Luís Jardim, que morreu esta sexta-feira, 4 de julho, aos 75 anos, colaborou com alguns dos maiores artistas da história da música e não tinha medo de dizer aquilo que pensava. “Acho que a Madonna não canta nada. Mas sabe tudo e mais alguma coisa”, disse no programa de Manuel Luís Goucha, em 2021.
O artista nasceu na Madeira a 4 de julho de 1950 e desde cedo mostrou uma paixão inata pela música. Por conta própria, aprendeu a tocar vários instrumentos — uma ambição que foi apoiada pela mãe, especialmente após a morte do pai.
Quando era adolescente, formou a sua primeira banda pop rock, os Demónios Negros. Luís Jardim e Óscar Gonçalves eram os guitarristas, Tiago Camacho o violinista e Alberto Manso o vocalista e baterista.
Com apenas 16 anos, mudou-se para Londres após ter prometido ao avô que ia estudar Direito e que a música seria apenas um part-time, revelou a RTP2 no programa “Bairro Alto”. “A promessa começou a desafinar logo na viagem de barco que o levou até Inglaterra. Três anos depois já estava a tocar em Hyde Park com os The Rolling Stones”, acrescenta.
A proposta para tocar com o mítico grupo surgiu no mesmo ano em que se mudou para o Reino Unido. Na altura, tocava percussão num grupo de soul e jazz num pub que era muitas vezes frequentado pelos grandes nomes do rock britânico. Numa noite, esteve lá Mick Jagger e, na manhã seguinte, recebeu um convite, por telefone, para tocar com eles.
“Tive o convite para fazer a música do filme em que entrava o Mick Jagger e, ao mesmo tempo, comecei a fazer outros concertos e a ter contactos. Entrei muito depressa neste mundo, tive muita sorte, mas também porque o que fazia, fazia muito bem. Comecei a trabalhar com os The Rolling Stones e isso abriu muitas portas. Chamavam-me o brasileiro. Eles pensavam que eu era brasileiro”, contou ao “Diário de Notícias”.
Em Inglaterra, teve o seu próprio grupo, os Rouge, entre 1971 e 1975. Juntos, chegaram a vender milhões de discos. No entanto, foi ao lado de outros nomes que realmente encontrou um sucesso inigualável para um português natural da Madeira.
A sua versatilidade, especialmente como percussionista, fez com que se tornasse presença constante em discos de nomes como Trevor Horn, ABC, Frankie Goes to Hollywood, Grace Jones, Seal, Asia, David Bowie, Cher, Björk, Paul McCartney, Elton John, Celine Dion, Mariah Carey, Diana Ross, Robbie Williams, Rod Stewart, Tom Jones, Julio Iglesias, entre muitos outros.
Entre as colaborações internacionais, destaca-se a digressão com Tina Turner nos anos 80. “A primeira sessão que gravei foi de uma música com ela e o Rod Stewart”, contou Luís Jardim à NiT em 2023. “Gravámos vários temas e até fizemos um álbum especial para o campeonato do mundo no Brasil, penso eu.”
Em estúdio, tocava bateria, outros instrumentos de percussão e baixo, além de fazer alguma programação com máquinas eletrónicas, que começavam a instalar-se no mercado.
“Quando trabalhas com pessoas muito conhecidas, não fazes uma grande festa quando as conheces, não pedes para tirar uma fotografia. Chegas ao estúdio e dizes olá, é tudo muito normal”, explica o português sobre o momento em que conheceu Tina Turner.
Descreveu a artista como “uma pessoa muito direta, muito franca”, o que deixava o ambiente à vontade para todos os que estivessem no estúdio. Não era introvertida, apesar de ser “muito séria” no trabalho, ainda que com alguns momentos de descontração pelo meio. Em resumo, levava as coisas muito a sério e tinha um enorme profissionalismo. Ao lado dela, teve os anos mais lucrativos da sua vida. “Foi uma das tours mais bem pagas da minha carreira”, recorda.
