo gigante na recuperação todos os dias, é incrível. Se fosse há um ano eu ficaria muito admirado comigo mesmo. Agora já não fico surpreendido, é tão forte a vontade que tenho para levar isto avante que já não fico. Sinto que tenho a força de poder levar a minha rua às costas. Os médicos que passam aqui, os fisioterapeutas, eles é que ficam surpreendidos.”
Quando podia, recebeu muitas visitas no hospital, neste caso do também DJ Rui Vargas.
Além da fisioterapia que faz durante o dia, quando está sozinho, mais tarde, conta que faz exercício para ajudar a acelerar o processo. “Porque isto só lá vai assim, só me consigo despachar disto assim. É o que digo aos meus colegas aqui da ala, tem de partir deles porque se não não conseguem. São quase todos mais velhos. E é esse espírito que tento incutir naqueles que estão a sofrer do mesmo problema. Há pessoas que me escrevem e eu respondo, vamos trocando mensagens.” Nas redes sociais, Magazino partilha todas as novidades sobre o seu estado de saúde e recuperação.
Há mais de 70 dias que não vê nem família nem amigos, apesar de falar com eles ao telefone ou por mensagens. Apesar das constantes viagens na sua vida normal, nunca esteve tanto tempo fora de casa. “Mas acabo por fazer amigos aqui, sejam médicos, enfermeiros ou auxiliares. Tenho sido extremamente bem tratado, quer no IPO quer no Santa Maria, o único senão é a comida que é má, é muito má. Mas ainda assim tive uma conversa com o nutricionista do hospital, falámos bastante e ele conseguiu adaptar a dieta ao meu gosto e já tenho comido melhor. O que é fundamental quando preciso de ganhar massa muscular.”
Quando esteve no IPO, os seus amigos lançaram campanhas de recolha de sangue e de medula óssea em Lisboa, Setúbal, Cascais e Porto, o que originou uma onda de solidariedade. Foi assim que o seu dador foi encontrado. Magazino reconhece que tem tido “bastante apoio”.
“E estreitei a relação com a Associação Portuguesa contra a Leucemia. Há tanta e tanta gente a precisar de um transplante de medula, só quando estive internado no IPO é que percebi isso. E não se fala muito sobre isto porque as pessoas normalmente retraem-se, acanham-se, escondem um bocado a doença, mas não há nada para esconder, não percebo. Têm é que lutar pela vida e serem pró-ativos. Há pessoas que criticam por me ter exposto. Eu acho o contrário. É por me ter exposto que foi possível arranjar um dador de 10 em 10. Nestes casos é fundamental.”
A música como parte essencial da vida
No IPO, o DJ tentou que o seu espírito positivo e otimista contagiasse outros doentes. Levou um teclado para tocar à tarde, leu livros e até tinha um diário onde escrevia, além de ter uma máquina para fazer exercício.
“Partilhava com toda a gente e animava ali bastante o pessoal. A ideia também era essa. Às vezes há aqueles que são mais negativos e falam muito da doença e pouco da solução. Eu sempre apelei a todos os que passaram pelo meu quarto, sempre fiz questão de não falarmos sobre a doença, falarmos sempre sobre a solução e falarmos muito sobre o futuro, não sobre o passado. A música ajudava a isso também.”
Revela que tem saudades de passar música, claro, mas, acima de tudo, das coisas básicas da vida. “Neste momento o que sinto mesmo falta é de abraçar a minha família, os meus amigos, estar em casa, sentir o cheiro do vinil, estar com as minhas gatas, cuidar das minhas plantas, tenho saudades dessas coisas básicas.”
Uma semana depois de acordar do coma recomeçou a ouvir música. Nos dias antes, ainda tinha muitas dores de cabeça quando experimentava. “Eu toco muita música intemporal, tanto posso tocar música de 1995 como música de 2021 que ainda não saiu mas à qual já tive acesso. O meu ideal é tocar discos que tu nunca ouviste na vida e provavelmente nunca ouvirás, é o meu motto. Isso faz com que tenha de ter um trabalho muito grande de pesquisa. Só toco house e techno, mas não comecei a ouvir esse tipo de música agora, comecei a ouvir coisas não tão brutas. Mas é um vício, agora já estou a ouvir house e techno, porque é algo que faz parte.”
Quando acordou, teve a curiosidade de perceber se havia novidades em relação à sua indústria tendo em conta a evolução da pandemia, mas rapidamente percebeu que as salas e as discotecas continuam encerradas. “Há algumas coisas a funcionar mas são DJ a tocar para pessoas sentadas… e eu sou um animal de pista, não sou de tocar para pessoas sentadas, apesar de reconhecer o mérito aos meus colegas que o fazem bem. E quando eu voltar se estivermos no mesmo registo prefiro procurar outra coisa para fazer, apesar de reconhecer que é a única coisa que sei fazer, porque há mais de 20 anos que toco.”
Na sua mente tem traçado um objetivo: recuperar a sua vida até junho de 2021. “Nessa altura quero estar a 100 por cento para fazer a minha vida normal, para fazer a minha paixão e retomar a minha atividade. Nos próximos tempos vou ter de fazer o transplante, e passar pela reabilitação e recuperação, que é morosa e dolorosa.”
Magazino não tem dúvidas de que a leucemia e, posteriormente, a Covid-19, o tornaram numa pessoa diferente. “Eu era uma pessoa realista, por vezes até pessimista, neste momento isso mudou por completo, porque isto mudou a minha vida. Tenho muito mais vontade de viver o dia a dia, estou com muita gana e genica para ultrapassar esta fase, tenho uma enorme alegria para viver. Desde que percebi que o que passei foi quase um milagre, fiquei muito mais motivado para viver, é incrível. Estou muito diferente. E acho que isso se vai refletir na música, vai ser mais emotiva, mais épica, tenho ouvido mais coisas assim. Não tenho dúvidas.”