Luís Jardim acompanhou Tina Turner quando a norte-americana já estava no seu auge, mas também assistiu ao nascimento de algumas (grandes) carreiras, nomeadamente a de George Michael a solo, com quem colaborou no seu primeiro álbum. “Era um homem intenso, muito exigente. Era um líder”, disse à TVI. “Acho que o que mudou a vida dele foi o tema ‘Careless Whisper’, que mostrou um George Michael que ninguém conhecia”, recordou.
O português que morreu no dia em que fez 75 anos também não tinha medo de criticar algumas das grandes referências da indústria musical. Trabalhou como percussionista no álbum de estúdio de “Evita”, o filme de 1996 protagonizado por Madonna. “Ela não canta nada”, disse numa entrevista a Manuel Luís Goucha em 2021, mas, mesmo assim, tinha alguns elogios: “Sabe tudo e mais alguma coisa”.
Refere ainda que, apesar desta opinião radical, a Rainha da Pop sabia exatamente o que queria e conseguia transmitir muita confiança no estúdio — e realçou a importância do público LGBTQIA+, que sempre acompanhou a carreira da artista. “O público gay, em termos de discos, é o maior público que existe. Porque é que a Madonna é quem é? Porque tem um público gay”, reforçou.
As manias de Michael Jackson
Ao longo dos anos, teve a oportunidade de estar com outro membro da realeza da pop: Michael Jackson. No programa “Cristina ComVida”, em 2022, recordou a altura em que o conheceu, quando estava a trabalhar com Paul McCartney. “O Michael era muito estranho. Não dizia nada. Estava ali sentadinho o dia todo e o McCartney não parava de falar, era o contrário”, recordou.
“Só comia as coisas que eu guardava para ele no frigorífico, não comia o que nós comíamos. Não podíamos ter carne no estúdio. Era uma pessoa um bocado estranha, ia verificar o frigorífico para ver se algum de nós estava a comer carne. Era educado, simpático, mas não falava, não dizia nada”, acrescenta.
Jardim odiou fazer os “Ídolos” em Portugal
Este lado desbocado também marcou a sua passagem pelos concursos portugueses, nomeadamente “Ídolos”, “Uma Canção Para Ti” e “A Tua Cara Não Me É Estranha”. “No ‘Ídolos’, ia com a ilusão de que se passava o mesmo em Portugal que noutros países, onde se fazem críticas, agride-se, mas depois sai uma estrela”, disse ao “Diário de Notícias”.
Após ter abandonado este formato da SIC, foi muito crítico de tudo aquilo que experienciou. “Percebi que fazer este programa em Portugal é para esquecer”, começou por explicar.
“Pode fazer-se, mas um Ídolos mais inteligente. Ter um júri como existe nos programas de música, com produtores e cantores, não como este que está no Ídolos. Um homem que contrata concertos pelo País [Manuel Moura dos Santos], uma senhora que é filha de um homem que organiza concertos [Roberta Medina], um empregado da SIC [Pedro Boucherie Mendes] e depois um saxofonista [Laurent Filipe] do qual nunca ouvi falar. Houve outros programas, como a ‘Família Superstar’, que tinha o Tozé Brito, um homem com muita experiência (produtor, cantor), tinha os Anjos, por exemplo. A ideia do Ídolos para mim morreu no segundo ano”, atirou.
Este sentimento de desdém estendia-se a muitos outros artistas portugueses. Na verdade, estendia-se à indústria nacional no geral. “No que toca ao nosso nível discográfico e artístico, diria que, em Portugal, temos meia dúzia de excelentes cantores e depois uma tralha de gente que não canta nada”, disse no podcast “Posto Emissor”, da “Blitz”.
Mesmo com tantas conquistas globais, Luís guardou sempre uma frustração. “Toquei com os Rouge em Espanha e nunca fui convidado para vir tocar a Portugal. Tenho pena porque a minha família estava toda aqui, alguns dos meus amigos de infância, e eles nunca tiveram oportunidade de me ver em palco com a minha banda”, lamentou.